Os livros são as abelhas que levam o pólen fecundante de uma mente para a outra», escreveu o poeta romântico norte-americano James Russell Lowell. Seguindo a pista dos livros escritos na Antiguidade por um matemático (Euclides), um astrónomo (Ptolemeu) e um médico (Galeno), a historiadora da ciência Violet Moller reconstituiu a viagem das grandes ideias e como elas foram moldando o pensamento ao longo dos séculos. Com a aproximação do ano 500 da nossa era, conta-nos Moller em O Mapa do Conhecimento (ed. Clube do Autor), «a maioria dos centros antigos de saber entrou em declínio, fecharam escolas, bibliotecas foram pilhadas e incendiadas ou deixadas a apodrecer lentamente».
A vida intelectual estava a deslocar-se. Mas o trajeto não foi linear. Antes de irem parar às estantes das bibliotecas monásticas na Europa, estas obras foram copiadas e traduzidas em cidades como Bagdade e Alexandria. Como nos explica a autora numa conversa por Zoom a partir de Oxford, sem o interesse e o esforço de copistas, tradutores e livreiros árabes, obras basilares como os Elementos de Euclides, o Almagesto de Ptolemeu e os escritos de Galeno ter-se-iam perdido irremediavelmente.
Como lhe surgiu a ideia de escrever um livro sobre a sobrevivência do conhecimento da Antiguidade e quanto devemos aos intelectuais e sábios árabes?
Quando eu era nova e estudava na universidade tive de fazer um projeto. E nas férias do verão fui de carro com uma amiga até à Sicília. Nunca lá tinha estado antes e fiquei impressionada com todas as diferentes civilizações que tinham invadido e governado a Sicília ao longo dos séculos. Pareceu-me que era uma espécie de interface onde diferentes civilizações se ligavam entre si. Foi assim que a ideia nasceu. Alguns anos mais tarde, fiz o meu doutoramento sobre a biblioteca reunida em Inglaterra na década de 1580 por um matemático e astrónomo…
John Dee?
Exatamente. Passei o catálogo da biblioteca dele a pente fino e notei que muitos livros eram de autores árabes. E isso fez-me pensar como é que estes textos sobreviveram, como passaram de mão em mão e foram parar a uma biblioteca na Londres isabelina. Quando comecei a fazer a minha investigação era muito ignorante em relação ao mundo árabe. Para ser honesta, não sabia nada. Mas tudo evoluiu de forma muito natural. Porque acontece que estes três autores que escolhi acompanhar – Euclides, Ptolemeu e Galeno – foram todos traduzidos nos mesmos locais, ao mesmo tempo. Por isso construir a narrativa foi muito fácil. Tive sorte em deparar-me com uma história que só estava à espera de ser contada. Mais tarde, ao escrever outros livros, percebi que isso nem sempre acontece.
Nos dias de hoje, os talibãs no Afeganistão, os aiatolas do Irão ou os sunitas da Arábia Saudita não são propriamente modelos de abertura. Ao pensar neles lembramo-nos da destruição de obras de arte, da rigidez dos costumes, da proibição de livros e de música. O seu livro, pelo contrário, mostra-nos um Islão muito diferente, um Islão na vanguarda do conhecimento.
É uma pena que hoje, quando pensamos no Islão, pensemos nesses elementos extremistas. Que na verdade não são representativos do Islão atual, mas acabam por se impor precisamente devido a essas coisas hediondas que os talibãs e outros como eles têm feito. Mas há muitos setores do Islão que se orgulham imenso do seu património. Sei que algumas pessoas acham que não conseguimos aprender as lições da História, mas julgo que se na sociedade moderna tivéssemos mais consciência de tudo o que partilhámos com o mundo árabe durante a Idade Média e do enorme contributo que ele deu para a ciência – algo que ainda vemos como exclusivo da tradição ocidental – talvez as coisas hoje estivessem melhor.
Algumas fontes atribuem ao Califa Omar a ordem para desferir o ‘golpe de misericórdia’ na Biblioteca de Alexandria, no século VII. [Terá dito: «Se os livros estão de acordo com o Corão, não precisamos deles; se se opõem ao Corão, têm de ser destruídos»]. Mas a Violet descarta esse episódio como uma lenda.
Segundo os estudos académicos que li, essa ideia de que a Biblioteca de Alexandria foi destruída num momento específico não corresponde à verdade. Claro que, por exemplo, quando Júlio César foi cercado na cidade [em 48 a.C.] e se envolveu numa batalha, houve um incêndio que se alastrou a um dos armazéns onde estavam os livros. Mas o consenso académico é hoje que a biblioteca foi declinando ao longo de um período de séculos. Os livros destruíram-se porque não foram cuidados adequadamente. A decadência da biblioteca foi um processo lento e gradual, e não tanto culpa desta ou daquela pessoa.
