Contrariamente ao que se possa supor, o próprio real está longe de poder ser reclamado. Basta pensar na banalidade que uma infinidade de gente julga ser o mundo. E se o mundo desaparecer no sentido de total incoerência? Eis uma questão que se nos impõe hoje de forma muito evidente, quando estamos submetidos a uma engrenagem que acelera “a putrefacção dos mistérios”. Sem as palavras não existiria nada, vinca Ernesto Sampaio, uma vez que só elas dão sentido completo à essência das coisas. É preciso a cada momento inventar um registo que dê forma à substância desordenada das nossas existências. Cabe a cada geração reconhecer-se “expulsa do paraíso de novo perdido”, esforçando-se por procurar outro corpo, outro mundo. E se é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas, isto força-nos “a descobrir o segredo de uma linguagem cujos elementos deixarão de comportar-se como restos de naufrágio à superfície de um mar morto” (André Breton). A poesia surge como um modo de redescobrir o real através da linguagem, compondo-o segundo a atracção do desejo, essa intencionalidade que nos faz levar o mundo à boca das mais diversas formas, gerando um inesgotável murmúrio e recuperando uma tensão vertiginosa, apaixonante.
Llansol refere que o próprio processo da linguagem apenas se activa por meio dessas experiências simultâneas que vão dando um corpo à escrita, e como nos damos conta do que nos cerca, também assim chegamos a ser os nossos próprios criadores, recolhendo os elementos e o assombro desse armazém dos fundos da poesia. Despertamos com o nosso próprio pulso, “com um coração algures/ com pulmões delicados/ como fetos de oxigénio/ na teia das nuvens// com uma ausência e ao/ ao mesmo tempo com uma sede/ de felicidade humana/ com todas as palavras/ possíveis feitas impossíveis”… Assim o enuncia Inger Christensen, poeta dinamarquesa desaparecida em 2009 e que, com seis breves volumes de poesia, publicados ao longo de quatro décadas, deixou uma impressão indelével ao renovar esse pacto entre sentido e forma criando densas estruturas poéticas que refundam esse ânimo diante do desconhecido, essa intencionalidade de recuperar a rede dos sentidos que volta a produzir uma audaciosa noção de todos esses fenómenos que animam a nossa compreensão do mundo. Nesse intervalo que se abre quando alguém se esgueira sem ser visto pelas “patrulhas de uma ordem intransigente/ onde se distribui a vida como penhor”, Christensen mostra-nos que há um outro caminho, um desvio face a essa composição mais geral e degradante. E é tão simples como dar-se autorização para escapulir-se, entregar a uma ordem antiga, “como quando barcos com mortos/ atiçados pelo vento deixam a água// que se funde e atravessam a cidade/ sob o sol que se arrasta e se juntam// sempre numa tarde cinzenta de verão/ com violência e decência”. E lembra-nos que aquilo que cada um deve exigir não é necessariamente um prodígio, mas “apenas uma banal/ fraqueza quotidiana/ quase uma reverência”. As constatações mais simples já nos servem. Basta notar que “os damasqueiros existem” e que isso chega a ser a forma mais desarmante de interromper uma certa cadência molesta, procedendo a uma viragem nos sentidos, a um encadeamento do que sobrevive com uma indiferença fenomenal face aos nossos sentimentos, quase com uma descarada exuberância – o modo como a natureza se ri, e logo nos dispõe a ir além do que já conhecemos, buscando outro sentido, “com dolência cardíaca e gramíneas e morangos”. “Alfabeto é o primeiro livro desta autora dinamarquesa publicado entre nós, e trata-se de um miraculoso enredo que se estabelece a partir de elementos simples, “interespaços e formas/ das estrelas das pedras/ o curso dos rios/ e os movimentos do espírito”. É um elenco poético, nesse sentido de um esforço de reapropriação do mundo, “uma litania hipnótica” (Cilleruelo), uma lista de fenómenos e coisas ou seres que ocorrem neste mundo. É uma obra escrita com termos instáveis, quase perecíveis, “com traços que desaparecem/ como se fossem andorinhas// escrevo como o vento/ que escreve na água/ o seu monótono estilo// ou enrola com o pesado/ alfabeto das