«Fumar provoca a obstrução das artérias». «Fumar provoca lesões nos seus dentes e gengivas». «Fumar agrava o risco de cegueira». «Fumar danifica os seus pulmões». São 39 maços Camel alinhados numa vitrina, com a sua bateria de mensagens de propaganda antitabágica. Mas em vez das habituais imagens sinistras de radiografias e de pessoas doentes, estes maços exibem esquissos rápidos feitos com caneta fina. Tema: a música. Aqui umas mãos a tocar piano, ali uma boca a soprar num trombone, ao lado um rosto tenso encostado ao braço de um violoncelo. O autor destes desenhos é o arquiteto Álvaro Siza Vieira, de 90 anos, um fumador inveterado.
«O nome de Siza é decisivo na arquitetura contemporânea, é conhecido a nível planetário, tem uma magnitude que em Portugal por vezes se esquece», assinala António M. Feijó, presidente da Gulbenkian, na apresentação da exposição Siza, patente até 26 de agosto na fundação lisboeta. «Em Lisboa, tanto quanto sei, nunca houve uma exposição com esta dimensão». Mais:há 30 anos que não se organizava na capital uma exposição dedicada ao trabalho do arquiteto portuense.
«A primeira dificuldade é que o arquiteto Siza é um dos grandes da história e tem uma capacidade de trabalho extraordinária», comenta o curador galego Carlos Quintáns. «Como se pode fazer algo que não estivesse já feito e como obter uma visão total?», questiona. «Se considerarmos cada desenho técnico ou cada folha de caderno um documento, existe mais de meio milhão de documentos. Nós calculamos que trabalhámos mais ou menos com 250 mil».
O percurso abre com uma seleção de 90 fotografias – uma por cada ano de vida do arquiteto – da autoria do espanhol Juan Rodríguez.
«Há uma parte – como dizer? – de aroma e uma parte de documentação», comenta o curador. «Quisemos começar com o aroma. O Siza gostaria do aroma do tabaco e do café, mas isso não é politicamente correto».
Ver fotografias de edifícios não é exatamente o mesmo que entrar e percorrer – ou mesmo olhar para – um edifício. Mas tem outras vantagens. Como o próprio Siza afirmou recentemente em Serralves: «Os fotógrafos têm uma relação profunda com a arquitetura, são os mestres da capacidade de ver – não olhar, ver». E as imagens chamam a atenção para aquilo de que muitas vezes não nos apercebemos ao olhar para um edifício.
Já no espaço da galeria principal, Quintáns sublinha que Siza – que associamos de imediato a Serralves – também está ligado à Gulbenkian, que lhe pagou a primeira viagem para fora da Península Ibérica, tinha ele 40 anos. «Siza gosta de dizer que conheceu Picasso e conheceu Alvar Aalto através da Gulbenkian e portanto está muito contente de que estejamos a fazer isto aqui». Agora há mais um laço que se estabelece.
A energia dos cadernos
Além das fotografias e dos desenhos mais ou menos técnicos, o visitante encontra alguns cadernos:uns originais, abertos numa vitrine, outros em fac-símile, para se manusear. «Estão aqui 12, serão entre 350 e 400, ninguém sabe quantos. Estes cadernos contêm a energia do Siza», refere Quintáns. Segue-se um esclarecimento sobre como o galego – que também é arquiteto e editor – procurou abarcar a vastíssima e multifacetada produção do arquiteto ( aparência contida, meditativa, por vezes elementar, das suas obras pode dar uma ideia enganadora). «Tínhamos que explicar o Siza e a única forma de explicar o Siza é explicar o Siza global», continua. «Siza tem 90 anos. O que fizemos foi analisar a obra através de 30 verbos. Selecionámos três obras por cada verbo, portanto temos 90 obras. A exposição está feita fundamentalmente através da análise destas 90 obras». Reproduções dos projetos e imagens surgem como se estivessem espalhadas sobre a mesa de um ateliê. E em cada um dos conceitos surge pelo menos um projeto que não foi concretizado.
«Há muita gente que pensa que tudo o que é do Siza está construído, ele diz sempre que não», comenta o curador. «E, ainda que se possa pensar que o Siza tem todo o reconhecimento do mundo, há muitas obras que não estão conservadas como ele quer». Depois graceja:«Cada verbo tem quase cinco metros de mesa. Para quando chegarem a casa poderem dizer que fizeram exercício, têm 147 metros de mesas para percorrer». O último verbo é ‘voar’: «Nos seus desenhos às vezes ele representa-se a voar na companhia dos pássaros».