Ao ler essa parte em que ‘iliba’ os árabes fiquei na dúvida se não seria um pouco parcial a favor deles…
É possível que tenha sido… É muito difícil ser-se completamente objetivo. Mas o que eu quis foi apenas contar a história tal como ela se me apresentou e lançar alguma luz sobre as enormes conquistas da ciência árabe no período medieval, que são frequentemente deixadas na sombra pela narrativa ocidental.
Um dos aspetos surpreendentes do seu livro é perceber o quanto as pessoas e as ideias viajavam na Idade Média, um período em que nós imaginávamos que estava tudo mais ou menos parado…
Fico sempre boquiaberta com o quanto as pessoas viajavam e como eram destemidas. Um dos grandes temas d’O Mapa do Conhecimento são estes estudiosos que partiam para o desconhecido à procura de textos, mostrando uma grande coragem e determinação. Normalmente achamos que as pessoas mais intelectuais são um bocadinho panhonhas, e não encaixam nesta vontade de partir em grandes aventuras. Mas basta vermos o exemplo de Hunayn ibn Ishaq [809-873], um tradutor de Bagdade que partiu e andou pelo Egipto e pelo Médio Oriente à procura de livros. Ou o de Gerardo de Cremona, que trocou Itália por Toledo, onde aprendeu arábico a partir do zero. Isso foi uma coisa que me saltou à vista, como o mundo estava ligado naquela época e como havia essas pessoas que partiam em viagens espantosas.
As ligações entre o Norte de África e o Sul da Europa foram fundamentais para a transferência do conhecimento do mundo clássico. Além de Toledo, havia Sevilha e Córdova. O facto de a Península Ibérica ter sido tomada pelos árabes em 711 foi decisivo para o surgimento desses focos de saber durante a Idade Média?
Completamente. Granada foi a última cidade a ser reconquistada pelos cristãos [em janeiro de 1492], o que significa que o território a que hoje chamamos Espanha foi governado por muçulmanos ao longo de 700 anos. A Península Ibérica desempenhou um papel muito, muito importante na transferência do conhecimento porque o mundo muçulmano estava muito interligado e todo a cultura que floresceu em Bagdade, em Basra, no Cairo, foi trazida para o lado de cá do Mediterrâneo. Havia uns livreiros fantásticos que traziam livros destes centros e os vendiam em Córdova. E também houve eruditos que vieram. O intercâmbio de ideias e de pessoas entre a Andaluzia e o resto do mundo muçulmano era muito intenso. E quando os cristãos começaram a reconquistar esses territórios, no caso de Toledo a transição de poder foi relativamente pacífica. Não houve o grau de destruição maciça que costuma haver durante a conquista de uma cidade. Isto significou que as bibliotecas permaneceram intactas. Quando os estudiosos europeus começaram a perceber a riqueza dos conhecimentos que tinham à sua disposição, colaboraram com moçárabes locais, que eram cristãos que tinham vivido ali sob domínio muçulmano ao longo de séculos. E começaram a traduzir estas obras para latim, o que esteve na origem daquilo a que hoje chamamos a literatura científica da tradição latina.
Imagino que, para traduzir uma obra de Euclides, de Galeno ou de Ptolemeu, não bastava saber línguas. Era preciso ter também competências científicas, certo?
Certíssimo. Porque estes textos por vezes podem ser bastante técnicos. Especialmente os Elementos. Um dos aspetos em que Euclides se revelou brilhante foi a iniciar uma tradição de redigir os factos de uma forma sem variações e muito compreensível. E começou literalmente pelo princípio, definindo cada um dos termos, de modo que era muito claro sobre o que estava a falar. Ainda hoje escrevemos textos científicos usando estes parâmetros que ele estabeleceu. Mas lá está, por vezes os textos podem ser muito técnicos, e tem de se ter alguns conhecimentos – muitos conhecimentos, até – para os traduzir corretamente e para produzir algo que faça sentido para as pessoas que os vão ler. Por exemplo, o tradutor de Bagdade que mencionei, Hunayn ibn Ishaq, foi o primeiro a estabelecer padrões de tradução rigorosos e a insistir que os tradutores percebessem o material que estavam a traduzir. Porque claro que havia péssimas traduções e montes de erros que se iam infiltrando no texto. Com o passar do tempo é como os ‘sussurros chineses’…
Isso é aquele jogo em que uma mensagem vai sendo transmitida de pessoa em pessoa e no final já não tem nada a ver com a mensagem original? Nós chamamos-lhe o ‘telefone estragado’.
