Luís Quintais. “Poema, senhor das moscas”

A mais recente recolha de poemas de Quintais permite-nos traçar um retrato dos modos de abdicação e sujeição a que se abandonou muita da actual poesia portuguesa, julgando sinalizar o fim do mundo, quando era o mundo, na verdade, que parecia desertar das suas representações.

Em breve, o único título que disputarão uns aos outros os poetas actuais será o do mais prolífico, procurando esmagar os leitores com a mera persistência de uma devoção esvaída de qualquer ensejo transformador. Era Nuno Júdice quem, nos tempos de indeclinável e sôfrega juventude, reclamava por não haver para onde fugir na revolta inútil e perversa que se enquistara nestes modos discursivos. “Resta-me um grande ódio pelas palavras. O nojo do poema, dos gestos habituais da frase… (…) e uma vontade de resistir… de ficar no poema como em lugar nenhum…” Muito lá atrás, nesse rastro que ficou cindido, ele identificava a necessidade da “relação imaginária, ou passagem da realidade ao mundo sobrenatural da qualidade poética”.

É este mundo que vamos perdendo com cada um desses volumes, dessas distâncias feitas para nos enredar e deter. Vemos como a persistência, em vez de gerar um abcesso de loucura que por fim se esmaga com os próprios dentes, serve apenas para os versejadores espalharem esse resíduo que zumbe, à medida que tudo vai sendo apurado para a sensaboria. Em vez de um seguimento ou continuidade, renovando o fôlego a cada ruptura, vamos sendo soterrados em lugares comuns entre os temas da carne e da morte.

Luís Quintais faz há muito parte desse núcleo indestrinçável de pretensos seres cosmopolitas, que representam aquele momento em que os movimentos artístico-literários já não se distinguem do seu público restrito, de quase artistas ou pré-artistas, como nos diz Alfonso Berardinelli, tendo-se estabelecido entre eles uma simbiose especial. Este crítico vê-os como uma chusma de “provincianos patéticos à procura de emoções fictícias e de uma existência estetizada”. Estamos bem longe daqueles escritores e poetas que se empenhavam em revolucionar a linguagem, imaginando que isso pudesse abalar os fundamentos conservadores do mundo. Mesmo o sucesso ou fracasso dos actuais cultores da língua só se deixa medir enquanto fenómeno literário.

A mais recente entrega de Luís Quintais é tão monótona como seria de esperar, tendo em conta esse registo em que se vem especializando, versos que soam como um abafado realejo na sua enumeração de imagens exauridas, recorrendo ao mesmo arquivo mnemónico de sempre, pregando mais umas tábuas para ajustar esse altar comum, em que participam todos os elementos usuais dessa pequena indústria de distracções para mentes habituadas aos contidos delírios que é possível entreter ao fim de largos anos em cativeiro. Com a sua leve dose de realidade, os poemas deste novo livro, Nocturama, não provocarão o menor sobressalto a quem antes já cheirou esses outros arranjos com flores do mesmo plástico frio e inodoro, sobretudo nas suas recolhas posteriores à reunião da obra poética – Arrancar Penas a um Canto de Cisne (2015). Estamos sempre a deparar com as sequelas de uma sinistra evocação, e o poema mais parece uma substância que se acumula nos cantos da boca, uma excreção negra, própria de alguma espécie necrófaga. Pode parecer um juízo demasiado severo, mas a verdade é que esta é uma poesia que representa de forma nuclear essa “música perdida” que predomina entre a poesia portuguesa que teve o favor da crítica antes desta se ter resignado inteiramente aos gerais enredos publicitários nos hebdomadários de referência.

