O tema do aborto entrou a pés juntos no debate público em toda a Europa e será certamente um dos temas fraturantes que marcará a campanha das eleições para o Parlamento Europeu (PE) em 9 de junho. Petições, iniciativa de cidadania, resoluções e outras manifestações somam-se em final de mandato com a preocupação de deixar marca e de travar o que os seus proponentes qualificam como um movimento de retrocesso ao direito ao aborto. Uma tendência que começou nos EUA, em 2022, com o acórdão do Supremo Tribunal que considerou que não há nenhum direito desta natureza que decorra da Constituição, logo, não é garantido a nível federal o chamado direito ao aborto e estabeleceu que esta é uma questão que deve decidida por cada um dos Estados. Com vários Governos europeus a alterarem as suas posições em relação a este tema, a possibilidade de reversão de legislação que parecia proteger aquilo que já era dado com um direito garantido torna-se cada vez mais real.
Ao mesmo tempo que todas estas iniciativas são interpretadas como tomadas de posição políticas sem qualquer efeito prático efeito prático. Isto porque o PE não tem competência legislativa e muito menos poder para impor aos países a forma, ou o conteúdo, da legislação nesta matéria. Com consequências práticas ou não, a verdade é que o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez voltou a estar na ordem do dia, com adoção de uma resolução que apela à inclusão do chamado direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais (CDF)_da União Europeia. O documento foi aprovado pelos eurodeputados por uma maioria de 336 votos a favor, 163 contra e 39 abstenções. A resolução não tem caráter vinculativo, sendo apenas uma recomendação para que o Conselho Europeu e os Estados-membros efetivem a resolução do Parlamento. Ou seja, um convite aos Estados para atuarem nesse sentido. Em relação aos representantes de Portugal, os eurodeputados do PS, BE e PCP votaram a favor e os dos PSD e CDS-PP contra (com exceção do social-democrata Ricardo Morgado, que se absteve). Também o primeiro-ministro, questionado sobre esta matéria, pronunciou-se contra. «A consagração como direito fundamental do direito à IVG traz um desequilíbrio no ordenamento jurídico, porque significa que, dos dois direitos que estavam em conflito – direito à autodeterminação da mulher e o direito à proteção da vida do nascituro –, no fim, vai prevalecer integralmente apenas um, o que significa o desaparecimento do outro», afirmou Luís Montenegro na Assembleia da República durante o debate de preparação do Conselho Europeu.
Questionada pelo Nascer do SOL sobre esta iniciativa, Patrícia Fragoso Martins, professora da Faculdade de Direito da Católica e especialista em Direito Europeu, esclarece que, apesar do o PE «ter alguma tradição em fazer declarações de direitos, como não tem competência para legislar ou adotar qualquer ato vinculativo sozinho, elas são essencialmente tomadas de posição políticas». Esta especialista não acredita que, «apesar de alguns Estados estarem a virar excessivamente à direita ou a tornarem-se mais conservadores, haja condições para tornar isto numa realidade eficaz». Na sua opinião, esta iniciativa «faz parte de um contexto mais amplo de crise do estado de Direito, sobretudo de reação a algumas decisões mais radicais, nomeadamente da Hungria e da Polónia, que têm leis muito restritivas. É por reação e por medo do que pode acontecer em alguns Estados». Além disso, a alteração da CDF da UE implicaria a alteração aos tratados, o que obrigaria à revisão do processo constitucional europeu ,o que só pode ser feito se todos os Estados estiverem de acordo. «O que obviamente é uma situação que não se verifica. Pelo menos, Polónia, Hungria, Irlanda, Eslováquia ou Malta certamente se pronunciariam contra», afirma. Acresce ainda que a CDF, adotada em 2000 e com valor jurídico vinculativo desde 2009, nunca foi alterada. «Tal como foi aprovada é como está. E não se mexe nos direitos fundamentais facilmente», garante esta especialista.
Por outro lado, o facto de a Europa ter como prioridade atual uma guerra nas suas fronteiras, este dossiê está longe de ser prioritário. «Enquanto tivermos guerra na Ucrânia, estes temas mais sensíveis com a Polónia e Hungria estão subalternizados ». No entanto, Patrícia Fragoso Martins é da opinião de que este tema tem potencial para gerar confusão política: «É um tema que vai estar ensombrado na campanha, primeiro por ignorância, depois por oportunismo, vai ser explorado. Se depois tem seguimento ou se vai produzir resultados jurídicos nos próximos anos, tenho sérias dúvidas». E conclui: «Este é um assunto que vai morrer. Não estou a ver que haja condições para se ter esta discussão na Europa no contexto atual».
Já a Igreja não é tão otimista em relação ao que esta iniciativa representa. O padre Ricardo Figueiredo, diretor de comunicação do Patriarcado, em declarações ao Nascer do SOL, qualificou a resolução do PE como «um sinal da perda do valor do sentido da vida e da dignidade da mulher». O valor da vida humana, na medida em que «tem de ser defendida pela sociedade porque sem vida não há sociedade». E, quanto à dignidade da mulher, porque «a uma mulher grávida não se pode apenas apresentar o caminho do aborto».