Os ossos de Eça de Queiroz – 5.ª e última parte

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Tudo isto deveria ser suficientemente persuasivo para o Estado não mexer nos ossos de Eça de Queiroz, evitando contribuir para o tristíssimo espectáculo que é assistir aos descendentes do romancista engalfinhados uns nos outros. E deveria ser suficientemente persuasivo, também, para a maioria dos bisnetos abdicar da trasladação. Mas estes têm-se mostrado pouco generosos.

               Epílogo

Com a morte deixamos de existir e o corpo, antes animado pela vida, torna-se matéria desprovida de movimento e personalidade. Ao fim de vários anos, fica reduzido a ossos.

Através dos ossos, o passado fala connosco. E nós, através deles, falamos do presente, daquilo que somos e que consideramos importante.

Os restos mortais de Eça de Queiroz não falam. Não dizem nada. Nós, porém, podemos atribuir-lhes um significado, carregando-os de sentidos e de sentimentos.

Para os defensores da trasladação, a remoção dos ossos de Eça de Queiroz, de Santa Cruz do Douro para Lisboa, é uma forma de venerar e honrar a memória da vida e da obra do autor d’Os Maias.

Desejam os promotores da trasladação que a presença dos ossos do escritor no Panteão Nacional lhe traga mais leitores, que favoreça o estudo, a investigação e a divulgação da sua obra. Essa é, pelo menos, a esperança de Afonso filho: “Desejo que contribua para isso” (Diário de Notícias, 24 de Setembro de 2023). Mas alguém poderá afirmar que os leitores correram a comprar, a ler e a estudar obras como Traços gerais da Filosofia Positiva ou A Velhice do Padre Eterno, depois de Teófilo Braga e Guerra Junqueiro terem ido para o Panteão?

O mais curioso é a Assembleia da República ter-se mostrado invulgarmente célere no tratamento desta questão. O próprio presidente da Câmara Municipal de Baião, Paulo Pereira, favorável à trasladação, admitiu “surpresa pela rapidez do processo” deliberativo no Parlamento. E Afonso filho, rejubilando com a agilidade dos deputados socialistas, anunciou que estava a ser preparado “um programa muito completo e extenso” para a trasladação.

Desde que Afonso filho fez a proposta a Afonso pai (e ao conselho de administração da Fundação Eça de Queiroz), e até à marcação da data da trasladação, passando pela elaboração, apresentação e votação do projecto de resolução na Assembleia da República, relativo à “Concessão de Honras de Panteão Nacional a José Maria Eça de Queiroz”, passaram menos de três anos.

Muita tinta correu já acerca da trasladação dos ossos de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional. Mas, se muita tinta correu, muito ficou também por dizer.

Desde que morreu, os ossos de Eça têm sido penosamente arrastados de um lado para o outro. Primeiro de Paris para o Havre, na costa da Normandia, em França; depois, de navio, para o Cais das Colunas, no Terreiro do Paço, em Lisboa, para serem depois sepultados em Verdemilho, o que não se concretizou, tendo sido conduzido, finalmente, até ao jazigo dos condes de Resende (família da mulher do romancista), no cemitério do Alto de S. João, na capital.

Mais tarde, no início da década de 1930, a viúva do escritor envidou esforços para o trasladar para Verdemilho. Mas dessas diligências nada saiu. Em 1989, a Câmara Municipal de Lisboa informou os herdeiros mais próximos de que o jazigo no Alto de S. João ia ser vendido (possivelmente por dívidas ao município) e perguntou-lhes que destino pretendiam dar aos restos mortais do escritor.

Tendo essa notícia chegado ao conhecimento do então Presidente da República, Mário Soares, este fez saber às duas netas sobrevivas que o Estado português pretendia trasladar os restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional. Ambas, em conivência com a viúva de um dos netos, Maria da Graça Salema, recusaram por unanimidade a intenção política do Partido Socialista, preferindo que o corpo do escritor fosse convenientemente sepultado, com as devidas honras, nas terras do cemitério de Santa Cruz do Douro. Com isso, os dias de desolação de Eça no Alto de S. João pareciam ter acabado.           Como vimos antes, é apenas circunstancial a presença dos ossos de Eça de Queiroz no prazenteiro concelho de Baião, terra onde não tinha raízes. Foi essa, porém, a decisão das netas, que tão cuidadosamente montaram a ida dos restos mortais do escritor para Tormes. As duas renunciaram aos louros do Panteão Nacional — um gesto que teve, inegavelmente, qualquer coisa de superior —, optando por levar o avô para junto dos filhos e de outros descendentes, que jaziam igualmente em Tormes.

Trinta anos depois, o assunto foi ressuscitado — indevidamente, sem consultar a totalidade dos bisnetos, limitando-se a confrontá-los com o facto consumado — pelo então presidente da Fundação Eça de Queiroz, Afonso pai, dando seguimento a uma sugestão de Afonso filho. Com isso, inutilizavam-se os esforços das netas e da criadora da Fundação e desrespeitavam-se as suas últimas vontades.

Repare-se que Maria da Graça Salema deixara bem claro, por ocasião da cerimónia comemorativa do centenário da morte de Eça de Queiroz, em Tormes, a 16 de Agosto de 2000, que aquele

               “é o local autêntico e mais densamente evocativo do Escritor que hoje, no mundo, é lido, estudado e amado. As suas breves visitas logo o cativaram, imaginou aqui o sítio ideal para que os seus, um dia, vivessem uma vida simples, com os filhos respirando o ‘grande ar’, livres na natureza generosa. Mas o sítio real foi transposto e, por efeito de arte, tornou-se matéria de criação literária. A ficção sobrepôs-se à realidade, o nome de Tormes é, actualmente, o nome por que é conhecida a outrora Casa da Quinta de Vila Nova e a pequena estação do Caminho de Ferro de Aregos. Para mim entendo esta ocasião como uma homenagem às muitas pessoas que viveram em Vila Nova — que se dedicaram e aqui perpetuaram a memória de Eça de Queiroz. Entre todos quero destacar a minha sogra, Maria Eça de Queiroz de Castro, filha de Eça que para aqui veio viver por volta de 1920.

