O tesouro dos reis. Jerusalém entre o sagrado e o mundano

Relevos de prata, lâmpadas de ouro, tecidos de seda e outras riquíssimas alfaias litúrgicas: ao longo dos séculos, as ofertas de monarcas europeus foram-se acumulando nos santuários de Jerusalém. Este conjunto excecional de objetos pode ser visto até 26 de fevereiro de 2024 em Lisboa.

Para muitos terá o sabor, se não de uma epifania, pelo menos de uma novidade. Para lá dos tesouros espirituais que carregam as velhíssimas pedras de símbolos como o Muro das Lamentações, a Gruta da Natividade, o caminho do Calvário ou o monte Gólgota, Jerusalém alberga um conjunto excecional de tesouros mais mundanos. Objetos feitos de metais, pedras e tecidos preciosos, que foram oferecidos ao longo dos séculos por soberanos europeus que queriam demonstrar a sua devoção, mas também a sua opulência.

«O título da exposição – O Tesouro dos Reis – indica a essência do tema», sintetizou António Filipe Pimentel, diretor do Museu Gulbenkian, na apresentação da grande mostra de inverno da instituição lisboeta. «Trata-se de analisar em contexto histórico o que foi o tesouro acumulado na Terra Santa graças aos soberanos católicos da Europa, que fizeram uma espécie de competição em termos das suas ofertas».

Segundo Frei Rodrigo Machado Soares, um franciscano em missão apostólica na Terra Santa que veio a Lisboa para a apresentação, as obras são «uma espécie de espelho da beleza do invisível». Aos franciscanos, que há mais de 800 anos receberam do Papa de então a Custódia da Terra Santa, não cabe apenas guardar estes tesouros dignos de reis. A sua missão, esclareceu o frade, passa também por «cuidar dos lugares santos morando neles, celebrando neles, acolhendo os peregrinos, e cuidando da população local, que nós chamamos de pedras vidas».

O conjunto de mais de 40 peças chegou a Lisboa no verão para um minucioso trabalho de restauro – as pratas, sobretudo, encontravam-se em mau estado de conservação. «À margem das questões atuais [a guerra entre Israel e o Hamas], não foi nada fácil fazê-lo transportar do outro lado, do mundo antigo, para este lado de cá», reconheceu Pimentel.

‘Jesus nasceu aqui’

É André Afonso, o comissário executivo, quem conduz a visita à exposição. No primeiro núcleo, ‘Jerusalém, «Centro do Mundo»’, chama a atenção para um objeto circular de prata: Estrela de Belém. «Para que servia? Sabemos que foi uma oferta de Maria Amália da Saxónia, rainha consorte de Nápoles e das Duas Sicílias, que na década de 1730 envia esta peça, que tem uma função muito concreta: a ideia era esta estrela ser colocada na Gruta da Natividade, que a tradição cristã identifica como o local do nascimento de Jesus».

Outra peça oferecida pelo reino de Nápoles é o painel que representa o Pentecostes, o momento em que o Espírito Santo desce sobre Maria e os Apóstolos. Em visitas especiais, esta grande encenação barroca em prata vai poder ser tocada e sentida por visitantes cegos, desde que usem luvas e sob a supervisão de conservadores.

Mas não eram só pratas que chegavam a Jerusalém vindas da Europa. Além«dos objetos de ourivesaria, paramentos, móveis, havia também outras coisas efémeras, bens alimentares, moedas», nota André Afonso. «No caso português, a partir do final do século XVII vê-se muito nos registos a oferta de especiarias do Oriente, açúcar do Brasil ou da Madeira».

A basílica de madrepérola

O segundo núcleo da exposição – ‘De Constantino o Grande a Solimão o Magnífico’ – «faz uma espécie de percurso histórico pela construção e pelas vicissitudes por que passaram quer a Basílica do Santo Sepulcro quer a própria comunidade de franciscanos em Jerusalém», continua o comissário científico. «Destacaria aqui um modelo em madeira e madrepérola da basílica do Santo Sepulcro». Calouste Gulbenkian, que a visitou em 1934, referiu-se-lhe em termos pouco lisonjeiros: «O Santo Sepulcro, de alto interesse religioso, não apresenta qualquer interesse artístico».

Seja como for, vários modelos (hoje diríamos maquetes) desta igreja foram criados nos séculos XVII e XVIII, tendo na origem os desenhos de um padre franciscano italiano que esteve na Terra Santa em finais do século XVI. «Esses desenhos vão ser publicados em livros que serão entregues a uma comunidade de artífices cristãos localizados em Belém, onde se vai desenvolver um tradição artística muito interessante no trabalho da madeira e da madrepérola. Em Belém vai-se criar uma grande indústria, quer de objetos de grandes dimensões, quer de objetos de pequenas dimensões que podiam ser adquiridos facilmente por peregrinos». A tradição persiste nos dias de hoje.

Se o peregrino não vai a jerusalém…

A viagem até Jerusalém durava cerca de um mês, explica André Afonso. Com partida de Veneza, «passava pela Sicília, por diversas ilhas gregas, por Chipre e depois aportava em Jafa, a cerca de 60 km de Jerusalém».