As últimas emissões desse canto de cisne já só admitiam da poesia uma postura lutuosa e consternada, um imenso sudário tecido de cinza, incolor, e que era exaltado por ser muito fiel às espécies de real que se iam reproduzindo no sentido de não deixar alternativa ao esforço de cavar essa vala comum, onde os poetas disputavam o turno da noite. Durante mais de uma década, a poesia portuguesa contentou-se em ser um mero simulacro de poesia, e em vez de regenerar o imaginário, reapropriar-se de um discurso vitalista, aparentava-se mais com um complexo de fábricas de tratamento de detritos, reciclando tudo, e ao mesmo tempo reduzindo tudo à mesma massa ou resíduo, e usou-se o real como um valor muito específico sem que este fosse questionado, abrindo caminho a essa produção desenfreado de quadros ou espécies do real, numa referencialidade indulgente, impondo um suposto quotidiano que nos fazia refocilar numa cultura linear e acumulativa. Era uma coisa decentinha, infeliz, com as suas luminárias municipais, para cujas almas acústicas um poema não passa de um mostruário para os lugares e objectos rituais dessa religião de subúrbio, em variações cada vez mais frívolas, e meramente formais. Baudrillard já antes vaticinara esta tendência diluente. “Quando o real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido. Sobrevalorização dos mitos de origens e dos signos de realidade. Sobrevalorização de verdade, de objectividade e de autenticidade de segundo plano. Escalada do verdadeiro, do vivido, ressurreição do figurativo onde o objecto e a substância desaparecem.”

Assim se recusam, e passam a viver no tempo previsível da nostalgia, num regime de captura que impede que aconteça seja o que for. Naturalmente, isto origina depois uma poesia que exprime o desconsolo do pré-fabricado mas que, ao mesmo tempo, se mostra muito ciosa das suas práticas rituais, exercendo essa “chantagem do real”. Mas depois também os seus mitos, à medida que se vulgarizam, não passam já de fórmulas operacionais, de um modo de contrafacção de modelos combinatórios, incapazes de sustentar qualquer imaginário. Mesmo aqueles que começaram por ter alguma relação pessoal forte com o idioma, acabam invariavelmente por se tornar retóricos, aniquilando todo o fervor e a incerteza que sustentava as suas primeiras investidas, procurando fazer vingar umas avaras teorias que julgam ser a forma mais adequada de sustentar e preservar as suas posições. Do poeta impunha-se a imagem de outro calculista ganhador, que vai conquistando o seu lugar por pura presença, por insistir no mesmo. Em vez de cães de caça farejando elementos de ruptura, tínhamos agora de ficar sujeitos às lérias dolorentas de um bando de veteranos de guerra nenhuma, uma estéril dinastia infinita que, fazendo das mesas um cemitério de garrafas, prestavam os seus testemunhos sobre a imensa derrota da literatura.

Nesse quadro o poema não era mais que o senhor das moscas, para usar uma imagem de Leopoldo María Panero. As apaixonadas leituras clandestinas da juventude, aquele gosto sem ditames que anda por aí privilegiando um percurso acidentado, tudo isso devia ser abandonado a favor de um cânone bafiento, valorizando-se o hábito de remexer nos turvos purgatórios de livros aclamados precisamente porque ninguém os lê. Depois, e se esta desolada milícia se fazia a continência repetindo que “a poesia não interessa”, e outras inanidades do mesmo jaez, todos se mostravam obcecados em subir nessa deslustrada hierarquia, buscando consórcio com o tipo de figurinhas de opereta que se conservam em enredos de cortesia e ilustram essas histórias de fadas patuscas de um país meio desvairado e que encanta sobretudo devido ao apuro de certos elementos pitorescos. Para uma gente que passava a vida a rebaixar a poesia, era estranho como depois viviam em disputa permanente por medalhas de latão. Fosse como fosse, tudo aquilo, para fazer vida, parecia pouco. E demasiado forçado. Dando-nos esse fundo completo de velhacaria. De tal modo que, mesmo quem há muito tinha lugar cativo, falava do “meio” em tom mais que desdenhoso.