A ela que chamou este sítio à vida, que aguentou todos os desconfortos e problemas, que se agarrou à terra, que juntou tanta coisa que pertencera ao Pai, que lutou enfim com coragem, com ânimo e sem queixumes, se deve ‘a casa Eça de Queiroz’.

            Permito-me recordar a sua chegada com a Mãe, Emília de Castro Pamplona, com o filho, Manuel, e dois sobrinhos Eça de Queiroz — José Maria e Manuel. Vinham ainda acompanhados de duas criadas, um canário e uma tília para plantar. Subiram a serra num dia 26 de Março, dia em que — nesse ano — o cuco cantou pela primeira vez.

            Procuravam um refúgio já que a família que defendera abertamente a causa monárquica lhe sofria agora as consequências: seu marido estava preso e os irmãos isolados em Vigo.

            A casa que os acolheu era mais ou menos a que Eça descreveu no momento da chegada de Jacinto e José Fernandes que — por sua vez — era a descrição real daquela que Eça encontrara quando veio visitar a propriedade que sua mulher acabara de herdar. As suas obras não tinham sido perfeitas — o chão estava mal remendado e não todo, ao telhado tinha sido dado um jeito, e tinham-se caiado as paredes. Não havia praticamente móveis — deitaram colchões na sala grande, hoje Biblioteca da Fundação, e todos aí dormiram — não sabe por quantas noites. Aqui se refugiaram, pois, as senhoras da família e as crianças, numa casa vazia, mal concertada e desguarnecida. Desde então foi esta casa de minha sogra.

            Quando aqui vim em 1941, acabada de casar, encontrei-a feliz, a casa muito simples e cheia de flores que alegravam e perfumavam.

            A minha sogra era uma mulher do Mundo, mas em Santa Cruz criou o seu mundo.”

Maria da Graça Salema proferiu estas palavras na presença do Presidente da República (Jorge Sampaio), do ministro da Cultura (José Sasportes), do ministro da Educação (Guilherme de Oliveira Martins), do presidente das Comemorações do Centenário da Morte de Eça de Queiroz (Carlos Reis), da Presidente da Câmara Municipal de Baião (Emília dos Anjos Pereira da Silva) e de vários representantes da família de Eça de Queiroz.

Não adianta, pois, iludir a mais incómoda das questões: Maria da Graça Salema, muito provavelmente, não concordaria com a trasladação dos restos mortais do avô do seu marido. Aliás, só isto explicará que antes da sua morte essa hipótese nunca tenha sido levantada pelos membros da Fundação, nem por Afonso pai, nem por Afonso filho.

Naquela mesma circunstância, o discurso de Jorge de Sampaio, então Presidente da República (que novamente se deslocou ao túmulo de Eça de Queiroz para ali colocar uma coroa de flores, concedendo-lhe honras de Estado), não andava muito longe das palavras de Maria da Graça Salema:

            “Eça de Queiroz, com a sua inteligência e a sua ironia, foi o primeiro a pôr a nu o que se escondia por detrás de algumas grandes convenções políticas, sociais e culturais ritualizadas, mostrando as contradições e os equívocos. Eça seria o primeiro a recusar que o sepultassem na sua própria glória oficial. (…) Há em toda a obra de Eça de Queiroz um sentido que aponta ao progresso, à solidariedade e ao futuro, ainda quando, no final da vida, se transmuta em franciscanismo, em amor da natureza e de todos os seres vivos. É no seio dessa natureza que ele tanto amava e onde agora repousa que estamos hoje a lembrá-lo e a prestar-lhe homenagem.”

A Fundação Eça de Queiroz, na alínea e) do artigo 4.º dos seus estatutos, diz que é seu objectivo “contribuir para o desenvolvimento cultural, agrícola, turístico e socioeconómico da região onde está instalada a sede, através da promoção de actividades culturais, agrícolas, turísticas, de recreio, de lazer e outras que se considerem importantes para a concretização do fim em vista”.

Promover a trasladação dos restos mortais do escritor, levando-os de Santa Cruz do Douro para Lisboa, só muito dificilmente pode ser entendido como uma defesa da importância cultural e económica daquela região.

A campa de Eça de Queiroz no cemitério local não torna apenas aquela terra atractiva aos visitantes — será mesmo uma das razões para os portugueses de outros sítios visitarem Tormes —, também imprime carácter ao município (seriam muito menos os portugueses a conhecer Santa Cruz do Douro se o autor d’Os Maias não estivesse lá sepultado).

Às povoações do interior tiram-lhes as maternidades e as urgências, as escolas primárias e as estações de correios, os tribunais e os quartéis da GNR. Se tirarem a Tormes os ossos do mais notável dos seus moradores, não é apenas a região — toda a região — que sofre com isso, que se despersonaliza, que fica desprovida de um polo de atracção e de uma das suas grandes sugestões culturais. É também a própria Fundação que, ao remover para longe os ossos do seu patrono, perde uma das suas principais referências e um dos marcos históricos do seu roteiro.

O argumento capital do bom Afonso filho é que Eça é de todos os portugueses e que, por isso, os seus ossos devem estar em Lisboa. Este ponto de vista, desvalorizador da província, vem apenas dar força à opinião daqueles que dizem que “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. Ou, como diz João da Ega n’Os Maias, “Lisboa é Portugal (…). Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!”.

Além de não ser um local cheio de atractivos, o Panteão não é de entrada totalmente gratuita. Só aos domingos é que a visita é gratuita para os residentes nacionais. Nos restantes dias, as crianças e jovens até aos 12 anos não pagam; entre os 13 e os 24, paga-se, mediante comprovativo de idade, 4 euros; dos 25 aos 64 o preço é de 8 euros; e a partir dos 65 anos paga-se 4 euros.