Mas para quem não podia ir havia outras formas de cumprir a peregrinação. O comissário mostra uma pintura encomendada pela rainha D. Leonor que representa vários momentos da Paixão de Cristo. D. Leonor surge no canto inferior esquerdo, a contemplar tudo à distância. «Isto é uma espécie de peregrinação espiritual». Se fisicamente continuava em Portugal, através daquele quadro, proveniente das coleções do Museu do Azulejo (antigo Convento da Madre de Deus) um ‘duplo’ da devota rainha mergulhava na Terra Santa e nos seus mistérios.

«Os peregrinos que não podiam ir tinham interesse em trazer coisas da Terra Santa. E os objetos são oferecidos também nesta ideia: ‘Nós não podemos ir a Jerusalém, mas podemos ter algo lá que nos represente’».

Riqueza franciscana

Estamos agora no ‘Theatrum Mundi, doações régias aos lugares santos’, terceiro núcleo e cerne da exposição. «Theatrum Mundi porque em certa medida Jerusalém é um palco onde as nações europeias se fazem representar com o melhor daquilo que produziam», esclarece André Afonso. Destaca-se um baldaquino de prata. «Esta peça desmonta-se em 300 peças. Tem uma longa inscrição a dizer que é uma oferta do Rei Filipe IV no último mês da sua vida».

Mas como conciliar o aparato destas peças com o espírito de pobreza dos franciscanos, a quem cabe a sua guarda? «São Francisco tinha uma máxima segundo a qual ‘Para Deus, o melhor, mas para os homens basta o essencial’», responde Frei Rodrigo Machado Soares. «Logo após a sua conversão, notando o estado dos lugares onde se celebrava a eucaristia e o culto divino, ele escreve uma carta a todos os clérigos dizendo que todos são convocados a cuidar das coisas de Deus». Ainda assim é difícil olhar para a riqueza das casulas de seda bordadas com fio de ouro e não pensar na túnica de tecido grosseiro de Francisco. Nas palavras do historiador francês Jacques Le Goff: «Enfeita a túnica com uma imagem da Cruz e confecciona-a tão rugosa que ali crucificará a sua carne com os seus vícios e os seus pecados, tão pobre e tão feia que ninguém lha invejará».

E depois há ainda o brilho da prata, do ouro, das pedras preciosas. O santo de Assis não apenas renunciou a todas as riquezas como detestava o luxo.

«Se o senhor conhece um pouco a história da Terra Santa, vai dizer: ‘Vocês estão lá há 800 anos, e durante todas as guerras, todas as pestes, todos os períodos em que foi muito difícil viver na Terra Santa, os frades conservaram esse património’», continua Frei Rodrigo. O facto, justifica, é que estas ofertas se destinavam «ao culto divino, não aos frades». Por fim, acaba por conceder: «Mas sim, são peças de aparato, que refletem talvez mais a riqueza que os reis queriam ostentar do que propriamente a importância para o culto, que pode ser feito de forma muito simples».

 Devoção e diplomacia

As ofertas dos soberanos – algumas de altíssimo valor, como a lâmpada de ouro doada por D. João V que chegou a Jerusalém já depois da sua morte – não tinham sempre propósitos estritamente devocionais. Havia também tratados comerciais e jogadas diplomáticas à mistura.

«Luís XIII, cerca de 1620, com a cidade sob administração otomana, estava a tentar estabelecer um cônsul permanente em Jerusalém para defender os interesses comerciais de França e juntamente com o cônsul envia estes paramentos vermelhos. Sabemos que não correu muito bem: o cônsul acabou por ser preso por espionagem e repatriado para França. Contudo, os objetos permanecem», revela André Afonso.

Cem anos mais tarde, nos anos 1730-1740, é Carlos III de Espanha quem tenta estabelecer relações diplomáticas com os otomanos. «E resultado dessa tentativa há uma famosa embaixada turca a Nápoles em 1741. É a partir daí que os turcos passam a integrar os presépios napolitanos», diz o comissário. «Associado a esta embaixada turca, no ano seguinte chega um elefante a Nápoles, e é um sucesso de audiências: vai ser pintado por vários pintores e também passa a integrar os presépios. A chegada do elefante a Nápoles foi um acontecimento verdadeiramente excecional».

Não menos excecionais são os objetos que Carlos III fez chegar à Terra Santa: uma custódia, um baldaquino, um crucifixo e um báculo. «É o mais importante conjunto de objetos que chegou à Terra Santa e mostra o esforço feito por Carlos de Bourbon para prover os santuários da Terra Santa dos objetos mais excecionais que estavam a ser criados naquele momento pelos principais ourives napolitanos», conclui o comissário.

Estes objetos – que mesmo em Jerusalém «não são fáceis de ver», pois muitos deles estão guardados em zonas não visitáveis das respetivas igrejas – poderão ser apreciados pelo público português até 26 de fevereiro, altura em que seguem para Santiago de Compostela, numa peregrinação que passa ainda por Florença e Nova Iorque, antes de regressarem definitivamente a casa, para integrarem o Terra Sancta Museum, que deverá estar concluído em 2026.