O príncipe do Hamas que se tornou espião ao serviço de Israel

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Filho de um alto dignitário do HAMAs, Mosab Hassan Yousef mudou de lado e passou a trabalhar para os serviços de inteligência israelitas. Na sua autobiografia, Filho do Hamas (ed. Alma dos Livros), de que pré-publicamos um excerto, conta como foi recrutado pelo inimigo e denuncia os líderes palestinianos que guiam o seu povo “como gado para o Matadouro”.

CAPÍTULO DEZASSETE
AGENTE SECRETO
2000-2001

O que estou prestes a revelar só era conhecido até agora por muito poucos homens do serviço de inteligência de Israel. Estou a divulgar estas informações na esperança de lançar luz sobre vários acontecimentos importantes que há muito tempo estão envoltos em mistério.

No dia em que tomei a decisão de fazer tudo o que podia para deter aquela loucura, comecei a informar-me sobre as atividades e os planos de Marwan Barghouti e dos líderes do Hamas. Contei tudo o que sabia ao Shin Bet, que estava a fazer o possível para os encontrar.

Dentro do serviço de inteligência interno de Israel, ganhei o nome de código Príncipe Verde – «verde» era a cor da bandeira do Hamas, enquanto «príncipe» representava uma referência óbvia à posição do meu pai, um rei dentro daquela organização terrorista. Tornei-me então, aos 22 anos, o único agente do Shin Bet que fazia parte do Hamas e se podia infiltrar na sua ala militar e política, bem como em outras fações palestinas.

Essa responsabilidade, porém, não estava toda sobre os meus ombros. Naquela altura, já era claro para mim que Deus tinha um motivo para me colocar especificamente no núcleo central do Hamas e da liderança palestina, tendo acesso às reuniões de Yasser Arafat e ao serviço de segurança israelita. Encontrava-me numa posição singular, sem precedentes, para realizar aquela tarefa, e podia sentir que Deus estava comigo.

Queria ir fundo, saber tudo aquilo que estava a acontecer. Estivera no centro da Primeira Intifada, cercado de violência. Os mortos no conflito tinham lotado um cemitério no qual eu jogava futebol quando era criança. Atirei pedras, desrespeitei o toque de recolher, mas não entendia porque é que o nosso povo procurava a violência. Queria saber a razão pela qual estávamos a fazer aquilo tudo novamente. Precisava de entender isso.

Da perspetiva de Yasser Arafat, o levante parecia estar relacionado com a política, com o dinheiro e com a manutenção do poder. Ele era um grande manipulador, o comandante supremo das marionetas palestinas. Diante das câmaras, condenava o Hamas pelos ataques contra civis em Israel. O Hamas não representava a ANP nem o povo palestiniano, insistia em declarar. No entanto, pouco fazia para interferir, satisfeito pelo facto de o Hamas realizar o trabalho sujo e ser o alvo da pressão da comunidade internacional. Arafat tinha-se tornado um velho político dissimulado que sabia que o governo israelita não podia deter os ataques sem estabelecer uma parceria com a ANP. Quanto mais ataques houvesse, mais cedo Israel seguiria para a mesa de negociações.

Durante aquele período, surgiu em cena um novo grupo radical autodenominado Brigada dos Mártires de Al-Aqsa. Os seus alvos preferidos eram os soldados das Forças de Defesa de Israel e os colonos. No entanto, ninguém sabia quem eram esses homens e de onde vinham. Pareciam religiosos, embora ninguém no Hamas ou na Jihad Islâmica os conhecesse. Não pareciam ser uma ramificação nacionalista da ANP nem do Fatah.

O Shin Bet estava tão intrigado como o resto do mundo. Uma ou duas vezes por semana, um carro ou um autocarro de colonos era atacado com precisão letal. Nem mesmo os soldados israelitas fortemente armados conseguiam fazer frente àquele grupo.

Certo dia, Loai ligou-me:

– Temos relatos de homens não identificados a visitar Maher Odeh e precisamos de que descubras quem são e qual a ligação que têm com ele. Acreditamos que és a única pessoa capaz de o fazer bem.

[…]

‘Eu desprezava Arafat’

Nos primeiros anos da Intifada de Al-Aqsa, eu acompanhava meu pai aonde quer que ele fosse. Como filho mais velho, era o seu protegido, guarda-costas, confidente, aluno e amigo. E ele era tudo para mim: o melhor exemplo do que significava ser um homem. Embora a nossa ideologia evidentemente já não fosse a mesma, eu sabia que o seu coração estava certo e que as suas motivações eram puras. O seu amor pelos muçulmanos e sua devoção a Alá nunca esmoreceram. Ansiava pela paz para o seu povo e tinha trabalhado a vida toda para atingir esse objetivo.

O segundo levante concentrou-se sobretudo na Cisjordânia. Em Gaza, houve algumas manifestações, e a morte do jovem Mohammed al-Dura atirou ainda mais lenha para a fogueira. No entanto, foi o Hamas que atiçou o fogo até se tornar um incêndio de grandes proporções na Cisjordânia.

Em todos os vilarejos e cidades, multidões furiosas entravam em confronto com os soldados israelitas. Cada posto de controlo tornou-se um sangrento campo de batalha. Era difícil encontrar um indivíduo que não tivesse enterrado amigos ou parentes recentemente.

Enquanto isso, os líderes de todas as fações palestinas, homens de alto nível e prestígio, reuniam-se diariamente com Yasser Arafat para coordenar as suas estratégias. O meu pai representava o Hamas, que se tornara novamente a maior e mais importante organização islâmica. Ele, Marwan Barghouti e Arafat também se reuniam semanalmente, sem a presença dos outros. Em diversas ocasiões, pude acompanhá-lo.