Entretanto, e sendo uma poesia obcecada com a etiqueta, era muito de modas. A noite e a morte eram de longe as mais persistentes. E se não há versificador incipiente que não empreenda uma definição de uma ou da outra, se a embarcação da morte viu um tipo amarrar-se ao leme como um suicida desvairado, restava o leme da noite, e Quintais, depois de participar nas investigações aos escombros do terrível século transacto, quando começou a sonhar a reforma lírica, apanhou um pifo e destinou-se a essa viagem ao fundo sem fundo da noite, ficando de cabeça para baixo à imagem de um morcego a emitir esse canto estiolado. Malgrado todo o aparato cultural e as referências que vai manejando de forma a intimidar os seus pares mais ingénuos, esta é uma obra recoberta de cicatrizes, de citações que estão ali a tentar unir a poeira de experiências e sensações fictícias ou alheias.

Contudo, é sobretudo nas epígrafes que sentimos que chegou a vislumbrar-se uma promessa. Nessa imagem de Lawrence Durrell das sombras que ainda se debatem na tinta, ou na citação de Rothko que encerra o volume, e em que o pintor nos diz que sem monstros e deuses, a arte não tem capacidade de representar o nosso drama, e que nos seus momentos mais profundos esta não faz outra coisa além de expressar esta frustração. “Quando eles foram abandonados como superstições insustentáveis, a arte afundou-se na melancolia.” Este aviso talvez devesse ter surgido logo à entrada, lembrando que o que se segue não passa disso mesmo, de uma série de esboços dominados pelo registo merencório. Aqui não há vida, apenas sinais de uma dissolução irreversível. Um mapa de ausências por onde um corpo vai abdicando do território, do próprio mundo, e de si mesmo. “Tudo é signo/ e tudo é sombra// desse signo/ outra vez./ Tudo é repetição// da sombra/ desse signo// – escrita.”

Assim, a literatura confunde-se com o abandono, a ruína, o alheamento. O olhar que se lança em volta fixa-se nas “formas/ que a natureza/ abandonara”. A repetição macera os sentidos, fala-se de uma “angústia/ sem objecto nem lembrança”. Por todo o lado colhemos uma obsessão com o “declínio”, e o “espesso canto” de que se fala é como uma substância que azedou. Estamos diante de um canto destituído daquela qualidade poética, tudo o que é nomeado parece na verdade ser subtraído, ou vinculado a uma “amarga projecção”. Ainda que aqui e ali se aluda a “delicadas mudanças de forma”, tudo parece derrotado por esse registo de um realejo lamuriento. Se às tantas nos surge a imagem do anjo, e nos é dito que não se trata de uma figura de estilo, é já tarde demais, pois tudo comparece nesta poesia apenas como figura de estilo, tudo “sublimado/ e sem contexto”. No fim do poema, o vento passa e empurra o anjo, mas só damos pelo seu pó. Fala-se incessantemente de “restos”, de “desespero”,  “desgaste”, “exaustão”, e mesmo as imagens mais expressivas apenas eclodem enquanto miragens deflagrando num campo desertificado: “A tua mente/ é um cavalo lento cor de ferrugem.”

A certa altura surge a interrogação: “Existirá o mundo?” Nesta poesia sujeita à invasão semântica da ruína, o mundo é algo que foi abolido. É uma poesia que só nos sabe falar de sombras, de ecos encurralado (“negros pássaros/ esquemáticos”)… A escrita reproduz-se sem dispor de qualquer perspectiva, sem nenhuma torção do sentido, como se o poeta se limitasse a diagnosticar incessantemente o mesmo vazio, os sintomas do seu estupor, como um actor que esgotou o texto e se alonga em explicações e derivas nervosas, incapaz de abandonar o proscénio. “Os dedos frios percorriam/ o tampo da mesa, os mitos/ de criação, a imaginação quebrada.” Ficamos com a sensação de que o poeta não passa já de mais outra personagem a quem cabe simular um confronto com o abismo num qualquer drama insosso. “és o derrotado./ Por uma impressão, um domínio/ de imagens onde os grandes trevos/ desenham as suas sombras,// por um meio-dia sem esperança/ ou virtude, uma floresta/ de bichos atónitos no fulgor/ desabrido de uma clareira.// Os nomes tinham coisas no início./ Depois perderam-se os nomes/ na sua relação (sanguínea, densa)/ com as coisas. As peças de que se compunha/ a natureza deslocaram-se para parte incerta.// Escreves atestando a derrota.”

