Num país pornográfico, a comédia não vai além dos tornozelos

Plenamente integrados no regime mediático, os humoristas portugueses operam como a sua guarda pretoriana, gozando de todos os privilégios e da aclamação nesse edifício inexpugnável. Exercem a sátira com bonomia e moderação no horário nobre, para encherem os bolsos durante os intervalos publicitários.

A vida está boa para quem vive de compor ou reciclar chistes, graçolas, larachas, trocadilhos… Para quê ir mais fundo, desarrolhar as garrafas por onde se bebeu mais ainda antes de nos sair este arroto que se diz que é ser português? De que vale investigar os vícios, manhas, malandrices, os pecadilhos que andam connosco desde cedo, e esses mais graves que se nos agarram e não querem largar, a ponto de deles fazermos gala? Para quem é, com o que se riem os nossos, mais vale ficar pelo superficial, o supérfluo, o folclórico engraçadinho. E fazer vozes, caretas, imitações bacocas. Estes são os grandes êxitos, e qualquer coisa mais rebuscada, menos óbvia dá-lhes trabalho e já não sabem como rir-se.

Se falta material, o mais simples é pegar nalgum dos nossos tantos alarves mediáticos, revirá-lo, passar por gema de ovo, pão ralado, fritar e servir panado. Não chegam propriamente a construir nem personagens nem situações irrisórias, beliscando o absurdo, apalpando com mais força as miragens que temos por aí a saltar à corda na linha do horizonte. Não nos dão o suficiente para formas de escárnio inteligente, nem se pode contar com eles para escrever umas rábulas bem-apanhadas, exemplos de humor mais fino e subtil ou realmente sacana. Também não são propriamente boçais, pelo menos os que se dão melhor.

Poder-se-ia dizer que participam até como difusores de uma certa etiqueta, usam de bons modos, elevam o bom-senso a uma ideologia. Na verdade, a expressão que melhor os define é a de humoristas aguados. Não propriamente insolentes, raramente inconvenientes ou sequer mordazes, em vez de uma sátira feroz, mantêm um regime de paródia suave, a risada que não assusta ninguém, nem os próprios. Não traz nada à superfície, antes aplica um verniz, fica tudo num lume brando, um circo em rotação permanente, que não nos deixa sair do “ramerrão: entram palhaços, saem palhaços, uns mais/ ricos, outros menos, mas todos iguais, todos sem graça” (José Miguel Silva).

É uma classe muito particular de gestores da sua imagem, empreendedores de um bom senso que assume nalguns um registo policiesco, de cassetete a girar. De bufões do regime, são promovidos a agentes de uma certa autoridade, definindo constantemente os limites e os alvos, como se ditassem as regras quanto às espécies e à época de caça. E ao garantirem uma certa margem de conformidade, estes nossos vigilantes que trazem atrás de si as hostes que, treinadas pela televisão, desatam a rir ao primeiro sinal de que vem aí a onda, mostram-se bastante úteis, e são regiamente pagos pelos seus serviços.

Não há missa semanal nos canais mediáticos que passe sem eles, da televisão à rádio, e ainda têm crónicas em jornais e revistas, estão frequentemente nas listas dos livros mais vendidos, desdobram-se em aparições públicas, e dão a cara em anúncios publicitários a cadeias do grande retalho, vão em tournée e enchem salas por todo o país, esgotam a Altice Arena com espectáculos de variedades com um leve tom de mofa, num país que lhes agradece por reciclarem a sua tragédia numa farsa requentada todas as semanas.

Desde o Levanta-te e Ri, o programa na SIC que deu a conhecer toda uma nova geração de comediantes, que se instalou um regime entre o jocoso e o lorpa, e que se lançou sobre o corpo meio esvaído do nosso mediatismo o qual nunca se conseguiu verdadeiramente adaptar a um modelo de produção de conteúdos para encher vários canais todas as horas do dia, todos os dias da semana, constituindo-se meramente como um recreio abandalhado para quem vive boa parte dos seus dias numa espécie de prisão domiciliária.

Estes humoristas são infinitamente escrupulosos na hora de tocar assuntos sensíveis, temas polémicos ou persistentes tabus. Constroem com a máxima cautela os seus perfis públicos, como se eles mesmos fossem marcas, assegurando assim que nenhuma empresa receia associar-se-lhes, montar toda uma campanha com base no prestígio dessas personalidades que, no fundo, se confundem com qualquer das celebridades com que gozam. E se se tornam os seus alvos é por não mostrarem o mesmo nível de competência a gerir aquela forma de impostura, associando-se a causas, mas só às mais convenientes e lucrativas.