Eça de Queiroz “pertence a todos os portugueses”, como defende Afonso filho, o presidente da Fundação, mas, se é de todos os portugueses, porquê o princípio de que a presidência da Fundação deve estar sempre na família?

É certo que “Eça não pertence a uma família ou instituição”, como o filho de Afonso pai também afirmou, mas sim à comunidade (estranha forma, repito, de conceber uma comunidade nacional, dando a entender que ela está mais bem representada em Lisboa do que em Santa Cruz do Douro, como se a capital fosse mais portuguesa e mais condigna que a portuguesíssima e antiquíssima Santa Cruz do Douro).

Mas o que Afonso filho, e os deputados do Partido Socialista que levaram o projecto de resolução ao Parlamento não dizem é que a decisão de trasladar os restos mortais de Eça para o Panteão Nacional significa que, a partir desse momento, quem o quiser homenagear vai ter de pagar 8 (oito) ou 4 (quatro) euros. A isto se chama comercialização ou mercantilização de ossos humanos.

Pagar para visitar o túmulo de Eça de Queiroz fere mortalmente a tese de que o romancista é de todos os portugueses.

Em contas direitas, Eça de Queiroz será apenas dos portugueses que quiserem ou puderem pagar para lhe prestar homenagem. Ao menos, no cemitério de Santa Cruz do Douro, a gratuitidade é total, nos 365 dias do ano.

Diz-se que o Panteão Nacional recebe milhares de visitas anuais. Eu, que vivo quase ao lado da Igreja de Santa Engrácia, e por ali passo todos os dias, posso assegurar que a esmagadora maioria — para não dizer a quase totalidade — dessas visitas é composta de turistas estrangeiros, que ali vão para admirar a largueza de vistas ou de horizonte do respectivo terraço, e não para ver os túmulos de Teófilo Braga ou Óscar Carmona. De resto, é raríssimo ver portugueses no interior do monumento.

A importância verdadeiramente nacional de Eça de Queiroz dispensa a consagração da capital, porque, como alguém lembrou no meio desta polémica, a sua projecção está garantida na literatura imperecível que ele nos deixou. Quem quiser visitar o túmulo do autor de A Cidade e as Serras deveria continuar a ir a Tormes, afinal, a distância entre Lisboa e Tormes é exactamente a mesma que percorre quem se desloca de Tormes até Lisboa…

Garantem alguns que são poucas as pessoas que visitam o cemitério de Santa Cruz do Douro por causa da campa de Eça de Queiroz. E o Panteão? Quantos o visitam porque estão lá os monumentos fúnebres de Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Sidónio Pais, Almeida Garrett, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, João de Deus, Sophia de Mello Breyner, Humberto Delgado ou Óscar Carmona?

A esmagadora maioria dos portugueses, incluindo os mais bem informados, não fará a menor ideia de quem está no Panteão Nacional. Se fizéssemos um inquérito de rua, quantos saberiam dizer, sem hesitar, três ou quatro daqueles nomes?

Habitando o pretensioso e desinteressantíssimo Panteão, Eça de Queiroz sofrerá a perniciosa vizinhança de Óscar Carmona, presidente da ditadura salazarista, que apoiou a limitação da liberdade de expressão e ajudou a instituir formas de censura aos jornais e aos livros. Sendo uma figura que se confunde com o próprio Estado Novo, deveria ser saneado do Panteão Nacional.

Se a ideia de pôr escritores e artistas ao lado de militares e políticos — como se a literatura e a arte estivessem num abraço muito apertado com a política e o exército — não faz qualquer sentido, que sentido fará colocar Eça de Queiroz ao mesmo nível de um dos maiores símbolos do salazarismo? Não será estapafúrdio? Não será insultuoso e ofensivo para a memória de Eça de Queiroz? Não será esta uma estranha maneira de engrandecer o autor d’O Crime do Padre Amaro e d’O Conde d’Abranhos?

Levar Eça de Queiroz para o Panteão é reduzi-lo a uma comédia bem-comportada. É amansar a sua dissensão, a sua blasfémia, o seu sentido crítico. É convertê-lo num ícone inofensivo, mergulhando-o numa ideologia oficial, desprovida de ideias e de valores intelectuais. Logo ele, um dos escritores que, no século XIX, mais se bateram para instaurar uma legitimidade literária independente do Estado, contribuindo para a sua progressiva autonomia em relação à política.

Os textos de Eça de Queiroz são perturbadores e subversivos de todos os poderes, a começar pelos literários e a acabar nos políticos. Colocá-lo no Panteão é domesticá-lo como propriedade do Estado e como objecto de devoção oficial.

E se a política, em vez de estar preocupada em desenterrar os ossos do escritor, se pusesse a pensar na força dos seus textos, onde aparecem frases como “A política é a ocupação dos ociosos e a ciência dos ignorantes”?

Como disse António Ramos de Almeida, o poder corrosivo da sua obra obriga-nos a concluir que nenhum outro romancista se debruçou, como Eça de Queiroz, e com tanta perspicácia, “sobre a decadência das classes dirigentes, nas suas ideias informadoras e nas suas tradições decrépitas, no ridículo das suas velharias e na pomposa fraseologia das mistificações, que ainda hoje perduram. E foi, é e será essa a sua maior glória. Eça de Queiroz descobriu, como ninguém entre nós, os podres da classe dominante e os esforços que ela faz para os mistificar”.

Querer confinar, numa instituição dedicada à preservação e ao consenso da narrativa nacional, o corpo de alguém que passou a vida a criticar os governos e os políticos, e que estava comprometido contra todas as formas de academismo, é, repito, ofensivo. Querer forçar a trasladação dos seus ossos para o Panteão, o símbolo maior de uma cultura oficial que combina patriotismo e clericalismo de Estado, é negar-lhe tudo isso. Pior: é trair a sua memória. É fazer uma antimemória de Eça de Queiroz.

