Engarrafados

É inevitável tomar medidas dissuasoras do transporte individual, o que passa por tributar a entrada e saída dos centros urbanos e por aumentar o custo do estacionamento.

O trânsito, particularmente nas áreas metropolitanas, atingiu níveis insustentáveis. Em 2023, ocorreu um aumento de mais de 8 por cento no tráfego relativamente ao ano anterior, que já fora recorde. Esta curva de crescimento irá manter-se, apesar do número de passageiros nos transportes públicos já ter recuperado para os valores pré-pandemia. Ora, independentemente dos custos ambientais, económicos e também sociais que resultam deste aumento e dos atrasos resultantes, não é possível desenvolver infraestruturas viárias que possam acomodar este crescimento. E, sendo assim, há um colapso na mobilidade, particularmente nas cidades. Obviamente, cada um dos cidadãos que utiliza o transporte individual dirá que tem boas razões para fazer essa escolha individual, e dificilmente reconhecerá que é a soma dessas suas escolhas partilhadas a principal responsável pelo aumento do trânsito, e pelos atrasos e constrangimentos que dele resultam. É mais fácil responsabilizar as obras, o estacionamento anárquico, e uma miríade de outras causas menores, do que admitir que há uma sobreutilização das infraestruturas que, além do mais, são cada vez mais disputadas por outros usos. É o caso da logística urbana, com a multiplicação das entregas porta a porta, dos TVDE que circulam em permanência e apanham e descarregam clientes em qualquer lugar, das bicicletas cujos adeptos reclamam vias dedicadas que, apesar da fraca utilização, roubam faixas de rodagem ou atrapalham a circulação em vias partilhadas, da necessidade de criar passeios de maior dimensão para os modos suaves e para acomodarem as desejadas árvores, das trotinetes, dos desregulados transportes turísticos, desde o tuk-tuk ao fumegante autocarro. E, além do mais, os automóveis são muito mais volumosos do que há décadas atrás: basta comparar o comprimento e largura do Mini dos anos 60 com o atual.

Temos um problema que só pode ser resolvido com uma revolução nos hábitos, de tal forma que o automóvel deixe de ditar a mobilidade. O que exige uma oferta de transportes públicos de maior qualidade, com fiabilidade, pontualidade e adequação das redes à procura. Nada que seja pacífico, porque há quem consiga, na mesma conversa, argumentar que não há procura para um metrobus ou brt, mas ao mesmo tempo defende que, nesse mesmo trajeto, deveria haver uma linha de metro.

Ouvimos diariamente essa contradição no Porto, a propósito do brt que ligará a casa da música a poente.

Em face desta situação, é inevitável tomar medidas dissuasoras do transporte individual, o que passa por tributar a entrada e saída dos centros urbanos e por penalizar e aumentar o custo do estacionamento, particularmente na via pública, aumentando a oferta, a preço competitivo, de parques dissuasores (os ‘park and ride’) nas periferias das grandes cidades e nos interfaces e terminais intermodais. Obviamente, não são medidas populares.

Como não é qualquer uma que interfira com a relação que o português mantém com o seu automóvel.

Tal como Lucky Luke, que podia deixar o seu inseparável Jolly Jumper à porta do saloon, o português acredita que pode e que têm o direito de usar o carro no porta a porta, mesmo que a distância seja de 250 metros; que o pode exibir e abandonar a seu bel prazer, apropriando-se do espaço público; que o pode usar enquanto fala ao telemóvel, que não têm de circular na faixa da direita, que não têm de cumprir regras de civilidade ao volante do seu bólide. Sucede que esses hábitos são passado. E o futuro que nos espera será sempre diferente, por muito que custe.