Nem chega a ser um livro desagradável, uma vez que há algo de leviano na sua angústia, na sua composição cumulativa, nesse modo de amontoar detritos. Nem é a poesia que se afasta do mundo, ficamos com a sensação que é este que se torna o sujeito de uma deserção. E chamar poesia a isto é apenas persistir num equívoco. “Tudo é já uma imagem”, diz-nos um verso. Assim, seguindo a lição de Baudrillard, “a questão terá sempre sido o poder assassino das imagens, assassinas do real, assassinas do seu próprio modelo, como os ícones de Bizâncio o podiam ser da identidade divina”. O antídoto, aquilo que a estas se opõe, seriam justamente novas representações, que em vez de deixar esgotar certas impressões, reclamasse de volta um poder dialéctico, uma mediação visível e inteligível do real. Aqui, somos empurrados para um labirinto onde nos vemos expostos aos incessantes reflexos de uma realidade morta: “Afinal, tudo fora eco de algo inaudível.”

Em vez de resistir, de se recusar, mostrando-se capaz de acolher e aguentar o silêncio, Quintais parece regozijar-se com estes exercícios de cinza, dispondo frágeis contornos, formas vazias, que o vento depois leva. “E haverá mundo ainda? Símbolos reunidos/ no canteiro da morte, as lembranças dos nossos/ gestos são riscadas, corrigidas novamente.” Mais até do que outros poetas da sua geração, é em Quintais quem vemos essa incapacidade de abdicar do gesto da escrita, mesmo quando esta já só enfatiza a sua impotência, a sua inabilidade criadora, essa insistência ruidosa, como um fantasma barulhento e azucrinante. Ele bem que se esforça por simular ainda uma sobrevida, por meio de espasmos, e vê-se a lançar “uma rede convulsa de nocturnos”, estendendo ainda sobre os lugares antigos essa “gaze do tempo caligráfico”, mas cada verso, em vez de aprofundar um mesmo risco, apenas desfoca mais a perpectiva… E prossegue, oferece “listas do excesso que te cerca”, supondo que talvez a prosa seja uma solução, que pela “expansão dos substantivos” possa ainda simular “a expansão do mundo”. Mas tudo quanto nomeia logo se degrada. Não há aqui sequer aquela capacidade de, através de uma expressão descuidada, inusitada, vir propor algo de inesperado, através de descrições que através do acaso ou abraçando o absurdo consigam reaver “uma certa volúpia crescente”. A poesia como uma crença absoluta dá neste falar fiado, num discurso mole e exasperante: “Não sou o observador de pássaros,/ mas neste céu explodem voos:/ uma dor inconsútil, sem remissão,// iluminada por dentro. O cérebro/ é abóbada de estuque onde medos/ reverberam: gritos e silhuetas rubras,// fusiformes, que não identifico/ no tratado morto que dos meus joelhos/ escorre para o chão.”

Apesar de se servir desse “material pobre de lâminas de alumínio”, de esta poesia se caracterizar à primeira vista por uma tonalidade fria, áspera, e de períodos curtos, de uma aparência contida, na sucessão dos poemas o leitor acaba por sentir-se imerso pela verborreia de composição, ela mesma feita de decomposições cada vez mais exaustificantes, num regime que parece indiciar uma lei de associação lexical em que se crê que há certos termos que são já literários por si mesmos, um certo ripo de frases feitas que associamos à poesia. Isto induz-nos a pensar como esta tem vindo a degenerar, dando lugar a uma poeticidade, um discurso afectado, incapaz de capturar a diferença, de abrir espaço a novas representações, ao próprio encanto do real. Vemos tantos poetas resvalar em sucedâneos, produtos certificados à partida, sem assumir qualquer risco, incapazes de inventar um novo discurso que capture outras dimensões da realidade, do próprio pensamento.

