Democracia sincopada

Deveria ser o Parlamento regional da Madeira, dentro do atual quadro, procurar uma solução governativa.

Temos de esperar um mês para saber se o Presidente da República (PR) irá dissolver o Parlamento madeirense. Conhecida a decisão do ministro da República de manter o Governo em funções, seria surpreendente se não houvesse uma dissolução. Entretanto, o resultado das legislativas poderá contaminar uma eventual nova eleição na Região Autónoma da Madeira, mas não pode influenciar a livre decisão presidencial.

Se a decisão for a que se antecipa, acentua-se a personalização do cargo de chefe de Governo, na interpretação deste PR. Ou seja, está a fazer escola a recusa da possibilidade e da legitimidade de um determinado quadro parlamentar poder gerar, em momentos e por circunstâncias diferentes, governos e lideranças diversas. Esta não é uma interpretação nova, como Ana Sá Lopes realçou no Público. Mas não parece adequada ao nosso modelo de regime, inscrito na Constituição.

A tese que Marcelo defendeu logo que indigitou Costa, em 2022, de que a maioria pertencia ao primeiro-ministro, acompanhada da ameaça de que dissolveria o Parlamento caso ele saísse – o que, aliás, concretizou, ainda que por uma razão que não podia ter previsto – dramatizou uma doutrina que, ao que tudo indica, será aplicada na Madeira. E que confronta com a posição que, com a mesmíssima Constituição, Sampaio tomou quando Barroso saiu para a Europa.

Esta mudança implica uma consequência para o eleitor, em nome de quem existe uma democracia representativa, na qual deposita o seu poder no eleito que consta da lista de deputados do círculo onde vota e do partido que escolhe. Se quem vota no PS ou no PSD pode querer contribuir com o seu voto para a escolha de um primeiro-ministro, quem vota noutro partido está tão-só a confiar o seu voto a quem quer que represente as suas causas na futura legislatura. Se o Parlamento é dissolvido só porque cai o Governo, a sua escolha fica defraudada.

A nossa Constituição resultou de compromissos entre o MFA e os partidos. Com o fim da tutela militar, a revisão de 1982 tentava equilibrar os poderes do PR, do Parlamento e do Governo. O primeiro-ministro passaria, desejavelmente, a ser responsável pela governação perante o PR e, politicamente, responderia perante o Parlamento. Na verdade, isso não sucedeu nas atuais circunstâncias, mesmo admitindo que foram excecionais.
Veja-se o ‘caso Centeno’: com a demissão de Costa, não competia ao PR procurar uma alternativa. Essa competência deveria ser devolvida ao Parlamento. Mas este foi ignorado e logo depois dissolvido, sem que lhe tenha sido concedida a oportunidade de encontrar uma alternativa.
Pela mesma razão, deveria ser o Parlamento regional, dentro do atual quadro, a procurar uma solução governativa. A dissolução só deveria ocorrer se essa solução fosse inexequível.

O nosso sistema é semipresidencialista, e melhor seria que fosse parlamentarista. O que não temos, porque não encontra conforto na Constituição, é um modelo de presidencialismo do primeiro-ministro. De mais a mais, sujeito a qualquer momento a uma defenestração pelo livre exercício do PR, escudado num qualquer motivo, sem que o Parlamento que escolheu o primeiro-ministro seja chamado a substituí-lo, antes de ser dissolvido.

Se já havia um problema de governabilidade, este acentua-se com esta opção que resultará em eleições sucessivas e legislaturas mais curtas. Como se pode levar o eleitor a votar nas eleições legislativas se ele perceber que o seu voto, que decidiu a composição do Parlamento, não sobrevive ao desaparecimento do primeiro-ministro? Será razoável retirar ao Parlamento a hipótese de encontrar alternativas?