Autor de poesia e de ficção, editor da Quetzal e diretor da revista Ler, Francisco José Viegas é também reconhecidamente aquilo a que chamaríamos um bom garfo. Ele que nasceu na terra do mais célebre vinho português, o Barca Velha, assinou um livro sobre cervejas (99 cervejas + 1, ed. A Esfera dos Livros) e um outro sobre receitas familiares – A Dieta Ideal (ed. Quetzal). Recentemente, publicou na Quetzal A Mercearia do Mundo (dir. de Pierre Singaravelou e Sylvain Venaire), um livro que nos dá uma nova visão sobre a origem e circulação dos alimentos. A propósito de petiscos e de petiscar, F. J. Viegas fala ao i sobre esta partilha de “pequenos pratinhos”, uma tradição que nalguns lugares é elevada a uma arte.
Alguns dos nossos petiscos tradicionais aproveitam partes menos nobres das carnes (pipis, moelas, orelha…). Na origem o petisco é uma tradição ‘pobre’?
Bom, eu acho que comer é uma tradição pobre… Os ricos não comem – debicam, provam, julgam, avaliam. Petiscar é uma tradição de quem não tem vergonha de comer e de partilhar.
Aqui os nossos vizinhos espanhóis também são muito dados a tapas e pinchos. Serão o petisco e o petiscar uma herança árabe? Li algures que foram os árabes que trouxeram o escabeche, por exemplo.
Sim, o escabeche tem origem árabe ou árabe-andaluza, mas a arte de petiscar anda muito à volta da arte mediterrânica de partilhar pequenas porções, pequenos pratinhos, substituindo a refeição tradicional ou intermediando-a. Por um lado, é uma bucha, por outro é uma refeição mais ligeira e agradável, feita de comida fácil – fácil de comer, fácil de digerir e, na maior parte das vezes, fácil de preparar ou que se pode guardar de um dia para o outro. As saladinhas estão por todo o Mediterrâneo: de polvo, de peixe, queijo, legumes frescos ou assados, de batata. Bom, há algumas que dão trabalho, como as azeitonas recheadas de Puglia, mas na generalidade são coisas mais ou menos simples, dos ovos rotos aos croquetes, do pepino em picle às sardinhas e carapaus de escabeche. Coisas pequenas, delicadas, boas para saborear com bom tempo.
Nota uma divisão Norte/ Sul no país, sendo o Sul mais dado a petiscos e o Norte mais dado a pratos substanciais? A verdade é que o petisco é mais apetecível com bom tempo, concorda?
Sim, há no Sul uma disponibilidade maior, mas também um clima que não exige tantas refeições completas… Há um lugar em Moncorvo, por exemplo, onde eu encontrava quase sempre o Rogério Rodrigues, o jornalista, à hora de jantar. É a Taberna do Carró. Muitas vezes juntava-me a ele: pãozinho, queijo terrincho curado, azeitonas, às vezes uns ovos com acelgas, vinho. Despachávamos o jantar sem jantar.
Sabe se, além de Espanha, há outros países onde exista esta tradição das pequenas doses, em que toda a gente à mesa tira um bocadinho, por oposição ao prato individual? Na Ásia, que conhece bem, julgo que também é hábito a partilha à mesa, mas com um caráter um pouco diferente.
Bom, na China servimo-nos de todos os pratos que vêm para a mesa, o que é muito bom para os gulosos, porque podemos provar umas rodelinhas de lulas em malagueta, os legumes salteados, umas tirinhas de massa, peixinhos fritos, algas, carnes assadas, tudo… E aproveitar os molhos, claro. Jantar com amigos, na China, é sempre uma maneira de provar quase tudo.
Qual é para si o petisco ideal para acompanhar com uma cerveja? E onde?
Queijos salgados ou mariscos… Mas a lista seria imensa, quase interminável. Tal como os lugares. O melhor tomate coração-de-boi na Taberna do Carró, de Moncorvo. Rissóis, cervejas e tostas no Martins, em Guimarães. O que houver na Casa Guedes e no Gazela, do Porto. E gosto muito daquela tasquinha de Alcácer do Sal, A Papinha, à beirinha do Sado, para comer choco, conquilhas, queijinhos secos, ovas, navalheiras, essa mistura toda.