Declarar-se proprietário dos ossos de Eça de Queiroz, chamando a si o cuidado ou a gestão dos seus restos mortais, é uma forma de o Estado transformar o escritor num súbdito da República, violando a vontade expressa, em 1989, pelas netas e pela mentora da Fundação Eça de Queiroz.

Confesso que o Panteão Nacional me é antipático. Como morador no Campo de Santa Clara, onde se situa a Igreja de Santa Engrácia, calcorreio diariamente as suas imediações e a sua fisionomia parece-me desarmoniosa, em claro contraste com a paisagem urbana envolvente.

A ideia e a lógica subjacentes ao Panteão Nacional parecem-me igualmente antipáticas. A sua razão de ser não podia ser mais contrária à cultura política moderna, assente na ideia do colectivo como principal agente e actor da mudança social, substituindo-se a antiga “lei dos poucos” pela “lei dos muitos”.

O Panteão foi criado numa época dominada pelas teorias dos “grandes homens” como motores da História, por ideologias que desprezavam o processo histórico. Teorias ou ideologias que transferiam para o território profano da política uma lógica eminentemente cristã.

As honras de Panteão são o Estado ritualístico no seu grau superlativo, ou na sua dimensão mais desmedida. São o Estado com o seu templo, os seus padres, altares, ofícios, vestimentas, liturgias, orações, invocações, etc.

Não por acaso, o estatuto de Panteão Nacional é reconhecido, entre nós — “sem prejuízo da prática do culto religioso” —, a três edifícios religiosos: a Igreja de Santa Engrácia (Campo de Santa Clara, Lisboa); o Mosteiro dos Jerónimos (Belém, Lisboa); e a Igreja de Santa Cruz (Coimbra).

Se as honras de Panteão são uma forma de canonização, o edifício do Panteão é um lugar, digamos assim, de peregrinação e de culto, que promove — como em qualquer santuário — a adoração dos túmulos e das relíquias.

Repousando no Panteão, os chamados “heróis da pátria” ou “grandes vultos” sofreriam um processo de santificação que os colocava em contacto com o “mundo dos deuses”, tal como antes ocorria com os reis, as rainhas, os guerreiros ou os santos. Isto em contraste com os monumentos dedicados ao soldado desconhecido da Grande Guerra, que denotam sentimentos patrióticos demo-republicanos.

Não existem sociedades sem memória, nem sociedades sem história. E tal como não há história sem memória, também não pode haver memória sem história. As sociedades precisam de ambas as formas de representar o passado, e ambas devem alimentar-se reciprocamente.

A missão do Panteão é preservar e respeitar a memória, não é fazer história. Mas se a memória não tem por função fazer história, dela não pode nem deve fazer tábua rasa, muito menos dos avanços da investigação historiográfica. Se os métodos de pesquisa em história evoluem e se aperfeiçoam, as políticas de memorialização devem acompanhar tais desenvolvimentos e adaptar-se às novas exigências e sensibilidades sociais.

Duvido muito que a ideia de uma sepultura colectiva para os grandes homens — no Panteão Nacional há apenas duas mulheres, Amália Rodrigues e Sophia de Mello Breyner, para ali trasladadas há pouquíssimo tempo — corresponda à sensibilidade memorialística contemporânea, que considera ultrapassada e anacrónica as concepções da memória assentes nos grandes homens e nos grandes heróis.

A própria ideia de uma instituição dedicada a hierarquizar e separar grandes homens de pequenos homens, e grandes mulheres de pequenas mulheres, é altamente discutível. Eusébio sim, mas Rui Jordão, Rosa Mota e Carlos Lopes não? Sophia de Mello Breyner sim, mas Agustina Bessa Luís, Almada Negreiros, Paula Rego, Adelaide Cabete, Natália Correia ou Maria Helena Vieira da Silva não? Amália Rodrigues sim, mas António Variações e Carlos Paredes não? Como saber onde parar? E haveria Panteão suficiente para tanta gente?

O decreto-lei que define e regula as honras de Panteão assenta num entendimento estreito e impreciso do mérito ou da grandeza: “As honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”.

A última coisa que se pode dizer é que se trata de um critério objectivo. Na ausência de uma receita pré-estabelecida, estandardizada e formalizável, que nos permita estabelecer as características daqueles que merecem estar no Panteão Nacional, a decisão será sempre apanágio de uma elite e, dentro dessa elite, de uma certa casta social, cultural ou política, interessada sobretudo na reprodução da sua própria dominação.

O Estado e as elites estão bem presentes nas honras de Panteão. Estão presentes no poder de nomear e de atribuir condecorações ou títulos de nobreza burocrática, no poder de decidir a grandeza e a deificação; no poder de intervir directamente no domínio do simbólico, de controlar a exibição e a capitalização (ou retorno) do capital simbólico, o qual só existe pela sua própria exibição.

Através de uma política de simplificação demagógica, o Panteão dedica-se a propagar a ilusão de uma memória comum, assume-se como um mecanismo de apropriação das estruturas mentais e de produção de um campo cultural unificado. Esta unificação é uma condição do domínio cultural do Estado. Porém, nas sociedades modernas, a pertença de cada cidadão a uma pluralidade de grupos provoca uma fragmentação das memórias e torna quase impossível a construção de memórias unificadas.

Com as honras de Panteão, o Estado não constrói apenas, à sua medida, uma memória unificada, trabalha também para o seu próprio engrandecimento. Mas um engrandecimento estéril, literal, ritual.

A unificação da memória social serve para mascarar a miséria real das condições de produção cultural no nosso país.  A política pode ser uma actividade nobre, mas pode também ser um domínio da manipulação e do culto da aparência, da ilusão e do embuste. A política tem o condão, tantas vezes, de nos afastar das realidades de facto, dando-nos a mentira e a farsa.

