«Tudo o que era necessário dizer sobre o assunto já foi dito e partilhado. Vamos aguardar pelos resultados», foi esta a resposta de Ursula von der Leyen, há um mês, quando questionada sobre as mensagens que terá trocado com o CEO da Pfizer, Albert Bourla, em plena pandemia, antes de fechar o acordo para a compra de 1,8 mil milhões de vacinas contra a covid-19, num meganegócio que terá envolvido 20 mil milhões de euros (19,5 euros por unidade – quando na primeira compra tinham custado 15,5 cada, ou seja, menos 4 euros/dose).
Essas mensagens são decisivas para o processo de investigação que se soube agora ter sido avocado há meses pela Procuradoria Europeia quando corria no sistema judicial belga e em que é principal visada a presidente da Comissão que se recandidata ao cargo pelo PPE.
O processo foi desencadeado por uma queixa de um lobista belga associado a movimentos anti-vacinas, Frédéric Baldan, junto do Ministério Público belga, que abriu inquérito.
Em causa estará a prática de crimes de corrupção e conflito de interesses, entre outros.
Além de Baldan, também a Polónia e a Hungria fizeram participação nas instâncias judiciais com Ursula von der Leyen na mira.
As autoridades belgas iniciaram as investigações no início de 2023.
Já antes, em 2022, o Tribunal de Contas Europeu tornara público que pedira informações à Comissão Europeia sobre a compra das vacinas da Pfizer e quais os «peritos científicos consultados e pareceres recebidos, calendário das conversações, registos das discussões e pormenores dos termos e condições acordados». E revelara que não obtivera da Comissão presidida por von der Leyen qualquer resposta às informações solicitadas.
Além disso, a provedora de Justiça da UE, Emily O’ Reilly, condenou o facto de a Comissão Europeia negar acesso público a toda a informação sobre o negócio com a Pfizer.
Mas já fora em abril de 2021 que o caso tinha sido tornado público pelo New York Times, num artigo que referia a troca de SMS entre von der Leyen e Albert Bourla. Também o jornal tentou que a Comissão Europeia lhe desse acesso às mensagens, mas viu todos os seus pedidos serem recusados, razão pela qual acabaria por intentar ação judicial invocando a legislação europeia aplicável.
O caso voltou agora à baila, por coincidência – ou não –, apenas uns dias passados sobre o anúncio da recandidatura de von der Leyen a um novo mandato na presidência da Comissão Europeia.
A 7 de novembro passado, Portugal acordou com buscas na Residência Oficial do primeiro-ministro: estava em marcha a Operação Influencer, que envolvia o inner circle de António Costa e a Procuradoria-Geral da República fez saber que o próprio chefe do Governo e secretário-geral socialista estava a ser investigado.
Nessa mesma manhã, António Costa apresentou a demissão a Marcelo Rebelo de Sousa, considerando não ter condições para continuar e precipitando uma crise política que culminaria nas eleições de 10 de março e na posse do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro.
Mas dois dias depois da demissão, Costa fez uma declaração ao país a partir da Residência Oficial de S. Bento, na qual se afirmou envergonhado e pediu desculpa por terem sido encontrados no gabinete do seu chefe de gabinete, em S. Bento, largos milhares de euros em notas escondidas em envelopes nas estantes e numa caixa de vinho numa gaveta de Vítor Escária. Na mesma ocasião, disse ainda que a sua vida pública e política em cargos executivos acabava ali, atendendo ao tempo (anos) que estes processos demoram, que é como quem diz graças à lentidão da Justiça portuguesa.
Ou seja, considerando não estarem reunidas as condições para continuar primeiro-ministro, deixava apenas a porta entreaberta para um eventual regresso, na melhor das hipóteses, nas Presidenciais de 2026.
De então para cá, porém, António Costa viu reforçadas as hipóteses de poder vir a suceder ao belga Charles Michel na presidência do Conselho Europeu.
Os sinais foram claros e evidentes: recebeu elogios atrás de elogios e uma ovação de pé da sua família europeia, foi o único ‘outsider’ convidado a intervir na homenagem a Jacques Delors, viu a presidente da Comissão Europeia demonstrar toda a sua simpatia pelo decano dos socialistas da UE.
Aliás, as cerimónias de despedida do agora ex-primeiro-ministro português acabaram por parecer muito mais um até já.
Se assim é, temos então uma Europa em que os mais fortes candidatos aos seus dois mais altos cargos são ambos visados em investigações judiciais por suspeitas de envolvimento direto ou indireto em esquemas de corrupção.
Longe vão mesmo os tempos em que a política se regia pela máxima de que não bastava à mulher de César ser honesta, era preciso também parecê-lo.Pode falar-se em crise de líderes na UE – esse é na verdade um problema à escala mundial –, mas é muito mais do que isso. A confirmarem-se as escolhas de von der Leyen e de António Costa como os dois mais altos dirigentes da UE sem que a Justiça os tenha ilibado, mantendo-se ambos sob suspeita de terem usado ou abusado das funções que lhes foram confiadas com comportamentos passiveis de consubstanciarem corrupção, estamos perante uma negação absoluta dos princípios que nortearam a construção do projeto europeu.
A transparência, a exigência, o crivo apertado e a malha fina do Parlamento Europeu e das instituições europeias não passam de uma falácia?
E se von der Leyen e António Costa estão inocentes, então temos um problema não menos grave com a Justiça e as autoridades de investigação nacionais e europeias.
De uma ou de outra forma, não vamos por bom caminho.
Ainda que para António Costa, como se tem visto, haja motivos para andar com ar leve e sorriso rasgado como se lhe tivessem tirado um pesado fardo de cima.
Ou, como diria Mário Soares, sentindo-se livre como um passarinho.