Triunfam enquanto acólitos ou até oficiantes nessas cerimónias em que o riso surge como uma unção, ora mais penitente ou inofensivo, ora desistente, num efeito dissuasor para a prática daquele humor que se quer negro, devorante e criador, e de que se perdeu o rasto em português, num tempo em que cintilava mesmo no cadafalso. O que temos para nosso contentamento descontente é mais um bando de comadres soalheiras de roda de um bule de chá e de uma larguíssima mesa onde, mesmo que se adiante a hora, é difícil dar por uma rodada oferecida ao desconchavo. Nem se pegam lá entre elas, mas seguem a hierarquia, segundo quem dá mais a ganhar, e vão-se revezando na tosca intriga, sem dar margem a audácias ou barbarismos de indígena. No fundo, estão de bem com a vida, com a etiqueta social, e até se empenham na preservação do status quo. De tal modo que, se Fernando Rocha andou com boa parte deles ao colo, hoje já se acham superiores, e o mais certo é que sintam a necessidade de se demarcarem das anedotas porcas com as quais ele foi parindo e dando a conhecer esta geração. Não se pode esperar deles uma postura kamikaze, e mesmo o desdém ou o sarcasmo só é usado com uma boa dose de cálculo, devido à ânsia de ser bem recebido em toda a parte, circular nos corredores com os directores de programas e demais figuras gradas, troçando, sim, mas com grandes cuidados, para que não se registe ofensa, não se despertem rancores desses que ficam a aguardar uma oportunidade.

Sendo claro que o maior inimigo do humor só podem ser os velhos hábitos, esses que se herdam de forma quase inconsciente, e sobretudo por uma fraqueza moral, quando um homem abandona a sua inteligência a favor dos humores que encontra já refastelados ao seu redor, cabe a um verdadeiro humorista trazer a discórdia, impor uma revelação escandalosa, capaz de fazer os homens abdicar do decoro e reconhecerem-se pelo que são, aprendendo a desprezar-se e ao mesmo tempo a retirar algum gozo dos elementos baixos que são próprios da sua condição.

Afinal, como notou M. Léon Pierre-Quint, o humor não é tanto uma forma de afirmar uma revolta absoluta da adolescência e uma revolta interior da idade adulta como principalmente uma revolta superior do espírito. Mas para lá chegar é necessário vencer os costumes e as convenções. Qualquer revelação mais profunda sobre nós próprios só será alcançada virando do avesso o que tínhamos dado como certo.

“Onde quer que vá, tenho sempre de forçar alguma barreira do costume, tanto ele barrou zelosamente os nossos caminhos”, escreveu Montaigne.

O prazer humorístico naquele sentido de um comércio intelectual de alto luxo vem sempre de nos libertarmos de algum complexo que se enraizou em nós. Sermos devolvidos a uma inocência um tanto escabrosa, a desse ser aberto – à morte, ao suplício, à alegria – sem reservas. Diz-nos Bataille que esse ser aberto e moribundo, doloroso e feliz, aparece já na sua luz velada, e que essa luz é divina.

Os extremos ligam-se numa tensão frutuosa, o bem e o mal riem-se um do outro, e, agraciado por esse desvelamento, o grito que, de boca torcida, esse ser talvez torça, mas profere, é um imenso aleluia, e soa como uma gargalhada, pois por um momento não consegue acreditar em tudo aquilo que o foi tolhendo, nessa dimensão patética em que o ser se perde juntamente com a sua vocação trocista.

André Breton, no prefácio à sua Antologia do Humor Negro fazia questão de assinalar como, “à vista das exigências específicas da moderna sensibilidade, é cada vez mais certo o facto de as obras poéticas, artísticas e científicas, bem como os sistemas filosóficos e sociais desprovidos desta espécie de humor, deixarem muito a desejar e estarem condenados a desaparecer, mais ou menos rapidamente”.

Hoje, sempre que se discute o humor, isto é normalmente um exercício cabotino que vai no sentido de indagar sobre os seus limites, quando o que melhor define o humor é precisamente esse ímpeto que rompe com algum pudor ou prurido, algum impedimento ou proibição. Ele não tem fins propriamente didácticos, pois a sua função vai no sentido do desacato, da perturbação da ordem, de pôr a ridículo tudo aquilo que se acha arbitrariamente organizado, e que se faz valer como um regime de conduta inviolável.