Eu desprezava Arafat e o que ele estava a fazer ao povo que eu tanto amava. No entanto, por causa do meu papel de informador do Shin Bet, não era prudente mostrar os meus sentimentos. Mesmo assim, numa ocasião, depois de Arafat me ter beijado, limpei o rosto instintivamente. Ele percebeu-o e não tive dúvidas de que se sentiu humilhado. O meu pai ficou constrangido. Foi a última vez que o acompanhei.

Os líderes da intifada chegavam sempre àquelas reuniões diárias nos seus carros de 70 mil dólares, acompanhados por outros carros repletos de guarda-costas. O meu pai, porém, ia no seu Audi de 1987 azul-escuro. Sem guarda-costas, só eu é que ia a seu lado.

As reuniões eram o motor da intifada. Naquela altura, embora tivesse de ficar sentado do lado de fora da sala de reuniões, eu sabia de todos os detalhes acerca do que acontecia lá dentro, porque o meu pai anotava aquilo que debatiam. Eu tinha acesso àquelas anotações e copiava-as. Elas nunca continham informações supersecretas (como o executor, o local e a data de uma operação militar). Os líderes, pelo contrário, diziam sempre em termos gerais que revelavam padrões e direções, como concentrar um ataque ao território israelita ou visar colonos ou postos de controlo.

No entanto, as anotações das reuniões incluíam datas para manifestações. Se o meu pai dissesse que o Hamas iria fazer um protesto no dia seguinte, à uma da tarde, no centro de Ramallah, eram rapidamente enviados mensageiros a mesquitas, campos de refugiados e escolas para informar todos os membros do Hamas que lá estivessem nesse horário. Os soldados israelitas também compareciam. Muçulmanos, refugiados e, muitas vezes, crianças acabavam por morrer.

O que é facto é que o Hamas estava quase morto antes da Segunda Intifada. O meu pai devia ter ignorado aquilo. Dia após dia, as pessoas nas nações árabes viam a sua cara e ouviam a sua voz na rede de televisão Al-Jazeera. Ele conquistara visibilidade como líder da intifada, o que o tornou incrivelmente popular e importante em todo o mundo muçulmano, mas também o transformou no grande vilão aos olhos de Israel.

Entretanto, feitas as contas, Hassan Yousef não se envaideceu. Só estava humildemente contente por ter realizado a vontade de Alá.

‘Havia sangue por todo o lado’

Certa manhã, ao ler as anotações do meu pai, vi que tinha sido programada uma manifestação. No dia seguinte, caminhei atrás dele, à frente de uma turba ensurdecedora, até a um posto de controlo israelita. Duzentos metros antes de lá chegarmos, os líderes retiraram-se e instalaram-se em segurança no topo de uma colina. Todos os outros – os jovens e as crianças saídas das escolas – assumiram a dianteira e começaram a atirar pedras aos soldados fortemente armados, que responderam com disparos sobre a multidão.

Em situações desse tipo, até balas de borracha podem ser fatais. As crianças eram as mais vulneráveis. Aquele tipo de munição podia ser fatal se fosse disparado a uma distância menor do que os 40 metros determinados pelas regras das Forças de Defesa de Israel.

Do topo da colina, vimos mortos e feridos por todo o lado. Os soldados até abriam fogo contra as ambulâncias, atirando nos motoristas e matando os socorristas que tentavam chegar aos feridos. A violência foi brutal.

Num ápice, estavam todos a disparar. Choviam pedras sobre o posto de controlo. Milhares de pessoas investiam com ímpeto contra as barreiras e tentavam passar à força pelos soldados, lutando obcecadas, com um só pensamento: alcançar o assentamento de Beit El e destruir tudo e todos pelo caminho. Estavam tomadas pela raiva despertada pela visão dos seus entes queridos mortos e pelo cheiro a sangue.

Quando parecia que as coisas não podiam ficar mais caóticas, o motor a diesel de 1200 cavalos de um tanque Merkava ressoou no meio da confusão. De repente, um disparo do seu canhão rasgou o ar como o estrondo de um avião supersónico.

O tanque estava a reagir às forças da ANP, que tinham começado a atirar nos soldados israelitas. À medida que ele ia avançando, os guarda-costas retiravam rapidamente os seus protegidos para um local seguro. Eu ia tentando levar o meu pai até ao carro, mas pedaços de corpos espalhavam-se pela colina aos nossos pés. Quando finalmente conseguimos chegar ao veículo, saímos a toda a velocidade em direção a Ramallah, rumo ao hospital, que estava repleto de pessoas feridas, moribundas e mortas. Não havia leitos suficientes. Na tentativa de evitar que as pessoas sangrassem até à morte antes de conseguirem entrar no hospital, o Crescente Vermelho instalou-se do lado de fora. Porém, simplesmente não era suficiente.

Havia sangue por todo lado nas paredes e no chão do hospital. Escorregava-se ao se caminhar pelos corredores. Maridos e pais, esposas, mães e crianças soluçavam de tristeza e gritavam de raiva.

Surpreendentemente, no meio de tanta dor e fúria, as pessoas pareciam muito gratas aos líderes palestinianos, como o meu pai, que tinham ido até lá ampará-las naquele momento. No entanto, aqueles eram os mesmos líderes que as tinham guiado como gado para o Matadouro e, depois, se retiraram para um local seguro, para observar a carnificina a uma distância confortável. Aquilo enojava-me mais do que todo o sangue derramado.