Ministério e Justiça

É precisa muita gritaria (e escândalos, escândalos é que está a dar), para que tudo fique na mesma.

Estive vários dias fora, e regresso quando o Governo toma posse e se sucedem as habituais listas de tarefas, desafios e problemas e as avaliações e apostas sobre ministros, et cetera. Tudo bem, é costume, não vem mal ao mundo, embora nestes momentos falte sempre pelo menos uma coisa, que especialmente nos tempos que correm se impõe: olhar para cada pessoa que aceita um cargo num Governo com um misto de perplexidade e de admiração, sobretudo quando se trata de pessoas que têm vida e valor para além de estarem ministros (e neste Governo por exemplo vejo muitos assim).

Perplexidade e admiração porque, não só não é nada fácil ser ministro, e é trabalhoso e mal remunerado (aliás, à semelhança de praticamente todos os cargos públicos em Portugal), como sobretudo significa estar sujeito à suspeita constante e, não raras vezes, ao enxovalho, e às vezes ainda mal se colocou o pé no Ministério. Por muitas razões, chegámos a um tempo em que ser governante não é currículo, é cadastro (e pagaremos caro por isso, não tenhamos ilusões, mas talvez só o venhamos a descobrir um dia de repente, tarde de mais, quando nos distrairmos um bocadinho do circo e da girândola da suspeição e da procura do escândalo). E por isso fico sempre perplexo quando vejo alguém aceitar sujeitar-se a essas lides, e à perplexidade junto genuína admiração.

Mas adiante, para deixar mais duas palavras sobre as listas de desafios, tarefas e vaticínios. E é sobre a justiça, porque é a área que me diz mais profissionalmente, mas, mais coisa menos coisa, valeria para outros ministérios. De cada vez que temos Governo, lá vem o caderno de encargos, que, por grosso, corresponde à resolução de tudo quanto é visto como problema na área – ou seja, tudo, porque segundo as ‘cabeças bem pensantes’ está tudo um desastre. E a senhora ministra da Justiça, à semelhança dos seus antecessores, também não escapa à incumbência que já lhe deram jornalistas e comentadores (sobretudo estes, a ‘profissão’ que seguramente tem tido maior taxa de crescimento). E não é pequena essa incumbência, não só porque, como se disse, o diagnóstico tende a ser terrível, mas também porque neste país, onde sempre se olhou para o Estado como pai e mãe, tudo depende da varinha mágica da governação. Ora, não depende tudo, e nem sequer, na Justiça, depende a maior parte.

Deixando agora de lado o diagnóstico (tremendo, e tremendamente exagerado, embora sem pôr de lado os problemas, que os há e alguns graves), diga-se apenas que há muita coisa que não depende do ministério, por melhor que nele se faça ou não faça (e às vezes não fazer também é governar bem, deixando de parte o frenesim de mexer em tudo e tudo alterar). Muito depende de mentalidades, de práticas, de atitudes, de relações, de sensibilidade e de senso, seja dos chamados operadores do sistema de justiça (individualmente e em corporação), seja de todos os cidadãos, avultando nestes os senhores jornalistas e os senhores comentadores (a tal profissão afamada e abençoada), que têm de perceber, ou de assumir o que já perceberam, que têm, para o bem e para o mal, um papel essencial (e portanto uma responsabilidade essencial) no que fazem e nas perceções para cuja construção contribuem muitíssimo. E, mesmo para lá destas coisas todas (que são fundamentais e escapam ao poder, mesmo que seja hercúleo, de um ministro), há coisas de governação propriamente ditas que também exigem mais do que um bom, sensato e corajoso ministro ou ministra, exigindo aquilo a que se costuma chamar um pacto, não sei se entre A e B ou C e/ou D, mas sei que entre gente suficiente para chamar pelos nomes meia dúzia de coisas que têm de ser enfrentadas, umas por mexida na Lei, outras por simples enunciado da sua realidade (dizer, já é meio caminho para a mudança); e depois, claro, terá de haver capacidade de aguentar a suspeição e o enxovalho que se seguirão, fatalmente, a esse enunciado. Já se sabe como é o velho princípio, adaptado: é precisa muita gritaria (e escândalos, escândalos é que está a dar), para que tudo fique na mesma.