Em Portugal, as políticas culturais estão mais interessadas em distrair e menos em informar ou educar; estão muito menos preocupadas com o nível cultural da população do que com o mercado e com os negócios. A valorização económica de tudo o que resta dos artistas é um bom exemplo: hoje, o património cultural é indissociável do turismo e das actividades de rentabilização e de captação de recursos económicos. Deste ponto de vista, os “grandes nomes” da cultura, tal como os monumentos, formam um mercado com potencial económico, que importa explorar e pôr a render.

O campo político tem uma visão muito particular do campo cultural, e os políticos, regra geral, só conhecem a cultura, a literatura e as artes sob a forma de homenagem, da comemoração, da efeméride ou das manifestações que emanam do turismo cultural.

Há bens colectivos, como bibliotecas e arquivos históricos municipais, palácios e palacetes (como o Palácio Burnay, na Rua da Junqueira, abandonado e maltratado, para o qual já chamou a atenção, e bem, Afonso filho), entre outros monumentos, que estando pouco ou nada subvencionados, sobrevivem em estado “chocante”.

Apesar de terem um carácter “não económico”, justificam amplamente a intervenção do Estado, pois são eles que garantem (muito mais do que o Panteão e suas cerimónias oficiais) a transmissão do património cultural às gerações futuras. Veja-se as condições de trabalho na investigação científica, veja-se o que se passa na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional.

Nesta última, sugiro uma visita à sala dos microfilmes ou que consultem a colecção “Pombalina”, hoje totalmente desmembrada, em nome de uma política criminosa de digitalização das cerca de 14 mil obras manuscritas existentes na Biblioteca Nacional. Há neste momento códices medievais totalmente desmembrados, em fragmentos, que nunca mais voltarão a ser o que eram.

Com o dinheiro proveniente do famoso PRR, a Biblioteca Nacional tem agora como uma das suas grandes prioridades a digitalização daquelas obras manuscritas — sem que se conheça ainda qual a durabilidade das imagens digitais e sem que se perceba qual o investimento na sua conservação —, o que tem criado disfuncionalidades no interior da instituição. Com isto, assistimos a uma total inversão de valores: a missão principal da Biblioteca Nacional está no registo escrito ou impresso, não na imagem. Se, de repente, os responsáveis decidissem que o que é bom é fazer exposições para crianças, a Biblioteca Nacional tornava-se num parque infantil…

Os políticos profissionais dizem quase todos que a cultura é um valor fundamental da sociedade, mas encaram depois as instituições da cultura como armazéns reconfortantes de mercadorias, úteis pelos seus efeitos simbólicos, em particular nos momentos de encenação do oficial, como nas comemorações, nos centenários ou nas festas culturais.

Em vez da trasladação dos ossos, o Estado deveria dar prioridade à conservação e tratamento dos documentos dos nossos grandes escritores, documentos que tem à sua guarda, mas cujo acesso, por falta de meios materiais e humanos para os catalogar e digitalizar, nem sempre é fácil.

Face à escassez de recursos e a políticas disfuncionais, o Estado considera mais importante patrocinar a trasladação dos restos mortais de um romancista que repousa, consagradíssimo, no “Panteão” do cemitério de Santa Cruz do Douro, do que investir, por exemplo, num Museu da Escravatura em Lagos. Vejamos.

Em 2009, numa zona próxima das muralhas medievais de Lagos, conhecida como Vale da Gafaria (lazareto, leprosaria ou hospital de leprosos), quando estava a ser construído um parque de estacionamento subterrâneo, fez-se um estranho achado arqueológico: 158 esqueletos humanos espalhados em sinistras posições de morte e abandono.

As ossadas, nem todas completas, foram exumadas e levadas para o Laboratório de Antropologia Forense da Universidade de Coimbra, para ali serem analisadas, de modo a determinar os sexos, as idades, as causas das mortes, etc. A liderar o estudo ficava a antropóloga e professora universitária Maria Teresa dos Santos Ferreira, que participara nas escavações em Lagos.

Da investigação realizada, chegou-se à conclusão de que se tratava de uma descoberta de primeira magnitude histórica e arqueológica: tratava-se dos primeiros e únicos registos, na Europa, da presença de pessoas escravizadas (e, até hoje, o mais antigo identificado no mundo). É esta a opinião de Maria Teresa Ferreira. Segundo a antropóloga, o cemitério de pessoas escravizadas de Lagos é uma das “mais antigas” colecções do mundo de indivíduos escravizados e a única de grandes dimensões conhecida na Europa. Mais tarde, em 2020, também no Vale da Gafaria, foram descobertos vestígios líticos que se supõe remontarem a uma ocupação humana com cerca de 6000 anos.

Expostos em diferentes posições, alguns dos quais amarrados com cordas, como se para ali tivessem sido atirados sem qualquer cuidado, aquelas ossadas, como se veio a perceber, eram de pessoas escravizadas, vítimas do tráfico negreiro de África para a Europa, de entre os séculos XV e XVII. Da análise feita aos esqueletos, os investigadores descobriram que a maioria daqueles esqueletos era de origem bantu, provavelmente vindos das regiões da Guiné e do Congo.

No século XV, os barcos portugueses regressavam de África carregados de escravos e de outras mercadorias. Neste contexto, Lagos foi o primeiro posto de desembarque europeu de escravos e um dos mais importantes portos desse comércio negreiro. Graças a esta descoberta, será possível desenvolver novas perspectivas sobre aquele período da História de Portugal.

Na opinião de Maria Teresa Ferreira, os ossos de indivíduos escravizados — 107 dos quais adultos e 49 crianças (foi impossível identificar os restantes dois esqueletos) — estão associados a uma história de grande violência e maus tratos, bem patente quer nas fracturas e lesões identificadas nos esqueletos (nas mandíbulas, antebraços, mãos, pés, pernas e crânios), quer nos sinais de brucelose, deficiências nutricionais e doenças degenerativas (por exemplo, artrose).

