Desconfiança geopolítica

Começa a aceitar-se em muitos fóruns, como adequada a ideia ou o princípio, de que será melhor deixar cumprir os desígnios russos na Ucrânia (vulgo anexação de parte do território) em troca de paz.

A Europa vive um inverno algo estranho no que à política internacional diz respeito. Outras nuvens cinzentas e carregadas chegam também de paragens mais distantes. Dos Estados Unidos (EUA) ao Médio Oriente, passando pela Federação Russa. Perpassa em todo este ambiente de “inverno geopolítico” um sentimento e uma atitude muito perigosa nas relações internacionais e no espaço político global. E que se traduz numa simples palavra: desconfiança. Desconfiança social, política e geopolítica.

A Europa coabita com uma guerra convencional, entre dois grandes países, a Federação Russa e a Ucrânia. Uma guerra trágica e avassaladora, de invasão militar de um Estado independente por outro, que apanhou de surpresa o Ocidente e que já causou a maior crise de refugiados após a 2ª Guerra Mundial. Num primeiro momento (o primeiro ano), a fase da grande ofensiva russa, das ameaças e do medo (até do nuclear), a Europa soube reagir em uníssono face a uma crise energética de gigantescas proporções que se avizinhava. Fase esta que antecipava cortes abruptos do Gás Natural e de outros produtos energéticos importados da Rússia, indispensáveis à sobrevivência energética da Europa, não fosse a capacidade mobilizadora da Comissão Europeia e dos Estados e a aposta, entre outras, no reforço do Gás Natural Liquefeito americano. O Nord Stream 2 passava de herói a vilão por esta altura. Dia 24 de fevereiro de 2024 fará dois anos do início da invasão russa, e paira no ar da Europa um certo sentimento de desconfiança. Desconfiança e receio das intenções futuras da Rússia sobre outros Estados vizinhos. Desconfiança sobre as ameaças militares de todo o tipo que não deixam de atormentar a Europa. Desconfiança sobre o evoluir da economia e do bem-estar dos europeus. Desconfiança até sobre a soberania da Ucrânia e o seu futuro no espaço das democracias. As vantagens russas no campo de batalha vão-se acentuando por agora; na produção e aquisição de drones e mísseis, no domínio aéreo, no fabrico de carros de combate, na produção e aquisição de munições de artilharia, na capacidade e obtenção de recrutamento. Desmoralizar e enfraquecer ucranianos e europeus em geral é também uma estratégia clara da Rússia e de Vladimir Putin. As recentes nomeações do General Oleksandr Syrskyi para comandante militar da Ucrânia em substituição de Valerii Zaluzhnyi, e a de Oleksandr Pavliuc para comandante das forças terrestres, podem dar um novo reforço à estratégia militar deste país.

Existe pouca confiança nas capacidades europeias de defesa e pior ainda na sua vontade. E todos sabemos como a perceção em geoestratégia conta. Começa a aceitar-se em muitos fóruns, como adequada a ideia ou o princípio, de que será melhor deixar cumprir os desígnios russos na Ucrânia (vulgo anexação de parte do território) em troca de paz. E este cenário pode ser no tempo e na verdade, uma desconfiança política e geopolítica trágica para a Europa, num futuro não muito longínquo. Onde a paz, a segurança regional e mesmo a democracia poderão estar efetivamente em causa.

Desconfiança também sobre o comportamento e a atitude dos EUA face à continuação do conflito na Ucrânia ou a posições algo isolacionistas sobre a NATO e a Europa. A razão é a nuvem muito cinzenta que Donald Trump e muitos republicanos podem trazer para a geopolítica global e com consequências ainda pouco percetíveis para a Europa e para a ordem internacional. Até 05 de novembro data das eleições americanas, todas as dúvidas, receios e incertezas permanecerão no ar. Recorda-se contudo e em boa razão, que em momentos trágicos para a Europa, e já foram alguns no século passado, os EUA nunca faltaram com o seu apoio. Aliás decisivo.

Na verdade, o vetor da segurança e defesa é cada vez mais uma lacuna que a União Europeia (UE) apresenta e que as suas atuais políticas no âmbito das relações externas não deixam de evidenciar a todo o momento. O Chanceler da Alemanha Olaf Scholtz, com uma parte da Europa política e social algo afastada desta realidade, não se tem eximido, mesmo agora na recente visita aos EUA, de apelar a um apoio financeiro e militar urgente dos EUA, mas também reafirmando inequivocamente que os Estados europeus devem e podem fazer muito melhor no apoio militar à Ucrânia. Por outro lado a indústria europeia de defesa apresenta uma capacidade limitada e não está vocacionada nos atuais moldes para a defesa da Europa. A própria promessa de fornecer até março um milhão de munições de artilharia à Ucrânia, confrontou-se com a realidade europeia neste domínio. Ou seja com a incapacidade de resposta industrial, associada aos vários interesses envolvidos.

Mas desconfiança também no Médio Oriente. Desconfiança foi sempre a a palavra vivida entre os dois povos: israelitas e palestinianos. Muito em especial nos últimos 76 anos. Várias gerações de israelitas no entanto, como refere Ayelet Frish no seu artigo de opinião “Gaza on the day after” publicado no Jerusalem Post, cresceram na “visão de dois estados para dois povos.” E muitos, acreditavam ainda numa visão de coexistência. Mas neste momento o massacre do 07 de outubro veio trazer à sociedade israelita, uma enorme falta de confiança no futuro e de suspeição das lideranças palestinianas. Situação naturalmente aproveitada pelos partidos e coligações mais ortodoxas e de extrema-direita e de líderes como Bezalel Smotrich (ministro das finanças), Itamar Ben-Gvir (ministro da segurança nacional), Aryeh Deri, Yitzhak Goldknopf ou Avidgor Lieberman. Na parte Palestiniana e mesmo dos seus aliados mais próximos, os países Árabes e Muçulmanos, a disputa e hostilidade para com Israel é uma realidade de décadas. Tem sido mais importante o combate a Israel e à sua existência como Estado, do que a procura verdadeiramente empenhada pela edificação de uma solução de dois Estados lado a lado na região. A continuação da atual liderança do Hamas em Gaza, apoiada pelo regime do Irão e pelo Hezbollah, seria a perpetuação dos conflitos e das guerras nas diferentes fronteiras. E em simultâneo, a impossibilidade da construção de um desejado Estado Palestiniano que garanta a segurança e a paz regional. Seria o continuar do drama humanitário para as futuras gerações de palestinianos e o alimentar da “perpétua” desconfiança entre estes povos.

Nesta encruzilhada de desconfianças, convém também referir que a relação entre as soluções de resolução para este extremado conflito e a Europa, é hoje, como sempre foi no passado, uma fator de permanente desconfiança e impotência. De todas as partes.

Este é assim o inverno que temos e vivemos. Onde a paz e a confiança continuam a meio caminho no atual sistema internacional.

Coronel e especialista em geopolítica
Eduardo Caetano de Sousa | LinkedIn