Sá Carneiro e o diabo

Há razões para que alguns homens ganhem a eternidade e outros não. A grandeza de espírito aplicada nas decisões e nas ações é a mais importante dessas razões.

Quando Francisco Sá Carneiro perguntou a Natália Correia como era Snu Abecassis, editora da D. Quixote, a poetisa terá dito que «ela é uma princesa que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do príncipe que a desperte com um beijo de fogo. O príncipe é você. Telefone-lhe e convide-a». Depois de falar com Sá Carneiro, terá ligado a Snu a quem disse: «Menina, o príncipe encantado por que esperavas vai aparecer-te».

Corria o ano de 1976. Francisco era casado, assim como Snu, a mulher por quem se apaixonou.

Quando o PSD ganha as eleições legislativas, de 1979, viviam maritalmente. Snu já estava divorciada, Francisco aguardava que corresse o tempo então necessário ao divórcio, quando um dos cônjuges não concordava com o mesmo.

Esta história encantou uma parte do país e chocou outra. Havia e continua a haver um Portugal tacanho que, na altura, não acreditava (ou não aceitava) que um homem e uma mulher casados se pudessem descobrir e apaixonar.

Os costumes, no Portugal saído da ditadura, eram mais conservadores. O casal foi criticado, sofreu tentativas de ostracização obtusas, que ainda hoje nos envergonham. Francisco Sá Carneiro, sempre corajoso, não teve medo. Enfrentou tudo: o país tacanho, as convenções sociais… tudo! «Se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo».

Às vezes parecemos acreditar que esse país pequenino já está lá atrás, num qualquer passado distante, mas não é bem assim.

Esse Portugal, que ainda não desapareceu, hoje não acredita que pessoas do mesmo género se possam amar ou que possam adotar e amar uma criança (o Passos Coelho liberal, de 2010, aceitava). Ainda que a ideologia de género cometa excessos absurdos, na sua tentativa de impor uma visão aos outros, ter um ex-líder do PSD a apresentar este livro é estranho. Ou não!

O ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho tem um percurso político longo. Foi social-democrata quando era líder da JSD (da esquerda do partido), mais tarde liberal e agora conservador de direita. Ninguém está obrigado a manter ideias ou ideais, dizia Mário Soares que «só os burros não mudam», mas tamanha plasticidade soa a inconsistência.

Como se sentiria Sá Carneiro ao ver um antigo líder do partido que fundou, e que o próprio dizia ser de esquerda, alinhar com a parte do país que o perseguiu a si ‘e à mulher que amava’? Talvez traído, talvez dececionado com o facto de não ter conseguido transmitir ao partido as bases sociais-democratas progressistas que o defendessem da plasticidade política dos que haviam de chegar.

Quantas pessoas sofrem com a pressão social e familiar apenas por serem como são? Quantas tomam as suas decisões no medo das convenções sociais que as esmagam? Quantas mulheres morreram em abortos de vão de escada, realizados sem higiene ou segurança mínimas, para que as consciências das pessoas de bem estivessem sossegadas? Até que ponto estes ‘portugueses de bem’ são pessoas do bem?

Há razões para que alguns homens ganhem a eternidade e outros não. A grandeza de espírito aplicada nas decisões e nas ações é a mais importante dessas razões.

Pedro Passos Coelho avisou, recorrentemente, que ‘o diabo vinha aí’. Talvez cansado de esperar, escolheu tornar-se, ele mesmo, o ‘mafarrico’. Pena que, no processo, tenha escolhido assombrar Portugal com o regresso às trevas do 24 de abril de 1974.