A importância mundial deste achado arqueológico justificava a criação de um Museu da Escravatura em Lagos, de um memorial no sítio onde as ossadas foram encontradas (no Vale da Gafaria) e de um centro de estudos sobre a escravatura.

Para Diogo Ramada Curto, historiador e professor catedrático, “os vestígios materiais do tráfico e do modo de tratamento dos escravos nas sociedades do Atlântico não abundam. Por isso, a criação de um museu a partir dos 158 esqueletos é um objetivo que deverá ser concretizado”. Por outro lado, considera ainda Ramada Curto, “fazer de Lagos e do Museu da Escravatura um centro de reflexão, onde se cruzam histórias de África, Europa e das Américas, seria uma forma de projetar internacionalmente a cidade” (Expresso, 21 de Julho de 2015). Para esse efeito, Maria Teresa Ferreira chegou a assinar um protocolo com a autarquia de Lagos.

Apesar da relevância desse museu “para a prossecução do acervo do Vale da Gafaria, enquanto polo dinamizador para novos projetos científicos e de divulgação dos achados na zona”, como disse a antropóloga, a Câmara de Lagos não cumpriu com quase nada do acordado.

Fez-se apenas uma espécie de “posto de atendimento” (pomposamente intitulado “Núcleo Museológico Rota da Escravatura”), na dependência do Museu de Lagos, que não dispõe nem de serviços administrativos, nem de serviço educativo, e que conta apenas com um funcionário.

No local onde estava previsto o memorial, o museu e o centro de estudos sobre a escravatura — ou seja, no terreno onde foram encontrados os esqueletos humanos, por cima do parque de estacionamento subterrâneo, entretanto concluído —, a autarquia, em claro desrespeito pelo local e pela sua memória, autorizou a construção de um minigolfe para estrangeiros, que já está em funcionamento.

Em contrapartida, os ossos — pobres ossos! — das pessoas escravizadas permanecem num sótão, em Coimbra. Ficou tudo parado. Mais um sinal da incompetência, insensibilidade, surdez, cegueira e ignorância de alguns políticos locais.

Para começar, o tratamento desta questão devia ser nacional, não local, e objecto de um financiamento especial do Estado. Por um lado, para perceber se há mais corpos na Necrópole da Gafaria de Lagos e, por outro, para promover um debate sobre a melhor forma de dignificar os restos mortais daquelas pessoas.

Por outro lado, ainda, para se discutir o que fazer àquelas ossadas: deveriam ir para os países de origem? Voltar para o terreno onde foram encontrados? Ficar num espaço onde possam ser devidamente tratados e estudados? Ou, porque não, trasladá-los para o Panteão Nacional, como símbolo da história da gente comum?

O que não pode continuar a acontecer é esta duplicidade de critérios, em que os ossos das pessoas ilustres são tratados com todas as honras de Estado, e os restos mortais das identidades desconhecidas, os despojos de vítimas de crimes violentos por parte do Estado, continuam a ser ultrajados — veja-se a homenagem à memória do Infante D. Henrique, em Lagos, em 2018, que teve todas as honras e onde se omitiu a sua responsabilidade na promoção do tráfico de pessoas escravizadas — e alvo de racismo. Um racismo que, passados cerca de cinco séculos, continua a recair sobre os ossos dos daqueles seres humanos. Ou, como dizem os Gaiteiros de Lisboa, no seu hino à padeira de Aljubarrota: “Brites de Almeida, seja história ou seja lenda, revelou-se na contenda modelo de liberdade, fazia pão, broa de milho e bolos, não sabia marcar golos, não foi para o Panteão”.

Um Museu da Escravatura em Lagos, sediado na antiga Gafaria, no terreno onde foram encontrados os restos mortais de 158 pessoas escravizadas, não dá música para fanfarras, nem se coaduna com os sofismas e a retórica estupefaciente dos nossos governantes quando falam do nosso passado colonial. Como disse a então vereadora da cultura da autarquia de Lagos, este é “um tema muito sensível. As ossadas serão entregues à Universidade de Coimbra”, daí que estivesse fora de questão “expor os esqueletos”, o que seria, na sua opinião, “demasiado chocante”.

Nas últimas décadas, o Estado português tem-se multiplicado em comemorações. As comemorações saturam as nossas vidas. Produzem uma dilatação infinita da memória, ao ponto de lhe retirar toda a consistência e todo o significado.

Mas a política, hoje, tem muito pouco a comemorar. As condições miseráveis em que funcionam tantas e tantas instituições culturais deste país deveriam obrigar os partidos políticos, sobretudo os que tiveram e têm responsabilidades governativas, a guardar um pudor recatado e retraído.

Mas não: os Governos, em particular a tutela da Cultura, preferem fazer exactamente o contrário, ocupando parte significativa do seu tempo e recursos em comissões nacionais de comemorações (de centenários, efemérides, etc.) e em curadores e comissários disto e daquilo, para assim nos distraírem dos verdadeiros imperativos da sua missão: preservar e valorizar o património e as actividades culturais, dinamizar o acesso aos bens e serviços culturais, promover a sua democratização e descentralização, enfim, contribuir activamente para o desenvolvimento cultural da população.

Os políticos gostam muito que os intelectuais vão à sua corte. E estes, por sua vez, estão quase sempre dispostos a participar e a jogar o jogo do espectáculo da política, a fazer as concessões necessárias para pertenceram ao grupo e terem a sua parte na sumptuosidade do Estado, garantindo deste modo os benefícios directos e indirectos da notoriedade mediática, do prestígio nos órgãos de comunicação social e dos convites para isto e para aquilo.

