O 25 de Abril para as crianças

Desejaria que um livro sobre o 25 de Abril contado aos mais pequenos corresse tão bem como uma iniciativa em que participei. Mas temo que tal não aconteça. Todas as tentativas que tenho visto nesse sentido são de uma pobreza confrangedora: primárias, enganadoras e maniqueístas.

Vi a notícia de que irá publicar-se uma história do 25 de Abril para os mais pequenos. É uma excelente ideia, embora tenha alguns riscos. Pode sair uma daquelas simplificações da História que abundam nos livros escolares: antes da revolução o país estava mergulhado nas mais negras trevas e no 25 Abril acordou para uma radiosa liberdade.

Ora, não vou desenvolver hoje o tema, mas nem o marcelismo era um regime sinistro (embora persistisse a polícia política e a censura) nem o pós-25 de Abril foi um mar de rosas. Lembro-me de o meu pai notar que Álvaro Cunhal nunca falava em ‘liberdade’ mas sim em «amplas liberdades». E com isso queria dizer que muitas liberdades eram permitidas… mas não todas. Só as que eles toleravam. Os comunistas nunca gostaram da palavra ‘liberdade’.
Mas a notícia chamou-me a atenção por outro motivo.

É que há uns bons anos estive envolvido numa experiência semelhante, ou seja, conceber livros onde se contavam às crianças histórias para adultos.
O SOL dava os primeiros passos, e eu desejava lançar uma iniciativa que fidelizasse os leitores durante os meses de Verão. Tinha de ser algo colecionável mas que em cada semana fizesse sentido. Talvez uma coleção de livros para crianças, mas sobre o quê e em que moldes?

Combinei um almoço com dois homens da Oficina do Livro, uma editora jovem e criativa, com a qual eu então trabalhava: o António Lobato Faria e o Marcelo Teixeira. O encontro teve lugar num restaurante ótimo chamado O Caçador, na Cruz Quebrada, infelizmente já desaparecido.
Conversa puxa conversa, o Lobato Faria avançou de repente com uma ideia que agarrei de imediato: uma coleção de livros para crianças sobre os clássicos da literatura portuguesa ‘reescritos’ por autores atuais.
Era um desafio difícil, mas muito aliciante.

Afinou-se a ideia, discutiram-se pormenores, e pedi-lhes um orçamento. Mas quando este chegou foi uma enorme desilusão: o preço por livro era incomportável, mesmo sem ilustrações nem capa dura, que era o modelo que eu imaginava. A hipótese caiu por terra. Mas o Efraim Tavares, que era o diretor de marketing do SOL, não desistiu – e apareceu-me um dia com uma proposta que parecia caída do céu: uma editora do Norte, a Quasi, dirigida por um jovem chamado Jorge Reis-Sá, apresentava um preço que era metade ou um terço do outro – e ainda por cima para livros de capa cartonada, profusamente ilustrados, em papel couché. E pagaria ele aos autores e aos ilustradores! Parecia mentira, mas era verdade. Fez-se uma maquete, e o resultado foi esplêndido.
Seguiu-se a seleção dos títulos – que iam desde Os Maias a Amor de Perdição, Os Fidalgos da Casa Mourisca, A Ilustre Casa de Ramires, A Morgadinha dos Canaviais ou A Mensagem – e escolheram-se os autores para os ‘reescrever’: Francisco José Viegas, José Jorge Letria, José Luís Peixoto, Rui Zink…
O projeto correu no melhor dos mundos. Demos-lhe o título de ‘Clássicos da Literatura Portuguesa Contados às Crianças’, e o entendimento entre todos foi magnífico. O Jorge Reis-Sá, que eu não conhecia, cumpriu tudo aquilo que se tinha proposto – e que me parecia impossível de satisfazer –, excedendo as melhores expectativas. Os originais começaram a chegar-me às mãos e correspondiam, no essencial, ao que se tinha pensado. E as ilustrações eram de muito boa qualidade.

Comecei a ler os textos um a um, fiz algumas correções – tentando que fossem muito claros, cristalinos, fluentes, e no tom certo para leitores muito novos –, e aí surgiu o primeiro e único problema grave: alguns autores, informados de que eu tinha introduzido alterações nos seus textos, revoltaram-se, dizendo que não aceitavam nenhuma mudança. E aí o Jorge Reis-Sá foi uma vez mais inexcedível: reuniu-se com eles, mostrou-lhes as alterações, fez-lhes ver que eram justificadas e razoáveis – e todos reconheceram e aceitaram-nas.

O sucesso da coleção foi enorme – a ponto de ser necessário fazer uma 2.ª série, com novos títulos, novos autores e novos ilustradores. Ainda hoje é uma iniciativa de que me orgulho. Venderam-se centenas de milhares de exemplares.

Desejaria que este livro sobre o 25 de Abril contado aos mais pequenos corresse tão bem como correu aquela iniciativa. Quer na qualidade do texto e das ilustrações, quer na produção. Mas temo que tal não aconteça. Todas as tentativas que tenho visto para contar o 25 de Abril às crianças são de uma pobreza confrangedora: primárias, enganadoras e maniqueístas. Ora, como a coleção dos Clássicos mostrou, é possível contar às crianças, de uma forma simples, histórias complexas.