Cabe ao humorista degradar a hierarquia dos valores tidos como imperiosos, e esse é o conteúdo dessa revolta superior do espírito. Vai de não aceitar que lhe seja ditado como levar a sua vida. E Breton vai ao ponto de assinalar que tentar retirar algum conteúdo didáctico do humor “seria o mesmo que querer tirar do suicídio uma moral para a vida”. E ainda cita, em benefício desta noção, Pierre Piob: “Sendo uma das mais faustosas prodigalidades do homem, e mesmo o seu ponto máximo, o riso atinge as raias do nada e oferta-nos o nada como penhor.”

O riso é já uma forma de vingança. Isto todos o sabemos desde a mais tenra idade. E é por isso que em todas as circunstâncias mais respeitáveis, mais solenes, em que se pretende representar a elevação dos propósitos e das faculdades humanas, ele deve ficar à porta. Rir é a pior das insolências, e ao longo dos séculos, mais até do que por manifestarem certas crenças religiosas, tantos homens pagaram o preço mais alto por exporem ao ridículo esse tipo de imposturas e ludíbrios de que o poder se faz cercar.

Ernesto Sampaio, seguindo as pisadas de Breton, na Antologia do Humor Português vincava como “o sentido de humor garante a quem o possui integralmente o poder de insubmissão, a capacidade de recusar em absoluto todos os valores e princípios situados para além dos limites extremos do entendimento, na zona do dogma e da deificação irracional”.

No fundo, parece muitas vezes que são aqueles que se vêem alvo de troça os que agem defensivamente e requerem a reparação da sua honra, mas esta perniciosa necessidade de preservar a honra e o bom nome o que revela é a presunção daqueles que não hesitam em intimidar e usar de meios punitivos para fazer valer certos títulos ou privilégios. O humor é, na verdade, um último recurso dos mais vulneráveis, daqueles que se acham sujeitos a formas de pressão e coação intoleráveis, e, por essa razão, só é realmente perigoso quando está infundido de um ânimo revoltoso.

Ernesto Sampaio entende que este comporta sempre um elemento sublime, o qual “tem a ver – não só com a revolta contra o espectáculo do mundo e das suas instituições, com o repúdio ferozmente sarcástico dos artifícios caducos do sentimentalismo burguês e das manias delirantes e de perseguição que constituem o arsenal do bom senso, ou com a desmontagem minuciosa dos mecanismos de exploração, que só funcionam quando lubrificados com os santos óleos da metafísica e da razão de Estado –, mas também com a transformação da vida, com a esperança de descobrir um sentido menos precário às razões de viver”. Por essa razão, os verdadeiros limites que se impõem sobre o humor são aqueles que procuram infundir nele todo esse conteúdo que lhe é estranho: os valores de ordem moral a que este é tão avesso, o conformismo e a complacência, o cálculo a que o submetem todos aqueles que têm demasiado a perder com desferir esse hílare golpe que só vai tão fundo quanto se liberta de todas as outras considerações.

Perante épocas em que a percentagem de espírito em cada homem se vê dissipada por toda a vulgaridade que lhes foi infundida pelo espectáculo, o humor que se mostra mais urgente é aquele que assume uma absoluta repugnância pelo medíocre espectáculo da vida em que nos vemos embaraçados, e este é o mais negro possível. Ora, como assinala Breton, este pode ser limitado por muita coisa, “como seja a estupidez, a ironia céptica, o gracejo sem gravidade”. E é só isto o que nos é servido pelos nossos humoristas.

De algum modo somos todos chamados a participar e a ser cúmplices num regime degradado e desgastante, em que a realidade responde sempre pela pior versão possível daquilo que nos seria dado imaginar. Somos adestrados no sentido de aderir à visão mais cínica, de tal modo que qualquer espírito minimamente lúcido se vê permanentemente divido entre a cólera e o cepticismo.

Tudo ao nosso redor colabora na farsa, ao ponto de desistirmos de registar na memória algo mais que um esfumado contorno da sucessão de ridicularias que compõem o quadro da vida pública, poupando-nos assim ao desgaste de sentir que assistimos uma e outra vez à mesma encenação em que figuras de opereta vão representando uma versão caseira da tragédia da humanidade.

