O Abril em Portugal

Em junho de 1974 fui à redação do Diário de Lisboa com um texto para publicar chamado A extrema-esquerda e a Terceira República. Falei com o Fernando Dacosta, jornalista de quem era amigo, ele recebeu-me numa salinha de espera pequena, leu o texto, e disse-me: « Zé António, o ambiente aqui na redação está muito…

Algumas pessoas que no 25 de Abril militavam em partidos ou movimentos revolucionários dizem agora que o período de maior liberdade em Portugal se viveu entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975. Para esses, esta data significa o início da contrarrevolução.

Percebo perfeitamente a ideia.

Para os revolucionários, foi esse o momento em que puderam agir com maior liberdade. Inversamente, para os democratas, onde me incluía, foi um período difícil, se não mesmo assustador.

Num desses dias agitados do pós-25 de Abril fui ao Diário de Lisboa, jornal de que já tinha sido colaborador e onde trabalhava o meu amigo Fernando Dacosta, com um texto de opinião. Chamava-se A extrema-esquerda e a Terceira República, e fazia um apanhado da atuação dos partidos da extrema-esquerda. Era um artigo sereno, analítico, não panfletário. Mas o tempo não estava para análises serenas.

O Fernando Dacosta recebeu-me numa salinha de espera pequena, leu o texto, e disse-me:

  • Zé António, o ambiente aqui na redação está muito radicalizado. Se fosse a ti procurava outro jornal…

Agradeci, ele devolveu-me o texto e saí. O DL ficava na rua Luz Soriano, ao Bairro Alto, e ao preparar-me para regressar a casa lembrei-me que o jornal República ficava ali a dois passos, na rua da Misericórdia, num 1.º andar.

Subi a escada, a porta estava fechada, toquei à campainha, e quem a veio abrir – imagine-se – foi o jornalista Assis Pacheco, que não conhecia pessoalmente.

  • Olá! Tenho aqui um artigo que gostaria de publicar… – disse-lhe, entregando-lhe os papéis pela porta entreaberta. Ele agarrou-os, não me mandou entrar, e eu fui-me embora.

Não pensei mais no caso.

Alguns dias depois, estava eu na cama com gripe, a minha mulher – vinda da rua – entrou-me pelo quarto dentro com um jornal na mão, e disse-me sem preâmbulos: «Vem aqui um artigo teu».

Fiquei incrédulo. Um artigo meu? Dada a forma como tudo tinha corrido, dera o assunto por encerrado. Peguei no jornal – o República – e confirmei. Mas tudo aquilo era uma surpresa. Nós nunca comprávamos o República, o nosso vespertino era o Diário de Lisboa, só que nesse dia este já estava esgotado e ela decidira comprar aquele. Enfim, uma enorme coincidência!

Mas a história não acaba aqui.

No dia seguinte, no ateliê onde trabalhava, recebo uma chamada de um homem chamado Eduardo Martins Soares. Disse-me que era editor da Bertrand, que lera o meu artigo no República em consequência de uma insónia, gostara muito e convidava-me a escrever um livro sobre o tema.

Caí das nuvens! Depois de todas aquelas peripécias, convidavam-me para escrever um livro! Disse que sim, claro. Passei as férias seguintes em Donas, perto do Fundão, terra da minha família paterna, e meti mãos à obra. Mas a certa altura constatei que o assunto não dava para muito mais. Escrevi então ao editor e disse-lhe:

  • Não consigo escrever um livro sobre a extrema-esquerda. Ocorreu-me, em alternativa, fazer um estudo sobre a transição do salazarismo para o marcelismo, e depois daí até à revolução. Mas como a proposta que me fez era outra, compreendo que não queira…

Mas o editor respondeu-me que sim, que escrevesse. O livro saiu para as bancas ainda em 1974, sob o título Do Estado Novo à Segunda República – Crónica Política de Um Tempo Português, e foi um inesperado sucesso. Durante muitas semanas rivalizou nos tops de vendas com outro livro saído na altura, o Alvorada em Abril, de Otelo Saraiva de Carvalho.

E assim mais uma vez se verificou o ditado ‘Há males que vêm por bem’. A recusa do Diário de Lisboa, na altura ocupado por jornalistas comunistas e esquerdistas, acabou por me proporcionar a publicação do primeiro livro.

Para mim esse período foi, pois, frutuoso. Mas não foi de liberdade. Nos meios em que me movimentava, passava-se mesmo o contrário: havia uma clara coação à liberdade, sentia-se uma tentação totalitária. Claro que os revolucionários veriam as coisas de forma diferente – pois eram eles que impunham a sua lei. E é precisamente nesses períodos tumultuosos que eles se sentem mais à vontade.