Para o PS, com açúcar e com afecto

O que é certo é que este delírio para que alguns dirigentes socialistas têm arrastado o partido, de há 20 anos para cá, continua em marcha ascendente. Como as poderosas ondas da Nazaré, as cabalas sucedem-se. António Costa foi o primeiro a galgá-las.

Achei graça às recentes afirmações de Ferro Rodrigues quando se soube que o primeiro-ministro estava a ser investigado na Operação Influencer. Até porque partilhamos o mesmo “déjà vu”. As ‘desmemórias’  funcionam como uma estratégia de sobrevivência. Mas há memórias que se tornam estruturais, vão e voltam. O escândalo de pedofilia na Casa Pia, essa instituição do Estado que, como um moinho de carne, transformou em papa os sonhos de centenas de crianças, é uma dessas: “Já vi este filme há vinte anos!”, disse o ex-presidente da Assembleia da República a um qualquer órgão de comunicação social poucos dias depois das buscas em S. Bento. Ora, já éramos dois!

Mas há, seguramente, incompatibilidade entre os nossos espíritos. Da minha parte, recordo sobretudo as tentativas do PS, sendo Ferro Rodrigues um dos seus atores, para manietar a Justiça e, com afinco, o próprio PGR, à época José Souto Moura, e João Guerra, o procurador titular do processo.

O que é certo é que este delírio para que alguns dirigentes socialistas têm arrastado o partido, de há 20 anos para cá, continua em marcha ascendente. Como as poderosas ondas da Nazaré, as cabalas sucedem-se. António Costa foi o primeiro a galgá-las. Após se ter demitido de uma forma airosa, até comovente, o primeiro-ministro decide fazer uma segunda intervenção ao país. Com o inesperado anúncio, Portugal parou. O que viria dali? Ter-se-ia arrependido? Seria como aconteceu quando perdeu as eleições para Pedro Passos Coelho e acabou por sair vitorioso? Essa geringonça acabou por lhe definir o carácter.

Desta vez, António Costa, com o mesmo calculismo político, subia de novo ao palco com uma grande cartada na manga: reunir a oposição. O que lhe estava a acontecer podia bater à porta de qualquer um. Foi esta, e apenas esta, a mensagem que o governante em gestão pretendeu passar: “Como sempre tenho dito e quero agora repetir, à Justiça o que é da Justiça e à política o que é da política também significa que aos futuros governos de Portugal, quem quer que seja o primeiro-ministro e quem quer que sejam os seus membros, tem de ser garantida a liberdade de ação política para prosseguir uma estratégia legítima, desde logo a que vier a ser sufragada pelos portugueses no próximo dia 10 de março”. Ou seja, a Justiça não podia interferir na ação governativa porque esta, mesmo quando anda à margem da legalidade, é sempre legítima.

Mas apenas os seus correligionários se livram de acanhamentos. Com eleições antecipadas marcadas para março, e talvez pensando que ainda era possível, boca a boca, reanimar António Costa, Santos Silva é o primeiro. Na CNN, faz um ultimato ao Supremo Tribunal de Justiça onde o MP abrira, apenas em outubro, o inquérito ao primeiro-ministro: «Cinco meses é um período mais do que suficiente para que o inquérito seja concluído!» Cinco meses! A justiça tinha de ter a rapidez do omnisciente Lucky Luke.

Na mesma senda, o ex-secretário de Estado da Saúde Lacerda Sales, hoje tão na berra com o caso das gémeas brasileiras e que o PS vai usar para uma cremação ritual de Marcelo Rebelo de Sousa, chega a ser enternecedor: «Por que razão é que ainda não houve arquivamento?» Curiosamente, com a recente reviravolta, em que Costa está tão comprometido como o Presidente, assiste-se ao desfilar blasê de Manuel Pizarro que não pretende comentar o assunto para não condicionar a investigação. É só açúcar e afecto…

Mas o mais perigoso, o que todos queriam mas ninguém se atrevera a pronunciar, veio do candidato à liderança do PS, José Luís Carneiro, que, na mochila das ideias a apresentar ao país, traz uma bastante previsível: «É preciso uma reforma na Justiça». Por onde andaria o ministro da Administração Interna, no Governo há oito anos, quando, o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Manuel Ramos Soares, com o resultado de ano e meio de trabalho em livro (“Mudar a Justiça Penal – Linhas de Reforma do Processo Penal”) e depois de o Presidente da República já ter dito que seria imperdoável se a classe política não olhasse com atenção para aquele trabalho, lhes pediu uma audiência parlamentar para que fossem debatidas aquelas propostas? E as propostas que têm vindo a ser feitas pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, não foram do seu gosto?

Ninguém perguntou ao candidato que reforma queria ele então para o país. E eu que sou uma recordadora obstinada senti o tal “déjà vu”. Na gaveta da memória, procuro as escutas da Casa Pia. Lá estava. Ferro Rodrigues, na altura, também teve uma ideia danadinha: «Temos de pedir o controlo da Judiciária imediato pelo Ministério Público…, e eu penso que o Governo tem de ir abaixo!» Desta vez, está visto, a manobra teria de ser invertida.

Já que estou em carga de ‘rememorações’, fica aqui uma nota pessoal. Com a publicação dessas escutas, julgo que em 2006, fui pela primeira vez, e até ver a última, censurada. Tinha saído do Expresso a convite de Henrique Granadeiro para, juntamente com Joaquim Vieira, restruturarmos a Grande Reportagem, título que saía com o DN e o JN. Joaquim era o diretor, eu a operacional. A ideia era interessante, mas foi Sol de pouca dura. Joaquim Oliveira, o homem que os investigadores do caso Face Oculta suspeitavam estar envolvido num plano liderado por José Sócrates, na altura no poder, para controlar a comunicação social, comprara o grupo que hoje se designa Global Media. Tínhamos os dias contados. Eu continuava a investigar a Casa Pia e Joaquim Vieira, siderado por, apesar do escândalo provocado pela saída do livro de Rui Mateus que revelava os negócios da Emáudio e o caso do Fax de Macau, Mário Soares se ter recandidatado pela segunda vez à Presidência, publicava semanalmente uma crónica intitulada “O Polvo”.

Sabíamos que estávamos a dar um passo importante na construção do destino (o nosso, claro). Sempre que Joaquim se reunia com o diretor-geral de conteúdos, olhávamo-nos com um sorriso premonitório: será desta! Bom, não queriam publicar as escutas. E a quem o diziam! Nada feito. Joaquim conseguira convencer em Lisboa, mas, no Porto, o JN saía pela primeira vez sem a revista. Não tardou muito para que Joaquim fosse corrido. Dois de uma assentada, dava muito nas vistas. Fariam a purga faseadamente. E eu, claro, demiti-me. Mas cheia de desejos poéticos e de seguir, manipulando um pouco um conto de Mário-Henrique Leiria: “Sempre cumpri o que assinei, então matei-os e fui-me embora”.

P.S: Como muito bem lembrou este sábado Marcelo Rebelo de Sousa, no site da Presidência da República, assinala-se hoje o Dia Internacional  Contra a Corrupção