A acção, que nos transporta a um cento de cenas e infernos, é inconcebível, retalhada, sem heróis. E neste caldo, como assinalava em tempos Karl Kraus, mesmo o humor não é senão a acusação lançada a si próprio por alguém que não enlouqueceu à ideia de ter suportado testemunhar as coisas deste tempo no seu perfeito juízo. “Além dele, que transfere para a posteridade a vergonha de em tal ter tido parte, ninguém mais tem direito a esse humor”, adianta o satirista vienense.

Se os nossos humoristas se agarram a qualquer discurso para enfatizar os elementos mais reles da tão limitada peça que nos é servida no espaço mediático, talvez estes devessem estudar em profundidade o implacável julgamento a que Kraus sujeitou o “feliz apocalipse” da sua época. Este autor que, num texto de reflexão marcante, se designou a si próprio como o inventor da citação, soube arquitectar um melífluo enredo para fazer ecoar e trucidar a eloquência patética dos argumentos irresponsáveis que permitiram conduzir milhões de homens para a morte.

“Que o meu estilo se apodere de todos os ruídos do meu tempo. Isso provocará, estou certo, o desagrado dos meus contemporâneos. Mas os que depois venham segurem-no de encontro ao ouvido como um búzio donde sai a música de um oceano de lama”, escreveu Kraus.

Ele não se limitava a reproduzir declarações imbecis proferidas pelos protagonistas desse espectáculo que engendra os cenários mais nefandos de forma a garantir certos interesses. Ele provou ser mais habilidoso e diabólico do que qualquer dos seus pares, tendo fundado uma revista – Die Fackel – que manteve ao longo de quase 40 anos para, num processo interminável, zurzir da forma mais desapiedada a sua cidade e os seus contemporâneos.

Naquele período da viragem do século XIX para o século XX, até ao final da Primeira Guerra, quando o Império Austro-Húngaro se desmoronava, ele serviu-se da capital como um laboratório e um posto de observação do fim do mundo. E não se apoiou apenas nos seus fenomenais dotes como literato para levar a cabo esse juízo devorante, mas, como assinalou António Guerreiro, provou ainda os seus magníficos recursos enquanto homem de palco, um actor do verbo, da escrita inviolável, da razão de um homem só contra todos.

“Os testemunhos de quem o ouviu a declamar os seus poemas e a ler os seus textos perante um auditório são unânimes no reconhecimento do seu génio. Parte da fama que conheceu em vida deve-se às suas ‘performances’. Fez mais de setecentas leituras públicas e conferências ao longo da vida. Em palco, sempre só, ele encarnou a figura de um grande actor: ‘Eu sou talvez o primeiro exemplo de um escritor que vive a sua escrita também como um actor’, escreveu ele. Enquanto actor, foi um génio da mímica e do poder de desmascarar o adversário, capaz, portanto, de dar um grande espectáculo. Era o seu ‘teatro da poesia’, que ele opunha ao ‘teatro dos encenadores e decoradores’”, diz-nos Guerreiro.

E se, hoje, tantos dos nossos humoristas recorrem a uma montagem de discursos para depois poderem entretecer as suas casquinadas, nada de mais consequente se organiza a partir dessas peças, e não há sequer uma intenção de levar mais longe o exame sobre os vícios que configuram o quadro mental ou essas muralhas que encerram o nosso horizonte.

Por seu lado, Kraus compôs em Os Últimos Dias da Humanidade um mosaico com toda a degradação do seu tempo de forma a garantir que ele mesmo arrastaria a memórias dos seus contemporâneos para a lama, desonrando-os. “Os diálogos mais inverosímeis aqui travados foram pronunciados nesta exacta forma; as mais cruéis fantasias são citações. Frases cuja absurdidade se inscreveu indelevelmente no ouvido ganham a dimensão da música da vida.”

Aquilo a que ele não estava disposto era a que os seus inimigos se convencessem de que iriam poder invocar uma série de atenuantes ou algum tipo de álibi quando chegasse a hora de serem confrontados com todos os actos ou palavras pelos quais colaboraram na catástrofe que provocava então um nível de destruição inaudito. No fundo, Kraus sabia que nos condenávamos a ciclos de repetição até que as páginas dos livros de história fizessem jus a um elemento realmente trágico, o qual só pode ser compreendido por meio de uma sátira brutal, de outro modo, o estudante não se diferenciaria de todos esses leitores de jornais que acabam por engolir a versão que lhes é servida já que “a bala lhe entrou por um ouvido e saiu pelo outro”. E, deste modo, o futuro condena-se a não ser outra coisa além da repetição da miséria do presente, sem qualquer perspectiva de renovação.