Nos melhores momentos, esta poesia só é capaz de aprofundar ainda mais os motivos da sua capitulação, deixando muito claro que por ali só encontraremos o aprofundar dos sinais da peste: “E de súbito a caligrafia/ assemelhada à tua// e a lembrança/ esboçada do que foste.// Amigo silente/ por entre farrapos// e ecos, por entre dedos/ que agarram a água,// definem a tinta,/ tocam no papel// onde as palavras/ são insectos// trespassados, entomologias,/ detalhes, asas// que em pó o tempo/ desfaz.” Seja assumindo algum compromisso elegíaco, alguma homenagem mais ou menos redundante, seja fazendo as unhas a um desses ecos que esbarrou contra tudo, damos com uma perícia post-mortem de um subgénero que determinou que muitos dos nossos contemporâneos tenham exigido que o campo literário antecipasse esse clube recreativo dos que passam os dias a ensaiar os seus epitáfios e aperfeiçoar o manejo de “utensílios de sombra”, de modo a serem chamados para prestar as exéquias fúnebres. Tudo o que nos é narrado ou descrito, sabe como se houvesse sido proferido por lábios demasiado frios, com a voz quase inaudível, sussurrada, numa imitação da morte que, estranhamente, não parece ter qualquer indício de para que lado era ou foi a vida. Querem falar da morte, mas esquecem-se do contexto que lhe dá sentido, esquecem como a morte surge no meio da vida, e só pode ser apercebida pelos vivos. Os mortos não virão mais nada, muitos nem fazem ideia do que lhes sucedeu. Mas estes pobres diabos passam a vida debruçados sobre as suas mesas, e este descreve a sua assim: “uma mesa que é um espelho/ baço, enevoado, onde te revês.// A luz declina, tão rápida.” É natural que a uma poesia destas só se possa responder com essa indiferença institucionalizada que vai sepultando os pretensos autores debaixo de prémios literários. Face à desaparição do mundo, do eu, da própria humanidade, só restam essas cerimónias esvaziadas de qualquer sentido ou propósito, de forma a estarem a altura de receber o nada, atender a uma ideia de beleza que se esgota nas palavras e em todas essas formas já mil vezes usadas. Isto é a poeticidade, e este é o livro que melhor subsume toda esta fastidiosa relação póstuma com o mundo. Uma poesia que se continuou a escrever por hábito, por receio da sentença que trará o silêncio. Os melhores calam-se a tempo. “Aos que cultivaram desertos,/ só lhes restaram desertos”, diz-nos Quintais.

Como havia o hábito de levar uma flor na lapela, agora, como nos diz e mostra Quintais, “a úlcera cresce e nela a flor”. Tudo é um ritual que leva a nada. O leitor vê-se a acompanhar uma cerimoniosa gestação de palavreados, em tom enfadonhamente arrastado, ritualizando uma infinita despedida. As suas páginas publicam apenas infortúnios e desgraças, só conhecem a gravidade de um mau destino. “Abandono e dissolução./ Silêncio/ que não chegará.” E é um bom indicador este: falam sempre muito de silêncio os versos que se sabem ruidosos. O livro tem cento e cinquenta páginas. Dificilmente consegue justificar mais que vinte. Por todo o lado, damos por essa “prosa cortada” através da qual se dispõe “um jardim seco e sem préstimo,/ opaco de ordem e dissipação”. Incapaz de se corresponder com o mundo, surge-nos um corpo feito de uma sucessão de “palavras erradas”, um corpo que “colapsa, faz-se estéril”, um corpo que ingere todo o lixo que se acumula nessa “sombra-dobra de um mundo afinal já morto”. E por mais que o reconheça, ainda que nos diga que “a realidade é o atributo/ do que se furta à incorrigível paisagem/ do nosso desespero”, não se cala. Serve-se das palavras, e do “precipício do meu canto”, como de paliativos… “e o sentido desfaz-se./ Fósseis, os pensamentos são descritos/ como animais que se extinguem, agónicos.// Com tão pouco se esboça uma gramática (…) À mão, o lixo não é,/ por fé e caridade, lixo,/ antes linguagem.”

