Os espelhos de Paris e a guerra

Este é também um momento de reconhecida exaustão e fadiga na frente de combate ucraniana, extensiva à sua população e mesmo aos seus líderes, civis e militares.

A reunião de alto nível político em Paris, convocada pelo Presidente francês Emmanuel Macron em 26 de fevereiro passado, abriu a porta à “casa dos espelhos” da Europa. A luz e os espelhos de Paris sempre foram o salão e o brilho de boas vindas da história política da Europa. As luzes e os espelhos têm sempre no imaginário popular a intensidade e o brilho do momento. Podem levar-nos das sombras ao deslumbre; da imagem contida ao glamour; da realidade refletida no sonho e deste muitas vezes ao desânimo. Também é assim, tantas vezes, na composição dos cenários políticos e geopolíticos. Nesta casa de espelhos, e epicentro de tantas esperanças, por altura dos grandes desafios, e em poucas centenas de anos, já por aqui passaram Napoleão, Charles de Gaulle, Georges Pompidou, Chirac, Miterrand, agora Macron e tantos outros, mas também Jacques Delors e a essência do espírito europeu. Na verdade, não há uma Europa empenhada e dinâmica sem a França, mas também a relação entre ambas, nunca deixou de ser um eterno e complexo jogo de espelhos, alargado ao aliado mais distante, os Estados Unidos.

A convocação urgente de cerca de vinte e sete líderes europeus, que juntou vários chefes de Estado e de Governo no Palácio do Eliseu, e representantes dos EUA e Canadá, para discutir estratégias de apoio à Ucrânia, realizou-se num momento crucial para o desenlace de uma guerra em plena Europa. Uma guerra que ultrapassou já os dois anos, após a invasão militar russa de fevereiro de 2022.

Este é também um momento de reconhecida exaustão e fadiga na frente de combate ucraniana, extensiva à sua população e mesmo aos seus líderes, civis e militares. Um tempo que evidencia um acentuar da desconfiança dos países europeus na Federação Russa, numa postura cada vez mais autoritária e agressiva; e um tempo que coloca igualmente a Europa perante uma liderança americana fragilizada pela oposição interna, liderada pelo anterior presidente e de novo candidato a presidente Donald Trump. Todos estes ventos de complexidade inquietante existentes no espaço de uma geopolítica de confrontação e ameaça no espaço europeu, exigiam uma atitude imediata de maior firmeza e clareza de ação.

A vitória da Rússia na Ucrânia a consumar-se no tempo, seria para além da anexação de territórios de um Estado independente, uma ameaça continuada a toda a Europa e à sua segurança regional. Na realidade a vitória de uma autocracia expansionista, sobre a democracia e a liberdade.

O que fica assinalado nesta reunião de Paris é o foco expresso no empenhamento dos Estados nas “cinco categorias de ação: a ciberdefesa, a coprodução de armas e munições na Ucrânia, a defesa dos países diretamente ameaçados pela Rússia, nomeadamente a Moldova, também a capacidade de apoiar a Ucrânia na sua fronteira com a Bielorrússia e ainda em operações de desminagem.”

Também registado para as atas das decisões políticas: o descer à realidade do pragmatismo através da: “… necessidade de avançar rapidamente na questão da economia de guerra, incluindo munições, sistemas de defesa terra-ar e mísseis de médio e longo alcance, para derrotar a agressão russa contra a Ucrânia,” prevendo-se mesmo a criação de uma aliança com este sentido. Este foi um ponto de relevância e de ambição. Como lhe dar vida e substância, essa será uma prova da vontade política das principais potências europeias e de alguns Estados mais próximos da realidade desta guerra.

Mas verdadeiramente o que resultou da reunião, em modo de “estrondo” foi a possibilidade de enviar tropas europeias para o terreno de combate na Ucrânia. “Não há consenso nesta altura para enviar tropas para o terreno,” referiu Macron, contudo, “… nada deve ser excluído. Vamos fazer tudo o que devemos para que a Rússia não vença.” O que levou o Kremlin a reagir de imediato, referindo que este “… é um novo elemento muito importante.” E que nessas circunstâncias, uma guerra aberta com a NATO, “… não seria uma questão de probabilidade, mas de inevitabilidade.” Como sabemos, de forma quase unânime, a maior parte dos líderes presentes, os EUA, a NATO, o próprio Vaticano e muitos outros, imediatamente demarcaram-se destas afirmações, algo surpreendentes e aparentemente descoordenadas.

A reação aos desafios de Paris foi dada poucos dias depois, pelo próprio Presidente Putin por ocasião do seu discurso anual realizado em 29 de fevereiro sobre o Estado da Nação. As ameaças de recurso ao armamento nuclear e de armas ofensivas modernas e sofisticadas para atacar a Europa, se necessário, foram a tónica de guerra do discurso “… as consequências serão desastrosas se a NATO enviar tropas para a Ucrânia … as forças nucleares estratégicas da Rússia estão em plena prontidão de combate.” A narrativa da guerra e da ameaça a subir de tom, em vésperas da sua reeleição formal para mais um mandato de seis anos.

A “ambiguidade estratégica” que o Presidente francês e mais tarde o primeiro-ministro Gabriel Attal quiseram enfatizar em Paris “em que nada deve ser excluído,” isolou a França no contexto europeu e mesmo junto dos EUA neste capítulo, e irritou Moscovo. Mas esta é uma realidade a que muitas vezes a França ao longo da sua história, procurou ou foi obrigada a conviver no sistema internacional. Nada de muito novo, na verdade. Basta relembrar a recente visita do Presidente Macron em 24 de outubro de 2023 a Israel, após o massacre do 07 de outubro, em que propôs de imediato que a Coligação Internacional contra o Estado Islâmico (no Iraque e na Síria), fosse também ela alargada contra o Hamas, com a França na linha da frente! Proposta que não teve qualquer acompanhamento.

Contudo esta recente estratégia de pressão política com argumentos militares, levada a cabo por Emmanuel Macron, por estes dias cinzentos de Inverno na Europa, teve o condão, até pela sua ambiguidade estratégica, de acordar a Europa, a Europa meia adormecida, de que Paris também não escapa, e de mostrar que a realidade está por vezes muito para além dos nossos desejos. Que a paz, a liberdade e a democracia exigem uma postura de empenhamento e firmeza. Que o jogo de espelhos e as sombras de ameaça que recaem sobre a Europa, convocam a consagração de uma estratégia política concertada e uma capacidade de atuação nas esferas de segurança e defesa, que a Europa está ainda muito longe de ter.

E que a “dança dos espelhos” em Paris, algo desalinhada e sem concretização geopolítica no imediato, possa ainda assim ter contribuído em termos de sinalização geopolítica, para a realidade complexa das democracias na Europa.

Coronel e especialista em geopolítica
Eduardo Caetano de Sousa | LinkedIn