‘A democracia é o poder e o dever de todos’

O escritor francês, Michel Houellebecq, relatou num dos seus últimos romances que, perante uma grande perda, se vivem, sucessivamente, cinco fases até se atingir a ‘epifania’.

A afirmação que dá conteúdo e sentido a este texto foi utilizada pelo General Ramalho Eanes, numa recente intervenção televisiva.

Não será muito fácil encontrar uma fórmula que exprima de forma tão incisiva e correcta o contrato de regime que deve orientar o comportamento dos intervenientes no processo democrático.

O desrespeito sistemático desta regra, que vincula de igual modo vencedores e vencidos, é na verdade a origem de todas as crises e de todos os bloqueamentos que paralisam as sociedades.

No passado dia 10 de março os portugueses pronunciaram-se, mais uma vez, sobre o que querem para o seu futuro imediato.

E, ao contrário do que tem sido relatado, pelas habituais pitonisas do regime, pronunciaram-se de forma muito directa e clara.

Em primeiro lugar, o eleitorado decidiu que a esquerda em geral e o partido socialista em particular deviam passar à oposição.

Os números são esclarecedores, quer no que respeita à brutal perda de apoio dos socialistas, quer no continuado enfraquecimento da generalidade dos partidos localizados na hemisfério político da esquerda.

Em segundo lugar, e tomando por válidos os compromissos da campanha (’não é não’ e ‘rejeição do Bloco Central’), o eleitorado aceitou que a única hipótese viável de um mínimo de estabilidade é a formação de um governo da Aliança Democrática.

Em democracia tudo isto é transitório, e por isso mutável, é, óbvio, só se mantém enquanto sejam respeitadas os princípios, as normas e os prazos constitucionais e esteja assegurado, em plenitude, o exercício dos controlos e escrutínios próprio de um estado de direito.

Mas, não estando em causa violações graves daqueles principais, os partidos, independentemente da escala da sua representação, devem usufruir dos direitos e vincularem-se aos deveres que a democracia lhes confere.

Contudo nem sempre é fácil e, sobretudo não é fácil quando se desperdiça ou esbanja, em pouco tempo, uma vantagem eleitoral considerável como sucedeu, recentemente, com o Partido Socialista e, por arrastamento, com a generalidade da esquerda.

Mas tudo se explica recorrendo aos ‘clássicos’.

O escritor francês, Michel Houellebecq, relatou num dos seus últimos romances (que versam sempre assuntos de interesse político relevante) que, perante uma grande perda, se vivem, sucessivamente, cinco fases até se atingir a ‘epifania’.

A normalização inicia-se com a ‘negação’, passa para a ‘raiva’, desenvolve-se para a ‘negociação’, empurra para a ‘depressão’ e termina com a ‘aceitação’.

As primeira e segunda fases foram logo vividas no episódio da eleição da Mesa do Parlamento, na apresentação de uma moção inócua de rejeição do programa de governo, na tentativa de reconfigurar a geometria parlamentar em três blocos estanques, com a caricata proposta de construir um frentismo de esquerda que, sabe-se lá como, pudesse governar e, mais recentemente, na irracional disputa dos ‘despojos’ do chamado alívio fiscal.

A terceira fase, a da ‘negociação’ surgirá quando tiver de ocorrer e, sobretudo quando os políticos perceberem que não podem continuar a brincar com o fogo.

Com mais ou menos ‘depressão’, a ‘aceitação’ será alcançada antes que o actual ciclo político esteja esgotado.

Mas é prudente pensar que ‘amanhã pode não ser a véspera desse dia’. Habituem-se, como gostava de dizer o ex primeiro ministro.

Com maior ou menor reconhecimento e, necessariamente, a ritmos diferentes, todas as formações políticas que ‘perderam’ as eleições (incluindo o partido da direita que a nomenclatura instalada considerou como o grande vencedor) acabarão por interiorizar esta realidade pois é isso que importa ao país e aos portugueses.

E só o não seria se os políticos ignorassem que, ao exercício dos seus direito, têm de juntar o cumprimento dos seus deveres para com a sociedade.

Nesta hipótese inverosímil, embora com custos ‘algo’ os corrigirá, como sempre sucedeu em diversas épocas da nossa história.