Vemos assim o que resultou dessa abdicação da linguagem como um processo mediador, como um impulso para corrigir ou mesmo refutar as provas da existência, compreendendo como a criação estava ainda em processo, sendo algo inacabado. Em lugar de poetas que se limitam a deixar “os sapatos à porta”, habitando miseravelmente a época, e ocupando os dias e as noites com “vincos de sombra e cores mortas”, e a “vária forma de gastos pretéritos”, hoje tornou-se urgente que surjam vozes capazes de recuperar o ânimo e o fulgor genesíaco da linguagem. Quintais só vê como “cada um dirá numa linguagem extinta/ o seu luto”. É uma forma de degradante profecia auto-infligida, e uma tendência que se quis impor como uma pena perpétua, com essa música de acorrentados que deixou entre nós a geração de poetas que se estreou entre o final dos anos noventa e o início deste século. “Trair é a palavra”, trair esse impulso libertador para mergulhar-nos nalgum inferninho de segunda. E a que nos leva isto? Talvez à noção de que precisamos livrar-nos desta azucrinante influência. E exclamar algo nas linhas do que anotava Herberto: “Um pouco de Paradiso, gemia eu, um instante apenas, um parêntese paradisíaco. Dias, semanas, meses de existência infernal. Ininterruptamente, em todos os lados.” Em vez desse “quotidiano/ de remorso, desgaste, entropia”, desses modos de clausura e imbecilidade que se restringem a uma “antecipação da morte”, em vez de reescrever infinitamente a própria lápide, é preciso tomar o exemplo muito longe daqui.

Em Pound, por exemplo, que no final de The Cantos, enquanto pede desculpa e admite os seus erros, vinca que foi derrotado mas por uma visão realmente audaz. “Tentei escrever o Paraíso/ Não vos moveis/ Deixai que o vento fale/ isso é o paraíso/ Deixai que os Deuses perdoem aquilo/ que eu fiz/ Que os que amo tentem perdoar/ aquilo que eu fiz.” Quintais reproduz estes versos, e parece reconhecer a diferença de uma vida que se propõe radicalmente, abraçando “uma crença desmedida,/ exuberante e deslocada”, que se deixa contagiar pela “violência e a beleza do mito”. Mas nisto vê, afinal, apenas “uma delicada beleza elegíaca”, vê o “equívoco”, e depois vem-nos com a ladainha do sem-sentido da vida, da “camisa-de-forças que é a história”, e cita Joyce quando este nos diz que a história é esse pesadelo do qual não soubemos acordar. O que não vê é a extraordinária razão que levou Pound a antecipar-se, e a reconhecer que neste mundo não se salva nada de realmente precioso sem produzir uma espécie de “devastação inteligente”. Errou certamente naqueles em quem depositou alguma confiança, mas não errou na descrição desses intuitos usurários que viriam a garantir que mesmo a poesia, hoje, apenas sabe relacionar com os modos poéticos tradicionais no sentido de reforçar a sua abdicação do mundo e da luta para resgatá-lo. Um poeta como Pound não poderia senão sentir a maior repugnância por estes que se fazem passar por poetas e que, mesmo face à tradição, não passam de “espectros muito literais/ [que] circulam entre campas, como se os mortos/ se visitassem mutuamente” (Quintais).