Desenhar absolutamente tudo
No final da galeria deparamo-nos com um cenário diferente. Já não são apenas os desenhos e os cadernos, mas peças de mobiliário que compõem uma envolvência totalmente diferente. «Desde os primeiros projetos, fundamentalmente desde a [Casa de Chá da] Boa Nova, para Siza é muito importante, além da construção dos edifícios, que ele desenhe absolutamente tudo. Aí temos originais nas folhas soltas de muitos desenhos, e os desenhos técnicos. E no centro temos distintos móveis. Há uma parte deles que são de coleções particulares e não se podem usar, mas outros que se podem usar para que vos sentais e comproveis a bondade dos móveis do Siza».
Em boa companhia
A exposição da Gulbenkian baseia-se no conceito ‘o homem e a obra’, que não sendo novo tem provas dadas. Depois da arquitetura, o arquiteto. Saindo da galeria principal e descendo as escadas em direção à Biblioteca de Arte, partimos à descoberta de uma segunda parte da exposição dedicada ao lado mais íntimo do portuense.
Esse conhecimento faz-se sempre através do papel. Ou melhor, através do que Siza põe no papel. «Siza desenha com muita precisão. E há momentos em que achamos que estamos com um divã a contar-vos as coisas através dos cadernos. Estamos a fazer de psicólogos do Siza», diz o curador.
Há uma amostra da pintura feita por Siza antes de ir para a escola de arquitetura, seguindo-se um auto-retrato. «Queríamos começar com um auto-retrato do Siza. Este é o maior que temos: 4 por 4 centímetros! Há outros auto-retratos, mas este parece-nos o melhor», diz Quintáns.
Aqui chegado, o visitante depara-se com uma surpresa. Poderíamos dizer um bónus. «Para Siza, Picasso é muito importante», continua o curador. «Não apenas para os desenhos, mas também para a arquitetura. Podemos ter um Siza que tem que ver com o surrealismo, um Siza que tem que ver com o expressionismo, um Siza que tem que ver com muitíssimas coisas, mas uma das realmente importantes é a ligação absoluta com o cubismo. A arquitetura de Siza deve entender-se através do cubismo, na forma como ensambla peças e estabelece relações novas», adianta. «Fizemos uma homenagem que foi trazermos um Picasso. E ainda por cima um Picasso com uma mão e uma mulher, que estão continuamente nos cadernos de Siza. Temos um Picasso. Ali temos um Matisse. Estamos em boa companhia. E temos estes desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso».
Além dos mestres, surgem os familiares e os amigos, numa galeria de retratos feitos por Siza. «Há outro Siza, familiar, que gosta de estar com a sua irmã, Teresa». Esse é-nos revelado pelos desenhos, os seus e os dos outros – há um feito pela filha e outro pela neta. E pinturas da sua mulher, a artista Maria Antónia Siza, falecida aos 32 anos de embolia pulmonar. Definitivamente Siza não está sozinho.
«Siza desenha em todo o lado, enquanto come, nas toalhas de mesa, enquanto descansa. Temos uma peça que não está aqui, vai estar no catálogo, uma folha de papel que está totalmente queimada pelo tabaco e cheia de café. Não é o melhor desenho, mas para mim é uma expressão absoluta do trabalho do Siza. Temos envelopes… E, com tantas viagens, onde desenha também? Nos sacos para o enjoo».
Em referência à aspiração da juventude, exibe-se também uma escultura de madeira. Antes de querer ser arquiteto, Siza quis ser escultor.
E, por fim, o balé, outra das paixões do Pritzker portuense. «Humildemente quisemos fazer um balé – está um pouco estático… São 60 desenhos», apresenta Quintáns. «E não podemos ter balé sem música. Precisamos da orquestra. Ei-la», apontando para os 39 maços de tabaco Camel com representações de músicos. «Enquanto está a ver televisão vai desenhando». E remata o curador:«Este é um atlas do Siza em que aparece tudo. Tudo menos uma coisa: o futebol. E os cheiros ».
A exposição é acompanhada por um programa de visitas guiadas, uma mesa-redonda e exibição de filmes escolhidos pelo arquiteto.