Quanto menos a cultura e a arte forem experimentadas interiormente e com profundidade, maior a necessidade de suportes exteriores e de parâmetros de referência tangíveis, cuja função é ostentarem a sua ruidosa e efémera superficialidade, além de garantirem visibilidade mediática aos políticos, aumentarem as suas taxas de audiência e chamarem a atenção para si próprios, através dos meios de comunicação social, que vivem de os exibir.

Entre a formal gravidade das palavras dos políticos e a vacuidade das ideias dos promotores da trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz; entre a evocação da memória do romancista, com a mais que previsível pirotecnia de lugares-comuns e a mais crassa parolice, com o intuito de chamarem a si o prestígio do grande escritor; entre os abraços e as beijocas fervorosas aplicadas nas faces bolachudas dos nossos académicos e intelectuais; no meio de toda essa odisseia de vaidade, assistiremos ao insólito, macabro e anacrónico desfile dos ossos do romancista.

A trasladação dos ossos de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional em nada contribui para melhorar as condições da vida intelectual nem a perspectiva cultural dos portugueses.

No entanto, a polémica que gerou poderia ter servido, ao menos, para promover um vasto e risco debate sobre as relações que uma sociedade deve manter com o seu passado, uma reflexão sobre a herança cultural e a sua transmissão ou sobre as representações do passado e dos legados a fazer às gerações seguintes.

Poderia ter servido para pensar o poder especial que as sociedades continuam a outorgar aos ossos. Não a todos os ossos (como se viu no exemplo dos ossos encontrados em Lagos), apenas aos ossos dos chamados “heróis da cultura”. Estes, ao contrário dos ossos das pessoas escravizadas, encontrados na antiga Gafaria de Lagos, parecem emanar uma poderosa força ou energia, exercer uma função mágica, produzir um efeito qualquer, atrair emoções intensas ou superstições, a crença numa forma específica de relação entre dois mundos (o terreno e o sobrenatural).

A aura de magia e de mistério que rodeia os grandes artistas expressa-se também na reverência aos seus ossos, nessa espécie de comunhão espiritual ou intelectual que os vivos mantêm com eles. Através deles, cria-se a ilusão de que nos mantemos em contacto psicológico com a substância profunda dos seus antigos proprietários, de que estabelecemos, com eles, uma espécie de intimidade, como quando tocamos ou mexemos nos objectos que lhe serviram em vida.

Os objectos pessoais (a secretária onde escrevia, os manuscritos das suas obras, as dedicatórias nos livros, as primeiras edições, os óculos e as canetas, a faca para abrir cartas, a boquilha ou o cachimbo, um pedaço do seu cabelo) são tratados como relíquias porque em tudo o que tocaram e em tudo o que fizeram, digamos assim, os grandes artistas eram inteiramente eles: o seu ADN está em tudo o que esteve em contacto directo com o grande escritor. O culto da santidade do artista e a sua inspiração pela divindade está na base desta obsessão por certos objectos (como se fossem coisas santas) e ajuda a explicar, por exemplo, a compulsão dos coleccionadores.

Como disse Philippe Junod, “a sacralização do campo estético (…) é um facto genérico desde o início do século XIX. O culto da arte desemboca no culto do artista, incensado como deus na terra, santo, herói, ou profeta, através do jogo de uma série de práticas, de formas e de rituais tipicamente religiosos: comemorações solenes, invocações, orações, peregrinações e adoração de relíquias e de santuários” (P. Junod, “(Auto)portrait de l’artist en Christ”, catálogo de L’autoportrait à l’âge de la photographie, Lausanne, 1985).

Visitar os sítios ligados à vida dos grandes artistas — a casa onde nasceu, os locais onde trabalhava, o hospital onde esteve internado, etc. — assemelha-se às peregrinações a santuários. E a profissão de conservador da casa-museu do grande escritor é uma forma moderna e laica da burocracia religiosa descrita por Max Weber.

As celebrações de efemérides, a difusão em grande escala de cópias das obras de arte, de reedições dos livros e os estudos especializados constituem uma forma de proselitismo de ressonância religiosa: da mesma forma que na tradição hagiográfica a santidade só é autêntica na condição de ser reconhecida pelas autoridades eclesiásticas, o culto dos artistas só é legítimo se for reconhecido pelos especialistas em arte.

O reconhecimento e o culto dos grandes artistas pode não se fazer em nome da religião e sim da criação. Mas isso não apenas remonta ao culto grego dos heróis e ao culto cristão dos mártires, como mostra que passou a haver um investimento religioso no estético, ou uma organização religiosa do mundo artístico. A arte tornou-se numa forma de religião, a religião dos génios e dos grandes artistas, e as cerimónias oficiais que os consagram, subvencionadas pelos cofres públicos, devem ser incluídas nos chamados aparelhos ideológicos da memória oficial.

Mas o poder dos ossos nunca é tão óbvio — tão óbvio que magoa — como quando o Estado se apropria deles para domesticar ou explorar o passado, e dá origem a um conflito familiar, a uma pequena guerra entre descendentes.

Nestas discrepâncias, o imperativo ético que rege o amor pelos mortos, ou as relações de afecto com eles, deveria levar-nos a praticar apenas os actos que os satisfariam. A eles e àqueles que mais próximos deles estiveram.

Era bom que não nos esquecêssemos que os ritos e as cerimónias fúnebres destinam-se, para os crentes, a que o repouso do morto seja alcançado e a salvação atingida. De preferência, da forma menos dolorosa possível para os familiares.

Em 1989, as netas recusaram as honras de Panteão e decidiram levar os restos mortais de Eça para Tormes, a terra que surgiu ao romancista como um cenário de indesmentível encanto, ao ponto de nos ter legado um grandioso relato das suas belezas. Desconheço as circunstâncias que rodearam a escolha de Tormes como sua última morada. Sei, no entanto, que sepultar um morto num local que respeita a sua personalidade é, para os crentes, uma das mais importantes posturas devocionais.