E, no entanto, mesmo um derrotado como Quintais, alguém que nunca sentirá necessidade de se arrepender seja do que for, nem de assumir os seus equívocos, uma vez que nunca se confrontou decisivamente com nada nos versos que escreveu, se reconhece que também a palavra beleza se tornou uma ruína, se sabe como Pound trabalhou de modo consciencioso e incansável para reduzir a vaga beleza das palavras a um nítido e incisivo resíduo de beleza, e se até nos diz que é por ela que estamos aqui, a certa altura parece conseguir interpretar de forma justa como os oito séculos que invocamos à laia de história colectiva, o que mais produzem são alucinações, e que importa acima de tudo reconhecer que “a beleza é uma linha/ de destruição primeiro,/ de espanto depois”. Há um alto preço que se paga por levar até ao limite as suas convicções, ir até ao fim, às últimas consequências. Pound pagou caro, como outros antes dele. Mas se hoje olhamos ao nosso redor, e entre tantos que se identificam como poetas, depois só vemos como isso lhes vai valendo prémios e homenagens, perguntamo-nos o que é da maldição e infâmia que cobre aqueles que realmente arriscaram alguma coisa em nome da beleza. “Não se vê ninguém./ O mundo terá acabado”, dizem-nos uns versos de Quintais. É possível que seja esta a moral da história que nos querem fazer engolir, publicando versos inanes, cheios de “dispersões, rasuras, apagamentos, extinções”, para depois serem alvos dessas distinções que atestam a sua cautelosa neutralidade. Não se atrevem a escrever o Paraíso, a sequer apontar uma possível direcção. Por isso, só lhes resta esses infernos artificialíssimos, onde “tudo é forma/ e sombra magoada,/ dissolução, decadência”.

E se Quintais perde a maior parte do tempo a descrever as palavras como material baço, “instrumentos com os quais/ colhemos a flor da melancolia”, não ignora que a poesia é outra coisa. Vindo desdizer Ramos Rosa, garante que “a poesia não é liberdade livre, mas dura improvável guerra/ com a matéria de que se fazem/ palavras cujo poder/ de reverberação se atenua/ a cada dia que passa”. Ora, a poesia é justamente essa liberdade insistente e que, por isso, trava a mais decisiva das guerras, e desde que o ouvido possa ser sensível a esse fragor que numa frase cultiva o impulso de uma debandada, a sua reverberação não se atenua. Mas se do paraíso Quintais pouco sabe, do inferno já vai tendo alguma experiência. E isso fica claro numa desenvolta glosa que oferece ao Canto III, do Inferno de Dante, em que fica claro como poderia funcionar como guia num qualquer enredo museológico, arrastando-nos, convencendo os incaustos de que a alma é vã… “Fútil e perigosa declinação que te conduz/ pela cidade morta, antes dolente, ferida,/ mas jogando o jogo do som e do sentido”. Descreve melhor que ninguém a condição daqueles que foram nutrindo as suas ilusões literárias, para no fim, em vez de acolherem a diferença, darem pelas suas “sombras misturadas,/ tão-só uma hipótese dita, depois escrita, sem autoria,// um eco de qualquer coisa que não reconheces,/ um texto perdido e perdido outra vez (…) o imundo saco, e tu, informe, balbuciante,/ procurando enternecer as estrelas,/ e sem cuidares que as estrelas são meras figuras// de retórica de um outro que o mundo abandonou:/ uma língua ilegível, uma película opaca/ de homicídio e exílio, o que te resta, teatro da história,// filme roto, cheio de buracos,/ de onde se isenta a coragem do Mestre/ que não vem, não virá. Tinges de cobardia/ e desesperança o teu mapa,/ as anotações da indiferença e da tibieza/ que merecem o lume e o fragor ilimitado do Inferno,// pobre metáfora. Lês o que escreveste,/ o que te abandona e é tinta em nuvem viral,/ desacerto, feito sem projecto ou métrica,// impossível começo, lírica inconsútil”… Que melhor retrato se poderia pedir de uma geração de poetas que tudo fez para trair a palavra e não viu mais beleza neste mundo do que a dessas flores viciadas em adornar túmulos?