ondas/ as suas correntes// escrevo no ar/ como escrevem as plantas/ com caules e folhas”. Trata-se de um sumptuoso exercício de descentramento, de adesão aos elementos exteriores, a uma linguagem que corre e assume a expressão dos sinais que o acaso dispõe, fazendo da atenção uma forma elementar que vence a biografia obsessiva do sujeito, para que este se disponha a adquirir a expressão daquilo que o transcende, “como se alguém tivesse/ juntado o tempo/ e empurrando-o/ através da porta de/ um quarto”. Neste que é o mais emblemático dos livros de Christensen ela dedica-se a recobrar a vida enquanto elo entre naturezas diversas, empenha-se em reaver certos elementos em modo de inventário, lembrando como a linguagem funciona antes de mais como uma prece com pontos e fios e que vai produzindo essa arca íntima a partir dos elementos que se gostaria de resgatar ao dilúvio. Cada um encontra estratégias para reservar em si certos ritmos, cadências, construir uma memória quase à força, como forma de resistir aos elementos de dissolução e mágoa diante deste mundo. Como escreve Éluard: “a memória vindoura a memória desconhecida/ faria melhor do que a esperança”. Christensen actualiza a função do despertar, desse reencantamento diante do mundo, rompendo com aquela ordem intransigente, para nos devolver ao assombro: “a estação outonal existe; o sabor residual e a reflexão tardia/ existem; a reclusão existe, os anjos”.
Tão magnificente quanto sóbria, submete toda a sua crença na força de um encadeamento progressivo e cuidadoso, sem se deixar, no entanto, enredar em fórmulas demasiado estanques, abrindo sempre margem para um novo sobressalto, para cruzar níveis ou escalas e provocar desacatos sugestivos, líricos: “uma chegada que se tenta descrever/ como água crescendo na minha boca// deito-me a dormir no quarto de hotel;/ foi como um sonho, alheio à nossa espécie,/ que o hóspede anterior tivesse deixado/ de lado enquanto dormia e assim o esquecesse// nos sonhos eu não conhecia ninguém,/ só recebi um olhar perscrutador/ de uma árvore de alperces, em flor, voltando-se/ para depois subitamente se pôr a caminho// talvez a tenham deixado ali num verão,/ quando o mundo era branco como uma festa/ e antes de eu compreender que um sonhador/ deve sonhar como as árvores, ser um sonhados/ de fruta até ao fim”. Fascinada por estruturas, por regimes que se organizam internamente e são capazes de uma ordem progressiva, abrindo margem a sobressaltos, elementos de imprevisibilidade, a rupturas evolutivas, Christensen inspirou-se no mundo natural para elaborar reflexos bastante audaciosos, escalas compreensivas, nesse fulgor contínuo que caracteriza o universo físico. Como um astro delicado, vigilante, cosendo as partes que pareciam desconexas, há aqui um vigor de quem busca aquele “conhecimento nítido e imprevisto de que a vida se corresponde, de longe em longe, com a poesia”, como nos diz Llansol. Sendo o poema esse modo de se responsabilizar perante o novo sentido que se alcançou, Christensen desvela esse pacto difuso ao nosso redor: “uma leveza em tudo, uma semelhança em tudo/ uma equação, uma expressão aberta e mutável/ em tudo, e enquanto árvore após árvore se desfazem em espuma/ num verão precoce, uma paixão, uma paixão em tudo”… Há correspondências tão discretas, quase mudas, mas se damos por ela, é como se fôssemos lembrados de uma música que sempre buscámos, e que sempre nos surpreende: “algures, uma coisa em que/ ninguém tocou cai do aparador,/ talvez enquanto a minha avó está/ como sempre esteve na sua/ cozinha a preparar doce de alperce;/ sei que está morta, mas o aroma/ é tão intenso que o corpo que o sente// transforma-se em fruta”. Num belo e atento ensaio que lhe dedicou há uns anos nas páginas da revista Cão Celeste, o poeta espanhol José Ángel Cilleruelo assinalava que Christensen tem bem presente “que a função activa, dinâmica, de projecção, avanço e utopia, é o único valor de uma estrutura”. Acrescentando que “uma estrutura não é um modo de consolidação ou de estancamento, mas o exacto oposto disso, uma forma de ir mais além, um caminho para se aproximar do ‘impossível’.”
