Naqueles anos, a verdadeira religião em Portugal era a televisão. Não era apenas um meio, era todo um ritual cujo alcance definia a noção que tínhamos de nós próprios. A televisão veio dar cabo da janela, e também de um certo consolo bairrista, na medida em que cada comunidade fazia para integrar em si os elementos de uma diversidade mais ou menos rica. Quando se ligaram as televisões por todo o país, muito do que antes eram os sinais de uma autossuficiência, ainda que tímida, passou à condição de mera sombra face a essa luz totalizante. Perdemos os cafés, as assembleias encostadas ao tédio, e aos poucos já nos relacionávamos uns com os outros nessa respiração assistida, no sofá.
A televisão era não só uma janela maior como o templo, um lugar de culto, e não se limitava a desaguar nas salas de estar, mas formava um rio que atravessava o país e de onde bebíamos o nosso reflexo. O que não passava ali, dificilmente poderia existir. Foi assim que, há trinta anos, descobrimos Sara Tavares, ainda adolescente, num concurso de talentos desses que foram servindo como um imenso baile de debutantes. Ela tinha 15 anos quando apanhou o barco de Cacilhas para o Terreiro do Paço e, dali, o autocarro para os estúdios da SIC.
Esta miúda tinha uma particularidade, algo que a tornava única, embora então para ela mesma talvez fosse uma diferença inoportuna. Era negra. Filha de pais cabo-verdianos, nascera em Lisboa em 1978 e, com apenas quatro anos, depois dos pais se separarem, a mãe levou os outros dois filhos e foi viver com um novo companheiro para o Algarve, deixando-a com uma avó emprestada na margem sul do Tejo.
Foram as dificuldades financeiras que ditaram este abandono, e sem esconder a dor, Sara Tavares sempre mostrou compreensão diante da escolha que a mãe fez. Em entrevista ao Alta Definição, em 2012, lembrava que aquela senhora que tomava conta dela tinha ficado muito apegada, e tendo já uma idade avançada, ficou decidido que ficaria a viver com ela na sua casa no Pragal, em Almada. Sara viveu ali toda a vida, naquele lugar com vista para Cacilhas e o Cristo Rei.
Embora muitas vezes se tenha ressentido face à decisão da mãe, admitiu que foi sabendo compreendê-la com o passar dos anos: “Acho que os miúdos percebem só com um olhar. Podem depois levar uma vida inteira a traduzir isso para o consciente, mas percebem o olhar da mãe. Sabem que ela vai voltar. Se ela te deixa em algum sítio é porque sabe que vais ficar bem. E se calhar vais ficar mais protegido naquele sítio do que ao ir com ela”, disse naquele programa televisivo. E ainda que entre ela e a avó adotiva se tenha formado um laço inquebrável, reconhecia que apesar de estar em boas mãos, houve momentos na sua infância em que a diferença na cor da pele lhe causava embaraço.
Tomar banho com lixivia
Revelou até como certa vez isso a levou a colocar-se em perigo, depois de uma conversa com “um senhor da minha rua que era muito cómico, muito meu amigo”. Metia-se muito comigo. E um dia perguntou-me se gostava de cá andar e se já tinha reparado na minha cor. “Não gostavas de ter a cor das outras pessoas?” E eu respondi que gostava e perguntei o que podia fazer. E ele disse-me para tomar banho com lixívia. Foi para casa, e estava já a preparar o banho quando a avó deu com ela a encher a banheira de lixívia. “Claro que o senhor levou um raspanete. Nunca lhe passou pela cabeça que eu o fosse fazer”.
Uns anos mais tarde, numa outra entrevista, desta vez ao Observador, falou dessa diferença que via no espelho, como uma prece que mesmo ela não entendia, e para a qual durante muito tempo não teve resposta. “Cresci longe dos africanos. Sentia-me diferente, até porque os miúdos são cruéis com essas coisas. Fazem-te sentir diferente”, contava. O sentimento esbateu-se à medida que crescia. “Achava normal [viver entre pessoas brancas], mas sentia que havia algo. Daquele lado dos bairros, viviam os africanos todos. E eu vivia deste lado (…) Coisas básicas: ‘Como não sabes cuidar do teu cabelo?’”, perguntavam, e eu dizia: “A minha avó não me sabe pentear”. “Não tinha uma mãe ou uma tia que soubesse tratar dele”, contou.