António Sousa Ribeiro, tradutor da monumental peça teatral já referida e ainda de uma selecção de alguns dos mais veementes textos que Kraus publicou na Die Fackel, lembra que nesta obra a abertura à linguagem dos outros aponta para formas de paródia e não de pastiche, no sentido em que preserva um ponto de vista focalizador e um sujeito do discurso reconhecível.

A autoridade da sua voz satírica faz com que este tenha sido o autor que, de uma forma isolada e heroica, melhor soube responder ao desafio de arrastar para o inferno a sua época. Deu provas de uma paixão colérica e de uma suprema lucidez que lhe permitiu servir o exemplo de uma arte cujo propósito é denunciar e perseguir até aos seus covis mais recônditos os absurdos de uma situação irrisória e injusta em todos os planos. Neste sentido, Kraus é o mais comprometido dos humoristas, e surge como uma antítese radical dos nossos humoristas, desde logo por ter seguido até ao limite essa estratégia de destruir todos os pressupostos pré-programados dominantes na lógica da comunicação corrente.

Sousa Ribeiro sublinha que na sua sátira não havia “um mero efeito de troça, de expor gozando, pondo a ridículo, ou seja, um modo de fulanização dos alvos, incapaz de atingir ou interromper o ruído do seu tempo”. A sua elaborada técnica de montagem e de colagem, e aquele registo de glosa satírica, permitiu-lhe agir contra o próprio contexto comunicativo dominado por um discurso público (e particularmente o discurso da imprensa) que exercia sobre as consciências uma forma de coação, e foi na denúncia de um senso comum reificado que ele foi demonstrando à saciedade como a capacidade de apreciar e julgar estava a deixar-se render a um mecanismo que apenas reforça preconceitos e estereótipos.

“As minhas glosas”, dizia Kraus, “necessitam de um comentário; de outro modo, tornam-se demasiado compreensíveis”. E Sousa Ribeiro refere como o comentário funcionava como uma segunda ou terceira leitura que Kraus se sentia no direito de exigir do seu público, de forma a trazer à luz da lógica da construção a manipulação específica mesmo do material verbal mais corrente. Assim, expunha essa “longa concubinagem” com a linguagem existente.

A literariedade da sátira foi o processo que Kraus encontrou para não se sentir avassalado pelos exercícios retóricos daqueles que tudo fazem para consolidar as mais baixas espécies de servidão e conformismo. “Não deixo que me impeçam de dar forma àquilo que me impede de dar forma”, escreveu ele.

E num ensaio que lhe dedica, Walter Benjamin refere como ele pôde assim vencer a tentação do silêncio por meio de um “silêncio às avessas”. A citação não serve, por isso, como um mero expediente preguiçoso, mas é um regime de humor que funciona como meio eficaz de combate e esconjuro.

Se hoje e entre nós é mais fácil do que nunca abrir os jornais e percorrê-los para se deixar assaltar por todo esse escrofuloso dinamismo das impressões ou opiniões cretinas que fizeram naufragar a mentalidade crítica do português nas águas estagnadas da Estupidez, do Dogma e da Autoridade, o que causa estranheza é o quanto o humor se tem furtado a um confronto com todo esse círculo de automatismos tendenciosos e que reduzem as especulações do espírito a uma vida larvar.

Mais estranho ainda é a sensação de que os nossos humoristas, mesmo quando parecem fazer exercícios de sátira expondo a prepotência mandona, a retórica enfatuada, a mediocridade triunfante e irresponsabilidade desbragada daqueles que têm o acesso facilitado ao espaço público, raramente o fazem de forma comprometida, e até acabam por ajudar a um ambiente de dissolução, através de um regime satírico que toca a todos por igual e se constrói segundo uma tendência dispersa.

Em lugar de um ajuste de contas, de uma prática que se exerça contra a esclerose e o imobilismo, de algum modo parece que muitas vezes se associam a todos esses esquemas e compromissos que vão combatendo “todas as inovações do pensamento, todos os vestígios de inquietação espiritual, todos os reflexos de autonomia intelectual e de desrespeito para com a hierarquia feudal de valores”.

Estamos muito longe até de um humor português que tem a sua lista de mártires, muitos dos quais elencados por Ernesto Sampaio no já referido prefácio, e que nos lembra como há uma longa tradição entre nós no uso mais corrosivo do humor, cujas formas burlescas, libérrimas, irreligiosas, inimigas da passividade e abertas ao espírito crítico objectivo e à fecundação intelectual foram predominantes.

