Ah, o que eu gosto de alfarrabistas e de livrarias de livros em segunda (ou terceira, pouco importa) mão! Mas talvez goste ainda mais das feiras de bagageira e de velharias, onde se faz achados verdadeiramente extraordinários.
Um destes dias andava eu a passear por uma dessas feiras que se montam no primeiro sábado do mês, quando surgiu no meu campo visual uma capa familiar. Um livro há muito apetecido. Aquele recanto de pedra com uma balança velha e velhos pratos de cobre não enganava. Perguntei o preço.
– O Cozinha Tradicional Portuguesa, da chôdona Maria de Lourdes Modesto?
Essa pequeníssima introdução foi o suficiente para perceber que o vendedor sabia o que tinha nas mãos.
– Isto é a primeira edição…, complementou.
Preparei-me para o pior.
– E então quanto é?, inquiri já sem grande esperança.
– Um euro.
Um euro! Presumo que se regateasse ainda me tinha feito um desconto… Mas não me atrevi a tanto. Limitei-me a tirar uma moeda do bolso e pagar-lhe.
Foi um daqueles golpes de sorte que acontecem uma vez de vez em quando. Até porque já estávamos a meio da tarde, e certamente teriam passado por ali centenas de pessoas. Nenhuma delas, pelos vistos, se interessara pelo livro. Curiosamente, dali a pouco vi noutra banca um livro também de cozinha, mas perfeitamente vulgar, e perguntei o preço por curiosidade.
– Vinte euros. Estes livros de cozinha têm muito procura…
Mal sabia ele o negócio que eu tinha acabado de fazer.
Porque constituiu a primeira recolha sistemática – porventura a única – dos tesouros da nossa gastronomia, Cozinha Tradicional Portuguesa é um livro verdadeiramente mítico. E, regra geral, tem um preço a condizer. As fotografias de Augusto Cabrita e Homem Cardoso também são um elemento essencial do projeto. Não mostram apenas pratos bonitos em cima da mesa: há uma peixeira a exibir as guelras de um belo robalo, para se ver como está fresco; mulheres à beira-rio a lavarem as tripas para os enchidos; três cabeças de porco no mercado de Carregal do Sal; um pescador com o balde cheio de enguias.
Não é apenas comida, é um compêndio de saberes, um reservatório da nossa cultura, no sentido mais rico e mais elevado do termo. É, em resumo, Portugal que se traduz inteiro naqueles pitéus e naquelas pessoas. Pela parte que me toca, vem-me sempre à memória o arroz com favas d’A Cidade e as Serras, e o «precioso» caldo de galinha, cujo «perfume enternece».
«Seja Deus louvado, que nem tudo se perdeu com as incursões bárbaras do progresso», escrevia Maria de Lourdes Modesto em 1982. Hoje, olhando com atenção à nossa volta, já não temos tanta certeza disso.