Há uns bons 20 anos, Marcelo Rebelo de Sousa telefonou-me para o Expresso, o que acontecia com muita regularidade. Eu não estava, e atendeu-o uma secretária, com a qual Marcelo tinha bastante confiança.
Conversa puxa conversa, ela contou-lhe uma decisão interna que eu tinha tomado e que provocara grande sururu na redação. Marcelo achou aquilo «uma loucura» e comentou:
– Por que é que o Zé António não me ligou antes de fazer esse disparate?
Passados 20 anos, apetece-me dizer: por que é que Marcelo Rebelo de Sousa não me ligou antes de dizer os disparates que disse nas vésperas do 25 de Abril?
Com a diferença de que as minhas decisões tinham apenas impacto na redação de um jornal (e até foram acertadas, como o futuro mostraria) e as dele tiveram repercussão nacional e mesmo internacional.
Já não falo das apreciações pessoais sobre um primeiro-ministro em exercício e um ex-primeiro-ministro, que apenas caberiam num fim de conversa noturna entre dois amigos, naqueles momentos em que já não há nada para dizer.
Já não falo das declarações sobre a rutura de relações com o filho e dos ataques implícitos à memória do pai, ao execrar a política colonial do anterior regime, da qual o pai foi um executor destacado, como ministro do Ultramar e governador colonial.
Mas falar perante jornalistas, ainda por cima estrangeiros, das ‘reparações’ que Portugal deve pagar aos países que colonizou é de bradar aos céus.
É de uma irresponsabilidade total.
De uma leviandade absoluta.
Marcelo Rebelo de Sousa não é ignorante e conhece a extrema delicadeza deste tema. Um tema lançado pelo movimento woke, que provocou uma intensa polémica internacional.
Marcelo até pode intimamente concordar com as ‘reparações’. Mas é óbvio que não podia dizê-lo na qualidade de Presidente República, sem sequer falar com o Governo e comprometendo o Estado português.
O que diria agora o comentador Marcelo Rebelo de Sousa ao Presidente Marcelo?
Perguntar-lhe-ia: fará sentido um país colonizador pagar individualmente reparações aos colonizados ou isso deverá ser feito no âmbito de um processo global, envolvendo todos os impérios e todos os atos praticados?
E que período deverá ser contemplado?
Incluirá a Antiguidade (os egípcios, por exemplo), o Império Romano, a Idade Média, ou apenas considerará as colonizações europeias, e sobretudo o comércio de escravos no Atlântico após 1600? E a ser assim, além de nós terão de ser incluídos os holandeses, os franceses, os espanhóis, os britânicos, os árabes.
Mas vamos supor que Portugal decide unilateralmente fazer contas com a História e calcular o deve e haver das suas relações com as ex-colónias, entre o início do século XV e 1974, incluindo a guerra colonial.
É então preciso ter em conta o que Portugal trouxe de lá, o que levou para lá e o que deixou lá. Do Oriente trouxe especiarias, louças, café e chá; do Brasil ouro, diamantes, madeiras, algodão e açúcar; de Moçambique e Angola sobretudo escravos, e mais recentemente também diamantes, marfim e artesanato.
Quem beneficiou sobretudo dos escravos africanos foi a economia brasileira (e por isso o Brasil não tem nada que ser indemnizado, como oportunisticamente exigiu uma ministra daquele país).
Mas, em contrapartida, Portugal deixou nas colónias muita coisa, entre tangíveis e intangíveis. Um gigantesco património edificado, distribuído por inúmeras cidades. Grandes infraestruturas, desde portos, caminhos-de-ferro, estradas e barragens, de que Cahora Bassa é um grande exemplo. E levou para o Brasil preciosidades, como a Biblioteca Real, transferida para o Rio de Janeiro em 1811. E depois há, claro, a língua portuguesa.
Se não fosse a língua, Angola e Moçambique pura e simplesmente não existiriam, porque só ela manteve unidas etnias com identidades e culturas muito diferentes. E se a Corte portuguesa não tivesse ido para o Rio em 1808, o Brasil ter-se-ia desagregado, como aconteceu à América espanhola, que se pulverizou por vários Estados. Todos os historiadores brasileiros concordam neste ponto.
Ora, como é que isso se contabiliza?
E como se contabilizam os mortos dos dois lados, na guerra ou em massacres como o de Wiriyamu, praticado por tropas portuguesas, ou do Norte de Angola, da responsabilidade da UPA?
Mas, mesmo que fosse possível calcular esse valor, como se iriam agora compensar as famílias sacrificadas, que na sua maioria já não existem? Pagávamos indemnizações às atuais elites angolana e moçambicana, para elas distribuírem o dinheiro pelos generais que sustentam os respetivos regimes?
Não vale a pena continuar.
Se o comentador Marcelo Rebelo de Sousa comentasse o Presidente Marcelo, dir-lhe-ia simplesmente: «Meteu a pata na poça, e de que maneira!». É que Marcelo abriu uma caixa de Pandora que não saberá como fechar. Pior: reabriu uma ferida que parecia cicatrizada. As relações entre Portugal e as ex-colónias, que estavam pacificadas, foram envenenadas por estas declarações incendiárias.
Sinceramente, não percebo o que lhe passou pela cabeça.