Houve na poesia de Nuno Júdice, que se estreou em 1972, com A Noção do Poema, um impulso regenerador que chegou a deter um vislumbre extasiante, mas que cedo demais se esgotou e deu lugar a uma poesia amaneirada, amorfa, própria de um letrista de fados surdos, desses ao gosto de quem traz da vida essa embriaguez molesta em que qualquer frase arrebicada lhe serve para sentir a alma toda beliscada. Fala-se justamente de um poeta cujo fulgor dos primeiros anos foi decisivo na transição que se operou nos anos 70, entre os rigorismos experimentais da poesia da década anterior, que trabalhou a palavra na sua pluralidade de sentidos e decomposições, propondo o desequilíbrio semântico, ao ponto de arriscar o enfarte, e a oxigenação que veio a trazer-lhe o “espírito da prosa”, um encadeamento narrativo mais ligado à experiência do quotidiano. Para as novas gerações, operada essa renovação que se valeu desse enlevo narrativo, foi ficando difícil acolher as virtudes dessa abertura diante da exacerbação desse regime, muitas vezes em composições enjoativas ou em incontinências inóquas, em que de uma exemplar tensão que recuperava os temas e ideais românticos, se resvalou numa sensibilidade afectada e que parecia aliciar sobretudo leitores muito ocasionais, desses que buscam na poesia uma espécie de xarope para maleitas saturninas. Nos últimos tempos, e sobretudo já neste século, é difícil não deter de Júdice a impressão do poeta institucional, alguém que se reduziu a ser a sua própria publicidade e o seu apóstolo, naquela solicitação constante de aplauso. A inspirada mobilidade e vitalidade dos primeiros livros, que trazia uma urgência e um certo estado febril num momento em que a noção do poema se requintava excessivamente em sínteses menos oficinais do que de laboratório, acabou por abrir caminho a uma série de facilidades, e àquela impaciência da glória, que tantas vezes troca um punhado de fervorosos leitores conquistados com dificuldade ao longo dos anos, pelo favor de impor os seus versos a essas audiências que estão sempre dispostas a acolher esses lamurientos realejos bem como as jactâncias dos que insuflam vagos apetites carnais fingindo operar com as essências intemporais. A vida, a mais urgente vida, perdeu-se com a juventude, e ficou aquela obsessão de se obrigar a escrever mais uns versos, capturando fosse o que fosse, de tal modo que, em tantos poemas, mais do que instantes revelados de forma sagaz, imagens únicas, temos essa corrente trôpega, milhares de dias, que não têm nem o sabor de lembrança, zonas baças do tempo, uma infindável ressaca para um tão frágil milagre. Houve apesar de tudo versos dos mais memoráveis, e desde logo esses dois, que na sua perfeita e espontânea concisão, capturam melhor que quaisquer outros a razão desta persistência: “Não perdoo a ninguém/ a minha solidão.” Mas mesmo mais tarde, num livro como “Meditação sobre ruínas”, de 1994, ainda podia surpreender-nos com composições que, não sendo propriamente originais, trazem aquela aspereza ressoante de um bom epitáfio, lembrando-nos como para Eliot qualquer poema devia aspirar a essa magnífica concisão das morosas e derradeiras palavras que o génio de uma vida pôde fixar. Morreram da epidemia, os melhores: a uns,/ levou-os a peste; a outros, a gripe a que/ chamaram pneumónica; e houve os da/ doença de S. Vito; os da lepra, os da/ tísica, galopante ou não. Isto, quando/ não davam um tiro na cabeça, não se/ enforcavam num candeeiro, não se deitavam/ ao rio. Houve ainda os que deixaram/ de escrever; os que beberam até perder/ o juízo; os que, pura e simplesmente,/ desistiram sem nada explicar. Como/ se a vida dependesse de tão pouco –/ linhas rabiscadas em papéis baratos,/ frases que podiam ou não rimar,/ pensamentos . . . que poderiam ter/ guardado para eles próprios. No/ entanto, quando os leio, percebo o seu/ desespero. A beleza não aparece/ todos os dias à vista do homem;/ a perfeição nem sempre parece/ uma coisa deste mundo. Sim:/ subo as escadas até ao fim,/ de onde se vê a cidade, embora/ o tempo esteja de tempestade. O/ que se passa, neste instante, sob/ aqueles tectos? Que epidemia, mais/ subtil, prende ao chão os que,/ ainda há pouco, sonhavam com o voo?”