Isso. Os tradutores deixavam passar imensos erros. Hunayn foi pioneiro ainda noutra coisa: foi ele que trouxe a ideia de reunir todas as cópias de um certo texto a que conseguisse deitar as mãos para as comparar entre si. Muitas vezes obtinha traduções do grego para o siríaco, uma língua cristã antiga, comparava tudo e fazia uma cópia única com o melhor de cada texto, aquilo a que hoje chamaríamos uma edição definitiva. A tradução é uma parte fascinante, complexa e vital desta história.
Hoje, quando encontramos nos livros de história referências à medicina de Galeno ou à astronomia de Ptolemeu, são quase sempre bastante depreciativas. O caso de Euclides é especial, porque as suas teorias nunca foram descartadas?
Podemos dizer que sim. Quem estuda hoje geometria não aprende pelo texto original de Euclides, embora ele ainda fosse usado nas escolas até à década de 1960 nalgumas partes do mundo. Mas a geometria que aprendemos é a mesma, os factos são os mesmos. Entristece-me que algumas pessoas olhem para a história da ciência pelo prisma do que contribuiu para a ciência moderna, como se o resto não valesse nada. A verdade é que tudo aquilo em que se acreditou no passado contribuiu para chegarmos onde estamos hoje. Se não tivéssemos tido Galeno e a sua teoria dos quatro humores talvez a medicina não fosse o que é hoje. E também me parece importante termos a noção de que muitas das coisas em que acreditamos hoje, especialmente na astronomia, podem vir a ser desmentidas no futuro. Quando estudamos uma época, temos de fazê-lo pelo que ela é e de acordo com as suas regras. Não podemos julgar as pessoas do passado usando a nossa sensibilidade. Claro que olhando retrospetivamente é fácil apontar os erros. Mas isso parece-me uma postura arrogante e redutora. Como historiadora da ciência, interesso-me por tudo, interesso-me pela viagem, não pelo ponto de chegada. Não vou olhar olhar para trás e dizer: a teoria dos humores de Galeno estava errada, por isso não merece ser estudada. Não me parece que isso seja uma forma séria de olhar para o passado.
Os escritos de Galeno eram tidos em conta pelos médicos? Às vezes há um fosso entre a teoria e a prática.
Ainda em vida, Galeno era muito famoso, até porque foi médico pessoal de mais de um imperador. Os seus escritos eram muito lidos e difundidos, apareceram cópias um pouco por todo o mundo romano. A teoria dos humores estava enraizada mesmo entre aqueles que não tinham muitos estudos. Mas claro que havia uma separação. Nas zonas rurais, no meio do nada, os tratamentos eram feitos pelo curandeiro da aldeia, sobretudo à base de plantas. Já um rico que vivesse numa grande cidade podia pagar a um médico com formação adequada. E essa formação era feita com base nos livros de Galeno.
«Muitos aspetos da antiga pesquisa científica e filosófica foram descurados ou destruídos por não estarem de acordo com a doutrina cristã», diz no seu livro. Mas sabemos que as bibliotecas e os scriptoria, onde eram feitas as cópias, se encontravam nos mosteiros e por vezes nas catedrais. Até que ponto a Igreja católica foi um obstáculo à difusão do conhecimento?
A Igreja foi absolutamente vital para a propagação do conhecimento porque foram os mosteiros e a Igreja em geral que salvaram as tradições da escrita e da leitura na Europa. No meu livro falo de Cassiodoro, um cristão que enquanto o Império Romano estava a desmoronar-se andou a resgatar livros e a mandar copiá-los. Mas também houve casos em que certos tipos de conhecimento foram ignorados porque não estavam de acordo com a doutrina cristã. É difícil generalizar. Não sabemos o que se perdeu, não fazemos ideia de quantos tratados científicos fabulosos nunca chegaram a ser copiados e se perderam nas fissuras do tempo.
O Mapa do Conhecimento mostra que não foi só no Renascimento que houve interesse pelos autores clássicos e pela Antiguidade. Podemos dizer, como sugeriu o historiador da arte Erwin Panofsky, que não houve um mas vários renascimentos no mundo ocidental?
Julgo que sim. Faz-me confusão esta obsessão com o Renascimento, e como isso ofusca o resto da história. Aqui no Reino Unido – não sei como é em Portugal – as pessoas vivem obcecadas com o Renascimento italiano, em detrimento de outras épocas e de outras latitudes. Terminei mesmo agora um livro sobre o século XVI, mas no Norte da Europa, sobre todos os lugares onde a ciência se estava a estabelecer e de que nunca ouvimos falar. Só se fala de Miguel Ângelo, de Rafael e de Leonardo da Vinci. E havia tanta coisa a acontecer na Idade Média. Toda aquela ideia da ‘Idade das Trevas’ já foi completamente rebatida. É uma maneira simplista de olhar para as coisas. E o passado não foi simples, foi complicado, com coisas diferentes a acontecer. Não acho que seja útil compartimentá-lo e arrumá-lo em gavetas.