Foi só quando regressou às suas origens que em certo sentido a sua vida também lhe foi explicada. Ao visitar Cabo Verde e conhecer os seus avós, “percebi porque é que as famílias cabo-verdianas são tão disfuncionais, a ponto de 90 por cento das crianças serem educadas pelos tios, pelos avós, porque é um país de emigração. E são os emigrantes que alimentam os que estão lá. Portanto, ajudou-me muito a fazer as pazes com os meus país”.
A vitória no Chuva de Estrelas onde imitou Whitney Houston ao cantar One moment in time, apresentou-a ao país, mas também levou a que passasse o resto da vida a tentar descolar o incómodo rótulo da “Whitney Houston portuguesa”. O dinheiro que ganhou foi usado para fazer obras na casa onde cresceu. Poucos meses depois, triunfava no Festival da Canção com Chamar a Música, tema escrito por Rosa Lobato de Faria para a sua voz, tendo representado Portugal na Eurovisão e saído de Dublin com um honroso oitavo lugar.
Estávamos em meados da década de 1990, e Sara Tavares era um dos rostos mais conhecidos da música entre nós, mas é certo também que se paga um preço alto por se viver num país tão aconchegado na sua realidade diminuída, essa que cabe perfeitamente num pequeno ecrã, bastando-lhe os três ou quatro canais para essa difusão de uma existência que se acomoda aos diminutivos.
Décadas mais tarde, contudo, a artista confessaria que se as pessoas à sua volta não a tivessem feito sentir que a música não era uma profissão a sério teria provavelmente ingressado numa escola de música em vez de participar no programa televisivo. A cantora, compositora, guitarrista e produtora que morreu este domingo, aos 45 anos, descobriu que algo não estava bem em 2009, vendo-se obrigada a interromper todas as atividades musicais para ser operada a um tumor benigno no cérebro que lhe fora diagnosticado depois de sofrer uma crise epilética em casa.
Em 2012, numa entrevista ao Expresso, deixou claro que embora tenha sido abalada, e reconhecido que se tratava de “uma coisa sensível”, nunca sentiu medo. “O meu tumor estava localizado no cérebro em cima da função da fala e, de algum controlo motor. O que é delicado, claro. Só que o lado que é acionado quando falamos não é o mesmo do que quando cantamos. Aciona o lado artístico. Por isso pediram-me que cantasse. Cantei enquanto me operavam à cabeça”.
Se todos sempre viram e apreciaram nela um “jeito suave, doce, mas reservado”, a socióloga
Cristina Roldão assinalou também a forma como se foi posicionando sobre o racismo, e a coragem que a levou a ter sido “a única mulher negra, figura pública, do meu país e geração, de origens bem humildes, a assumir-se enquanto bissexual”. Naquele que foi provavelmente o tributo mais significativo que pudemos ler nos dias que se seguirão à morte de Sara Tavares, Roldão serviu-se da sua crónica no Público para assinalar a importância que teve para “todas as miúdas negras da periferia de Lisboa e desse Portugal fora” a forma como a artista chegou tão jovem à televisão e se impôs de forma tímida, mas perentória devido ao seu inegável talento, de tal modo que aquelas miúdas descobriram com ela o seu desejo de afirmação, “ganharam com ela”.