Houve de facto um momento em que se podia dizer que a poesia de Júdice não se parecia com a de nenhum outro dos poetas da sua geração, podendo dizer-se que esta buscava um modo de verdade, não essa coerente e nuclear, mas angular e estilhaçada. Antes de se tornar um dos membros da ecclesia visibilis das nossas letras, cujas instituições piedosas nos próximos tempos ainda farão os possíveis para transmitir a ilusão de que o seu nome perdurará, e que iremos contar definitivamente com ele nas antologias da literatura nacional, antes de se ter deixado enamorar pela mito da sua posteridade, este poeta chegou a transmitir-nos algo desse ímpeto que permite captar em versos “o baralhado estilo incessante da realidade, com a sua pontuação de ironias, de surpresas, de previsões tão estranhas como as surpresas”, para usar uma formulação de Borges. Com aqueles versos “longos, discursivos, meditativos, o tom tardo-romântico, as interrogações sobre a noção de poema, mais tarde o pendor evocativo, melancólico ou irónico”, como se lê na nota de pesar da Presidência da República, sendo identificável o cunho crítico de Pedro Mexia, aquilo que esta poesia nos deu nos seus momentos mais altos foi essa “prova do humano”: “Quem terá notado o gesto subtil do velho quando,/ ao enrolar o tabaco, limpou o indicador cheio de cuspo/ no tampo da mesa? Ali, há exactamente dois dias,/ sentara-me eu a escrever reflexões religiosas e um canto/ filosófico; depois, cansado do trabalho mental,/ desenhei a lápis duas ou três figuras na madeira gasta./ Agora, os restos de café e a saliva dos velhos transformam/ esses desenhos banais em peças/ de uma autêntica mitologia./ O fumo do tabaco envolve-os como se fosse uma névoa antiga/ e as palavras trocadas, a meia voz,/ pelos ocasionais frequentadores daquele canto/ lembram-me esconjuros, maldições, ou apenas/ a invocação de algum espírito transitório./ Assim, não posso passar sem ir, uma ou duas vezes por dia,/ àquele sítio: observar um culto que, inconscientemente,/ iniciei; e também ouvir o velho Baco/ cujas histórias me dão sede e sono./ Mas que fazer nesta cidade de província,/ no inverno, à parte ouvir os velhos/ou inventar histórias, enquanto se bebe café/ e aguardente?”
À semelhança do que acontece com outros poetas que se estrearam na mesma década, como António Franco Alexandre, João Miguel Fernandes Jorge ou Joaquim Manuel Magalhães, o que Júdice soube trazer para os versos foi esse copioso estilo da realidade, esse enredo sensível, flutuante, denso, que vive tanto das impressões como desse favor da elipse que a recordação introduz, destacando certos planos, o perdurar de aspectos isolados que permitem captar algumas imagens que conseguem ser fiéis à ramificação dos acontecimentos. Júdice soube aproveitar-se do género da prosa breve, do fragmento livre, divagante, da notação e dos elementos descritivos, contrariando uma certa coagulação do registo poético, uma tendência para fazer do poema um artefacto verbal tão morosamente trabalhado quanto absorvido em si mesmo, num casulo que não chega a romper-se e dar forma a uma nova vida. Ele exprimiu a necessidade de um alimento contínuo de curiosidade e de uma certa euforia que se segue aos períodos de devastação e luto. Nessas páginas que acabaram por corresponder a uma minoria aviltada e que merecia ser resgatada face aos tão embaraçosos versos que juncaram os aspectos vitais desta obra, reconhecemos esses elementos de inovação como libertação, e isto consegue-se não abrindo mão de certos desequilíbrios, dos riscos e fracassos próprios da poesia mais animada. É uma poesia ainda encantada por essa modernidade como solidão, com o seu ânimo profético e prenunciador, uma poesia que aceitava os perigos do exagero expressivo, que se nutria da crença órfica, e que levava ao limite os códigos comunicativos e retóricos na ânsia de