Mas hoje como comparar Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques ou Bruno Nogueira, humoristas que fazem anúncios a Bancos e a empresas multinacionais, com aqueles que passaram pelo cárcere ou foram reduzidos a uma condição de párias sociais no exercício da sua liberdade crítica?

Nada mais longe da atitude humorística do que este registo de adesão à visão convencional do mundo, a uma organização social fundamentada no dinheiro, na baixeza obrigatória do espírito, nessas aspirações que estão em linha com as lógicas de promoção e sucesso.

Ernesto Sampaio entende que o humor se frustra se não houver nele um desejo que se liga a “um certo grau inalienável de furor, de revolta muito concreta e angustiada contra as circunstâncias da vida que o mutilam e desviam do seu objecto, mutilando o homem e as relações humanas na sua totalidade”.

Mas a que experiências e perturbações podem recorrer estes nossos humoristas cuja cumplicidade é paga a peso de ouro? Que razões teriam eles para inventar práticas mágicas como a de Kraus, que desejou “pôr o meu tempo entre aspas”? Nunca lhes vimos um traço de ódio sincero, sendo mais fácil vê-los entregarem-se a uns rancores diluentes.

Mesmo Araújo Pereira, que se tem dedicado ao estudo da matéria, e acaba de publicar uma tese elaborada em ambiente académico, com o título “Coisa que Não Edifica nem Destrói”, alguém que se considera até um arauto sobre este tema, sendo a sua participação requerida sempre que nalgum evento ou fórum se pretende discutir o humor, que outra coisa tem feito ele além de lhe recusar qualquer eficácia na hora de gerar abalos ou perturbações significativas na nossa paisagem?

Tantas vezes parece apenas estar já a redarguir perante o tribunal da sua má consciência, socorrendo-se de uma série de citações de outros humoristas que se amiudavam de forma a que não lhes fossem assacadas grandes responsabilidades pelas suas tropelias.

Se os outros se encolhiam para terem margem para desferir o golpe seguinte, este parece empenhado em compor de antemão um rol de desculpas e atenuantes para que ninguém o questione se não podia ter feito outra coisa com o humor além de enriquecer.

Não lhe interessaria certamente dar crédito a Benjamin quando este nota que “o mistério próprio da sátira consiste em devorar o inimigo”, concluindo que “o satirista é a figura na qual o canibal é recebido pela civilização”.

Se Araújo Pereira e Joana Marques também se servem da citação e, até certo ponto, de uma mímica na relação com os objectos das suas sátiras, a aproximação a Kraus acaba aí, pois enquanto aqueles recusam assumir qualquer antagonismo consequente, no modo como este se lançava sobre os seus alvos, segundo Benjamin, procurava imitá-los para “enfiar o pé-de-cabra do ódio nas mais finas brechas do seu comportamento”.

Kraus não odiaria menos estes humoristas farsolas que rejeitam qualquer confronto com um inimigo que possa fazê-los passar um mau bocado. Mas também a estes, em breve, não será preciso desmascará-los, “dado o grau de embevecimento com a sua própria idiotice e ingenuidade, pelo facto de estarem tão soberbamente deliciados com o espírito da época que actuam como possuídos, como esses fiéis que se entregam a momentos de êxtase, ao furor desses momentos em que a carne, ao estrebuchar, ilustra uma adesão completa a um momento de revelação”.

E se Ricardo Araújo Pereira gosta tanto de se misturar com os nossos arganazes das letras, talvez devesse perceber o risco de se aproximar da figura do literato, sendo exactamente isto o que fez Kraus ao desencadear a sua luta implacável. Benjamin esclarece que nesse sentido só pôde encontrar um antepassado em Baudelaire. “Só Baudelaire, tal como Kraus, odiou a saturação do bom senso com lugares-comuns e o compromisso que os homens do espírito assumiram com ele”.

Para o ensaísta alemão é este literato quem “explora os interstícios intersilábicos para arrancar as larvas que aí fazem ninho, e que vai amontoando: larvas da corrupção e do palavreado, da baixeza e da bonomia, da infantilidade e da ganância, da glutonice e da perfídia”.

Talvez seja altura, assim, deste nosso líder de culto (Araújo Pereira) perceber como na fronteira entre o humor e a literatura é o último lugar onde deveria procurar refúgio, sendo precisamente aí que está mais exposto a ver a sua forma particular de oportunismo ser identificada como a anedota mais batida e que serve para apanhar os lorpas que só riem para não chorar.