Um poeta maldito

Que grau de ignorância, que traição a esse passado universalmente glorioso se atingiu para se apagar ou deixar que sejam apagados sem protesto os 500 anos do nascimento de Camões.

  1. Leitor recorrente de Camões, dou comigo frequentemente a pasmar-me: como foi possível um poeta e uma epopeia assim? Épico maior do que Virgílio, par no mínimo dos que fizeram a Ilíada e a Odisseia. Epopeia de um Portugal admirável, que hoje seria embaraçoso para este Governo lembrar e honrar. Por isso o escândalo que devia ser nacional, de serem apagados os 500 anos do nascimento de Camões (como o Nascer do SOL foi o único a noticiar).

Que grau de ignorância, que traição a esse passado universalmente glorioso se atingiu – o Governo, o Estado, a escola, a AR, o país – para se apagar ou deixar que sejam apagados sem protesto os 500 anos do nascimento de Camões, a epopeia e o passado histórico que genialmente cantou.

Por isso e para isso foi escolhido o atual ministro dito da Cultura, que o anterior seguramente não aceitaria tal silêncio. Cultura, diga-se en passage, que é matéria para os criadores e não para ministros.

  1. Já agora, terá presente quem me lê onde apareceu o primeiro ministério da cultura e quem era o seu titular? Na Alemanha nazi, com Goebbels! Depois foi na França, com o grande De Gaule, mas este a usar o cargo para manter no Governo Malraux, que noutra pasta qualquer chatearia todos os outros ministros. Mas Malraux era Malraux. Depois ainda houve Delors, suponho, e digam-me em que países mais houve ou há ministérios da Cultura? No salazarismo a exceção terá sido o Diretor do Secretariado da Propaganda Nacional António Ferro, que terá deixado obra. Note-se que Salazar teve escrúpulos em o designar ministro da Cultura. Neste âmbito justifica-se no máximo uma Direção-Geral do Património Histórico, ao abandono. Também A. Costa deve ter escolhido para essa pasta João Soares por pensar que nela seria internamente inócuo e exteriormente decorativo. Mas depressa se deve ter apercebido que João Soares não iria conviver pacificamente com o que fora feito e o pior que se preparava e está em curso, nomeadamente no Ministério da Educação, nem com a gente escolhida para o fazer. E por isso A. Costa aproveitou a picardia saborosa dos personagens em causa para se ver livre de João Soares. Sem ter feito nada para o segurar, ao contrário do aconteceria quando se manifestaram os casos gravíssimos que impunham a demissão imediata de ministros, secretários de Estado e outros. E João Soares, pelo que é e fizera na CML, teria seguramente salvo a face de um inútil e mais do que suspeito ministério da ‘cultura’.

Isto mesmo que afirmo sobre a existência de um ministério da Cultura pensava Vasco Pulido Valente, pensa João Soares, suponho, e considerava… Eduardo Lourenço, embora este, com o seu prudente savoir être, nunca o tenha assumido publicamente, mas confessou-mo a mim. Fora, aliás, no Governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, com o sábio Professor A. Sedas Nunes ministro coordenador da Educação e da Cultura, a primeira personalidade convidada para ministro da cultura. Recusando com uma cândida justificação: «Não posso porque a Annie não está bem de saúde e não quer deixar Vence».

  1. Last but not least. Não há então uma sede onde Governos esclarecidos de Estados democrático-sociais possam e devam intervir, legítima e equitativamente, nas condições de viabilidade da criação cultural e na condição dos criadores culturais? Tal como na realidade, implicante, da Comunicação Social? Há sim, ou havia: a ESCOLA, que deve ensinar a ler e a prática e o gosto da leitura.

Mas depois das pragas ideológicas que, com a submissão situacionista e a indiferença cúmplice de tantos de nós, há mais de 40 anos a dominam, é demasiado tarde para que a escola possa ser salva, neste tempo vertiginosamente descivilizador em que morremos.