captar algo de vibrante entre as sensações, sabendo assim encontrar o seu lugar junto desses sublimes espíritos selvagens como Dickinson, Rimbaud, Mallarmé ou Rilke. Veja-se como na imperfeita elaboração desta “Elegia com uma variação romântica”, se vislumbra algo dessa promessa transgressora e que alarga o campo das nossas percepções: “As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem/ as camas desfeitas, empilham camisas e calças,/ abotoam os cintos do infinito, prendem os laços/ da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam/ agulhas num buraco da vida, cosem as feridas,/ do amor que não tiveram, cantam devagar/ a canção da idade fria. Dispo essas mulheres/ no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras/ do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo/ os pontos que acabaram de coser. O seu sexo –/ seco pelos ventos de uma inquietação nocturna/ – humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março/ enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes,/ as mulheres loucas abrem a porta da varanda,/ respiram o perfume das trepadeiras brancas,/ da primavera, desmaiam com o sol.”
Nascido em 1949, na Mexilhoeira Grande, Portimão, no Algarve, Nuno Júdice morreu este domingo, aos 74 anos, vítima de cancro. Formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e foi, até 2015, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, instituição onde se doutorou em 1989 com a tese “O Espaço do Conto no Texto Medieval”. A par da sua obra poética, com aquela compulsividade de quem não deixava passar um dia sem se obrigar a escrever qualquer coisa, desdobrou-se também pelos outros géneros, no ensaio como no conto, ou no romance. Mas, nos últimos anos, foi sobretudo o seu labor enquanto tradutor a partir do castelhano aquele que mais nos foi compensando face à sua tão insistente evidência no plano institucional, tendo sido o mais traduzido e divulgado poeta português no estrangeiro, o que prejudicou claramente uma representação mais aliciante da nova poesia portuguesa. Devemos-lhe uma antologia de cem anos da poesia colombiana com cerca de 400 páginas e mais de 60 poetas, e ainda o extraordinário volume “Os Versos do Navegante”, uma recolha antológica de Álvaro Mutis, um dos mais apaixonantes nomes daquela constelação. Merece ainda destaque o único volume que reúne entre nós alguns poemas do poeta persa Adonis, “O Arco-Íris do Instante”.
Se a sua obra se estende por mais de 80 títulos – quase 50 de poesia, duas dezenas de livros de ficção, mais de uma dezena de livros de ensaio literário e ainda quatro livros de teatro –, fica claro como foi um dos nossos autores mais prolíficos, sendo que desde cedo todo este investimento se compaginou com as funções diplomáticas em Paris (conselheiro cultural da Embaixada de Portugal e director do Instituto Camões, cargo no qual sucedeu a Eduardo Prado Coelho), tendo ainda comissariado a área de Literatura da Exposição Universal de Sevilha, em 1992, e da Feira do Livro de Frankfurt, que em 1997 foi dedicada a Portugal. Dirigia também, desde 2009, a revista Colóquio/Letras, depois de ter dirigido, entre 1996 e 1999, a revista Tabacaria, editada pela Casa Fernando Pessoa, sendo que nunca se coibiu de se favorecer dos cargos institucionais que ocupou (ele ou a mulher, Manuela Júdice, que dirigiu a Casa Fernando Pessoa de 1993 a 2002 e dirige actualmente a Casa da América Latina) para estabelecer contactos e se lançar no circuito internacional, e só isso justifica que a sua obra tenha assumido proeminência face a poetas que se estrearam na mesma década ou até antes e que, tendo embora maior repercussão no plano crítico e uma maior influência junto da geração mais nova de poetas, ficaram de algum modo confinados ao tráfico dentro de portas. Seja como for, e apesar de distinções como o Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia em 2013, ou o Prémio Internacional de Poesia Camaiore, de Itália, em 2017, o certo é que há muito se desvanecera o entusiasmo da crítica que acompanhou a sua revelação e os livros que foi publicando até ao final do século passado. Deixou até de ser um desses nomes que logo vem à cabeça quando se pensava num conjunto de poetas para quem a tradição é uma presença natural, juntando-se àqueles que se regozijam com arqueologias e que acabam por só ser vistos a frequentar os museus da arte poética. Às tantas, a canção de juventude cedeu lugar a essa apressada estátua, que se entregava uma irremediável pose em que a caspa em si mesma parecia antecipar a forma como as pombas prosseguem a decoração desses voltas enchendo-lhes a posteridade de cagadelas. É quase difícil assim hoje provar que Júdice foi um poeta digno de atenção, correspondendo a uma imagem forte do presente, seja este feliz ou infeliz, mas capaz de se bastar fisiologicamente a si mesmo, pois contém aquela dose de passado e de futuro estritamente necessária para não ser devorado pelo demónio da consciência histórica e do progressismo estético. No seu melhor, esse Júdice que hoje mal recordamos, foi um dos melhores representantes desse presente que não se contrai em dobras, desabamentos e muralhas. E isto porque, “no tempo comum em que o passado, o presente e o futuro se unificam”, como registou Gastão Cruz, numa das mais assertivas e iluminadoras leituras que esta obra mereceu, “as palavras sobrepõem-se à ‘decadência’, aos ‘dias sombrios de fim de Império’, às ‘indicações precisas e coincidentes na direcção de uma definitiva queda’. Por isso se proclama: ‘Não vos volteis para o abismo, ó poetas. (…) Por que regressai ao vazio, ao refúgio em nada? Acaso não são estes os dias da exaltação e do medo?’”
Havia aqui uma interpelação muito forte, um modo de enfrentar a modernidade, com um resquício daquela inocência escandalosa sem a qual a poesia recai muitas vezes num desesperado tecnicismo, nesse perfume que exala a flor da podridão. Ali havia uma devoção série e absorta pelos aspectos em que o mundo se revela, nessa concatenação de factos que se tornam mitos. “Da própria decadência da ‘verdade’ que ‘permanecerá por muito tempo ainda no coração dos velhos’, renascerá, iluminado pelo ‘espírito da prosa’, o discurso profético, no qual se dissolverão ‘as insuperáveis dificuldades da névoa, a indecisão do discurso, a pobreza de ideias (de ideais)’”, diz-nos Gastão Cruz recorrendo a versos de Júdice. Assim, “a velha perspectiva” que “arruína os ouvidos” e “as últimas palavras”, que a boca pronuncia convertem-se na nova perspectiva e nas palavras iniciais do discurso futuro. “E se nem tudo poderá ser dito/ é a nós, poetas e dementes, que caberá as gloriosas noites/ de combate e incerteza, os secretos ruídos da conspiração e do tédio,/ as efémeras discussões no intervalo dos pratos e da bebida.” Tudo isto ainda lá está, ainda que soterrado pelo inanidade do que veio depois. Mas também daí se pode extrair uma lição, desse apagamento e vulgarização a que são sujeitos aqueles que tinham algo a dizer, tão rude e difícil que se obrigavam a cantá-lo, para que o terror e a beleza pudessem cativar e ser lembrados. E é isto o que importa resgatar, esse exemplo atraiçoado pela impaciência da glória. “A unidade básica da poesia de Nuno Júdice não é, pois, a palavra, nem sequer a frase, mas sim o todo narrativo de cada uma das suas histórias acerca das vicissitudes de ser poético”, notava Gastão. “Nuno Júdice escreve contos de que as principais personagens são aqueles que buscam e bebem a beleza ‘nas torneiras públicas da linguagem’, aqueles a quem ‘o trabalho de segurar a caneta sobre o papel gastou a pele’ e mesmo depois de devorados pelos ‘vorazes animais da morte’ repetem ‘durante dias e noites sucessivas: Poesia… Poesia.’”