Para os seis bisnetos que estão contra a trasladação dos ossos do seu antepassado para Lisboa, este processo é uma violência, pois fere as suas crenças e devoções.

A hipótese avançada por eles é aquela, parece-me, que melhor respeita as clivagens ou desacordos desencadeados pela memória do seu antepassado.

Os seis advogam a coexistência de diferentes posições, sugerem que é possível encontrar uma solução que conjuga diferentes possibilidades. Por exemplo, concedendo as honras de Panteão Nacional ao escritor, através de um cenotáfio (como já aconteceu com outras figuras ilustres), ficando os restos mortais de Eça de Queiroz em Santa Cruz do Douro, onde descansam desde finais da década de 1980.

O Estado poderia inclusive financiar alguma benfeitoria naquele jazigo, acrescentando-lhe um ou dois elementos escultóricos. Seria essa uma forma de lhe dar outra dignidade, além de atrair mais visitantes para a região. Ou mesmo promover a substituição da Rua do Carmo (já existe um Largo do Carmo) por Rua Eça de Queiroz. E, já agora, por que não, chamar Rua Fernando Pessoa à Rua Nova do Almada? Teríamos assim, no coração da cidade de Lisboa, um conjunto de artérias, ligadas umas às outras, com nomes de grandes escritores portugueses: Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Almeida Garrett e Luiz de Camões (a Rua Garrett vai dar ao Largo Camões).

Como foi lembrado pelo historiador António Araújo, num depoimento que me facultou,

“a lei abre a possibilidade se afixar uma lápide alusiva à vida e obra do homenageado, mantendo-se as suas ossadas no seu lugar original. Creio que é a solução que, em regra, deve prevalecer, já que, para o cumprimento dos objectivos da lei (‘homenagear e perpetuar a memória dos cidadãos…’), não me parece forçoso ou necessário exumar o esqueleto de alguém e depois transportá-lo para um templo laico, numa revisitação algo mórbida do seu funeral (a encenação é, aliás, como não podia deixar de ser, a de um ‘segundo funeral’, agora com pompas de Estado, o que se afigura muito estranho e dispensável). Pior ainda é julgar-se que existem ‘panteonizados’ de 1ª e de 2ª, os que têm os ossos em Santa Engrácia e os que só têm uma placa… De futuro, creio, o Parlamento deveria optar preferencialmente pela afixação de lápides evocativas, mais higiénicas sob todos os pontos de vista, menos mórbidas e, creio, muito mais consensuais, não gerando polémicas desnecessárias como esta que agora existe em torno dos restos mortais Eça de Queiroz. Para a difusão do nome de alguém e para a promoção da sua memória, será até melhor, julgo, que esse nome esteja disperso em vários locais: os ossos no lugar onde repousam, sem necessidade de remexer em cadáveres, com tudo o que isso implica de reabertura de querelas familiares, disputas bairristas, cisões entre capital e província, indagações sobre qual a vontade do morto ou dos seus entes mais próximos; uma lápide no Panteão, estátuas noutros locais, nomes nas ruas e avenidas e, sobretudo, centros de estudo e de investigação sobre a vida e obra do homenageado. Uma lápide no Panteão, estátuas noutros locais, nomes nas ruas e avenidas e, sobretudo, centros de estudo e de investigação sobre a vida e obra do homenageado.”

Tudo isto deveria ser suficientemente persuasivo para o Estado não mexer nos ossos de Eça de Queiroz, evitando contribuir para o tristíssimo espectáculo que é assistir aos descendentes do romancista engalfinhados uns nos outros. E deveria ser suficientemente persuasivo, também, para a maioria dos bisnetos abdicar da trasladação.

Mas estes têm-se mostrado pouco generosos. Parece-lhes mais importante o cerimonial e o ritual de Estado que o respeito pelas crenças dos restantes familiares. Como não têm coragem de aceitar as contradições das memórias — a existência de memórias plurais e concorrenciais —, pretendem impor uma homenagem absoluta e final, definitiva e única. Custe o que custar, com o apoio de políticos cessantes, mais preocupados em aparecer e ser vistos, do que em criar condições para uma actividade cultural e científica dinâmica, transparente e verdadeiramente democrática.

Quanto à “grande casa dos ossos”, a que chamamos Panteão Nacional, será sempre, e apenas, um edifício de mortos, um edifício quase morto. O que, bem vistas as coisas, faz todo o sentido. Porque a nossa é uma cultura da morte. Da morte da cultura e da morte das nossas instituições culturais.

A única forma de responder à memória de um escritor é escrever sobre ele. É reeditar os seus textos e apoiar a investigação, é traduzi-lo para outras línguas, é adaptá-lo ao teatro, ao cinema, à televisão, etc. É isso, não duvidemos, que o mantém vivo e que o torna um parceiro dos vivos em múltiplas e diversas situações. Não é, certamente, desenterrando os seus ossos, roubando-o ao verdejante Minho onde se encontra.

            Como diria o próprio Eça de Queiroz:

“Bem-aventurados os que vão para debaixo do chão, porque vão para uma transformação sagrada. Mal caem sobre eles as últimas pazadas de terra e o canto dos padres, bárbaro e dolente, se perde com o fumo dos círios, o corpo fica só na plenidão da noite e do silêncio perante a grande vegetação esfomeada, ele vai dar-se ali como pasto às bocas sinistras das raízes: ele amolece entre as humidades da terra e desfaz-se em podridões: então as raízes começam a sugar e a comer; a podridão transforma-se em seiva; a seiva sobe pelos troncos, estende-se pelos ramos, palpita selvajamente dentro da árvore, engrossa, fecunda, arredonda-se nas exuberâncias dos gomos, e abre-se depois em folhagens, em florescências e em frutos; e o corpo transformado vê outra vez o sol, as grandes poeiras, e sente os orvalhos, e ouve as cantigas dos pássaros, e vive sereno, repousado, na floresta imensa.”

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