“Corriam os anos de 1993 e 1994, fazíamos parte da primeira geração negra do pós-25 de Abril”, lembra a socióloga. “Isso significava, ao mesmo tempo, uma pesadíssima herança colonial e uma pequena fissura por onde alguma mudança poderia entrar. Então, naquelas noites em que a Sara invadiu a partir da TV as salas de jantar, cafés e restaurantes deste país; naqueles momentos em que a voz cristalina de um ser genial chamado Sara ‘abafou’ todo e qualquer adversário; então, naqueles breves minutos, deixámos de ser mandadas para a ‘nossa terra’, porque subitamente éramos daqui; deixámos de ser as ‘pretas da Guiné que lavavam a cara com chulé’, as ‘barrote queimado’, as ‘macacas’ que cheiravam a ‘catinga’. Nunca saberemos o número de meninas negras que imitavam a Whitney Houston na cozinha, no quarto e sentadas nos muros da sua rua perante uma audiência imaginada e que, com a vitória da Sara, viram o horizonte ficar mais largo. Ninguém registou que as vitórias musicais retumbantes da Sara eram também vitórias no reconhecimento da nossa humanidade”.
Álbuns e sucesso
Depois da Eurovisão, em 1996, surgia o álbum de estreia Sara Tavares e Sout!, em colaboração com o coletivo gospel Shout!, mas foi com o segundo disco que a artista realmente começou a explorar e reivindicar orgulhosamente as suas raízes cabo-verdianas. “Do campo musical português foi integrando progressivamente o circuito da música africana e da world music; o cabelo desfrisado deu lugar aos dread locks e a um afro desalinhado e frondoso”, adianta Roldão. “Ela, como nós, passou da estratégia a que os nossos pais haviam sido obrigados, a do silêncio sobre o racismo, da preferência por ‘provar’ com o ‘mérito’ o nosso valor, um certo desejo de integração, para uma estratégia de exigência incondicional de sermos reconhecidos como portugueses sem nos ‘branquearmos’. Ela, como muitas da minha geração, terá tido a sensação estranha de ‘chegar atrasado à própria pele’, como diz a Djaimilia Pereira de Almeida, mas a verdade é que chegámos”.
Foi já depois de dar voz a Solta-se o Beijo, tema com letra escrita por Catarina Furtado que se tornou o maior êxito dos Ala dos Namorados, que surgiu, em 1999, o álbum Mi Ma Bô, que valer-lhe-ia os seus primeiros sucessos em nome próprio: Nha Cretcheu e Eu Sei…. Só seis anos mais tarde, viria o terceiro disco, Balancê, em que a artista aprofundava a sonoridade crioula, assumindo-se, em entrevista ao Expresso, como parte de uma “geração multicultural, que integra vários estilos, do funk ao rap, passando pelas mornas ou pelas coladeiras”.
Em declarações ao Público, a artista angolana Aline Frazão vincou a importância de Sara Tavares como alguém que desdobrou o horizonte do que era possível fazer do lado da lusofonia no sentido da afirmação e luta nas múltiplas geografias da diáspora negra: “Ver uma mulher negra com a guitarra na mão, a cantar as suas próprias músicas, a girar o mundo, a resgatar as suas origens, a cantar tanto em português como em crioulo, a criar uma estética na qual eu me revia inteiramente… Tudo isso teve um impacto gigante em mim. Acho que, no panorama português, a Sara representou um orgulho africano quase inédito. Ajudou a inventar uma Lisboa que abriu os braços para acolher pessoas negras, música africana”.
No fim, a morte de Sara Tavares devolveu-nos àquele culto que tínhamos em comum, e mesmo num dos períodos em que parecia estar a recuperar da doença, depois de uma cirurgia ao tumor cerebral que viria a levá-la, com apenas 45 anos, nunca manifestou um sentido de mágoa em relação à vida, reconhecendo que a dor maior vinha das saudades da avó Eugénia. “Só tenho saudades de uma pessoa na vida, que é da minha avó. Mas não tenho saudades de mais nenhum momento, nem de mais nada, porque vivi os momentos todos muito intensamente”, explicou na entrevista ao programa Alta Definição. “Sou assim, meio desapegada do mundo. Vivo isto um bocado como se fosse uma passagem. Também me interessa chegar à outra margen”.