Diante de um poema como Alfabeto, cuja dinâmica se mostra tão porosa e volúvel, vemos como a poeta entrelaça formalmente a cultura e a natureza, e comonada do que se deixa arrolar no seu inventário permanece numa posição extática, ou surge aleatoriamente, antes ocorrendo segundo dois princípios estruturais: alfabeticamente e de acordo com os princípios da sequência matemática de Fibonacci, em que cada termo é a soma dos dois anteriores: 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, 377, 610 e assim por diante. A extensão das catorze secções deste longo poema segue esta sequência, procurando espelhar um padrão que ocorre em todo o mundo natural, na genealogia das abelhas, na ramificação das árvores e flores, no número de pétalas, pinhas, ananases e girassóis. Como assinalou num ensaio Karl Ove Knausgård, esta estrutura subjacente, à qual a própria natureza é simultaneamente alheia e obediente, pertence tanto ao misticismo como à matemática. “Nas palavras que o poema isola, invocando as suas entidades e fenómenos singulares, o mundo torna-se simultaneamente familiar e estranho para nós, simultaneamente sensual e abstrato, compreensível e incompreensível ao mesmo tempo.” Por sua vez, Cilleruelo diz-nos que o livro se fica por 1595 versos, mas que se a autora tivesse levado a sequência de Fibonacci até ao conjunto das trinta letras do alfabeto dinamarquês, em vez de se interromper na letra N, o poema totalizaria 217807 versos. “um número porventura inabordável para um poeta contemporâneo, e talvez desnecessário. O que não impede que sejam reveladores, no livro, a sombra da quantidade astronómica, a sequência interrompida por esta razão e o facto de ter seguido um modelo de crescimento impossível. Utópico”, acrescenta o crítico espanhol. Depois lembra como tematicamente, esta poema revela que a relação de quanto existe e vive ameaçado tem essa dimensão inexequível, mas confronta-nos também com um valor genérico, aquele que caracteriza a poesia como a escrita que cresce quando caminha em direcção à sua utopia e convive com o seu espírito antagónico.
Knausgård destaca ainda como esta obra de Christensen é claramente evocativa do poema filosófico de Lucrécio, Da Natureza das Coisas (De rerum natura), e lembra que a palavra que Lucrécio usou para “átomo” é a mesma que usou para “letra do alfabeto”. “O mesmo aconteceu com os primeiros gregos que escreveram sobre o átomo: também eles utilizaram o termo ‘letra do alfabeto’. O escritor norueguês adianta que Lucrécio não apenas insiste em estabelecer um paralelo entre os átomos e as letras, como deixa claro que se tratam de elementos estruturais que operam de forma análoga, sendo que tal como os átomos as letras podem ser combinadas de infinitas formas para exprimir tudo o que existe entre o céu e a terra e tudo o que existe entre eles. Este princípio de expansão a partir de uma cadeia de elementos que interligam e alimentam um incessante modelo de analogias alimenta esse desejo de vencer os rigores amesquinhantes que nos reconduzem a meros cálculos de probabilidades, aos tais algoritmos mortificadores, oferecendo-nos um horizonte insurrecional, que ousa sugerir o derrube do velho mundo e não a sua mera reprodução exaustiva e sufocante. Se retira muito dos seus estudos matemáticos, Christensen aproveita dessa disciplina os seus paradoxos dançantes, esse modo de espreitar os mais implausíveis cenários, e é por isso que esta é uma poesia em que o espírito cintila, e cuja linguagem divertida e acutilante, investe contra as expectativas e se mostra tão eficaz no cerco ao imprevisto. Por outro lado, se tantas das imagens e cenas chegam a ser tão exuberantes, pressentimos como o que está a organizar este inventário é uma espécie de luto, é uma noção de perda que impõe um sentido de particular urgência a este modo de sinalizar espantosas ocorrências, ressalvar sinais que tendem a passar despercebidos mas que são investidos aqui de um particular fulgor perante a ameaça da desaparição que, desde a data da edição original do livro, em 1981, a cada ano se tornou mais opressiva… “agora o céu é uma caverna/ onde as aves murchas/ apodrecerão como fruta caída/ onde nuvens vagarosas/ pulverizarão cidades/ secretamente levadas pelos ares/ como areia através da areia/ como água através da água// até as lesmas viscosas/ são porosas como espelhos/ onde os reflexos humanos se perderam/ só um caule de uma urtiga/ explicará sem folhas/ que no nosso desespero criámos/ uma terra sem flores/ tão assexuada como o cloro”. Há uma dor que vai sendo afinada com cada uma das coisas evocadas, pairando sobre elas uma sombra que não deixa de estabelecer um contraponto decisivo nas relações que se estabelecem entre os tão diversos elementos que aqui comparecem: “tudo/ se perde, desaparece, impossível de recordar que desaparecem/ multidões de pessoas desenraizadas, rebanhos de// animais domésticos e cães que andam por aí;/ tomates, azeitonas desaparecem, as mulheres/ morenas que as colhem desfazem-se, desaparecem,/ enquanto a terra levanta um pó doentio, um pó/ de folhas e de bagas, e botões em flor de alcaparras/ que nunca serão apanhadas, conservadas em sal/ e consumidas; mas antes que desapareçam, antes que/ desapareçamos, uma noite sentados à mesa/ com um pouco de pão, um par de peixes sem feridas e água/ sabiamente transformada em água, de repente/ um dos mil caminhos históricos do conflito/ atravessa a sala, tu levantas-te, as guerras,/ as guerras existem, as ruas, o esquecimento”.
Hoje, a mais dura das batalhas com a qual se confrontam aqueles que trabalham com o idioma e o sentido ou significado das palavras é o de preservar o a integridade destes processos linguísticos de forma a que estes possam corresponder à experiência humana, transmiti-la, não sendo ocupados e instrumentalizados a favor de regimes sujeitos a outras ordens de valores. É o ponto de vista humano que está sob ataque. A própria ideia de beleza, os aspectos indecidíveis da cultura que tenderão a ser vistos como relações inestimáveis e, por isso, em último caso, improdutivas, inúteis. “Quando desenterrarem os nossos poemas dos escombros, queremos que saibam quem éramos, o que era a consciência, mas também como a vida era espantosa e inimaginavelmente infinita e misteriosa”, disse a poeta norte-americana Jorie Graham numa recente entrevista. Talvez nenhuma outra poeta contemporânea esteja tão implicada nestes processos e tenha trilhado um percurso que ressoe de forma mais significativa a própria inquietação que sentimos na obra de Christensen, e Graham lembra que o grande desafio hoje passa por “encontrar uma voz, ou vozes, que prolongue a tarefa contínua da poesia num ponto de viragem tão perigoso da nossa evolução, com períodos de atenção quebrados, poucas crenças ou verdades partilhadas, pouca paciência, pouca capacidade de atenção sustentada ou de dilatação ou complexidade, pouco desejo de encantamento, quanto mais de exploração aprofundada”. E prossegue: “Não basta que milhares de milhões de pessoas em todo o mundo, neste momento, estejam viciadas em jogos de vídeo ou numa infinidade de géneros de pornografia, incluindo esses que passam por conteúdos noticiosos. Como é que trazemos todos estes seres humanos de volta à comunidade de uma realidade até certo ponto partilhada e, acima de tudo, de responsabilidades assumidas colectivamente?” Christensen apoia-se nestas estruturas transversais como se apontasse para um princípio de perseverança, e parece assim indicar uma possível resposta ao vincar que “as histórias sussurradas existem,/ o conluio mais antigo e mais amado das células”, sinalizando assim que, no final, talvez só essas tenham ainda algum poder sobre nós, essa capacidade de nos iluminar através de “incisões oblíquas”, furando o quadro geral para nos remeter para a expressão intimista desses sinais que se reconduzem aos elementos mais ínfimos da existência, quase secretos, mas estruturantes, que nos dão a sentir a própria textura da realidade. E o ofício do poeta seria então esse esforço de apreender no ritmo e matéria esse desenho de expansão a partir de algo tão próximo e concreto, relacionando-se com a vastidão cosmológica, como os átomos ou as palavras (“nomes onde uma palavra nomeada se torne aroma”), vibrando nessa tensão sustentada, tão próximas estas, na sua respiração, da nossa carne, desse registo “hedonista na sua decomposição, a vida/ assim na terra como no céu”.