Germano. As caracoletas da D. Graça como hino ao Benfica

Em dia de jogo do Benfica, o Germano esgotava nos anos 80. Hoje, D. Graça é conhecida como a rainha das caracoletas assadas, embora sirva muitos mais petiscos. A história de quem começou por viver na cave e agora com a filha dá seguimento ao legado do marido.

Se há petisco que retrata um certo Portugal, de Santarém ao Algarve, os caracóis estão na linha da frente, eles que andam tão devagar. Já houve tempos em que existiam em abundância em território nacional, mas a partir de meados da década de oitenta, com o aumento do consumo, que se foi alargando, ainda que timidamente ao resto do país, e com o aproveitamento dos solos para a agricultura, dando cabo dos ‘bichos’, foi preciso recorrer a Marrocos, de onde importamos larguíssimas toneladas. Na Rua do Vale Formoso de Cima, em Marvila, antiga Chelas, ficam duas das principais catedrais dos gastrópodes. O Filho do Menino Júlio dos Caracóis, provavelmente, o restaurante/cervejaria que mais vende em Portugal – se excetuarmos as casas dos caracóis de venda para fora do maior importador, Francisco Conde – é um nome incontornável na matéria, onde o Sporting é a imagem da casa (ver págs. 6-8). Mas no princípio da rua fica o Germano, um conhecido benfiquista que perdeu a vida, no dia que fazia 45 anos, no estádio do Leiria, em 2004, quando foi ver um jogo do seu glorioso. “Pensei que o mundo tinha acabado”, conta a mulher, a incontornável D. Graça, que ficou à frente do negócio, e juntamente com a filha Liliana – e também com a ajuda da filha Joana – tornou o Germano no rei das caracoletas assadas e chegou-se ao pelotão da frente no que diz respeito aos caracóis. Tudo começou em 1981, quando Germano decidiu abrir o espaço, vendendo essencialmente sandes, vinho a copo e mínis. No ano seguinte, depois de casar com D. Graça, que saiu da terra, Pinhel, Lameiras, Guarda, o casal passou a viver na parte debaixo da casa. “Quando casei vim viver cá para baixo, onde estivemos quatro ou cinco anos, até ficar grávida da minha filha Liliana. Depois comprámos o quarto andar aqui do prédio ao lado, e ela já nasceu em casa”, conta D. Graça. Na altura, foram muitas as vezes que teve de ir pôr ordem na casa, pois o marido e os amigos faziam muito barulho e não conseguia dormir. “Ainda me lembro de ter uma caixa de madeira para limpar os caracóis portugueses que comprávamos. Trazíamos sacos de 20 ou 30 quilos e metíamo-los lá para dentro para eles se limparem”.

De tentativa em tentativa Com vontade de crescer, começaram a aumentar o cardápio, apostando em marisco, até chegarem às caracoletas assadas e aos caracóis. “Começámos com umas panelas pequeninas e depois é que fomos crescendo. As primeiras receitas não correram muito bem… Fizemos várias experiências”, acrescenta a matriarca. Liliana entra na conversa. “Lembro-me do meu pai contar que experimentavam assim, experimentavam assado, até que chegaram à receita atual. O segredo é a qualidade, a mão da mãe, que sabe qual a quantidade precisa de sal, de pimenta, de cebola, dos alhos, dos orégãos, malagueta e um pouco de Knorre. Além da qualidade, é a lavagem manual, o caracol para ser bem confecionado e para ser bom tem de ser lavado manualmente. Até ao ano passado foi a minha mãe que os lavou todos, desde aí é o Quim”, explica Liliana.

Se com os caracóis foram fazendo várias experiências, com o molho das caracoletas assadas a história foi igual. “Experimentei, com o meu marido, de uma maneira, experimentei de outra, até que acertámos. Nós sabíamos que levava manteiga e limão, e depois comecei a pôr picante… As pessoas começaram a gostar”, diz D. Graça, reforçando outro dos segredos: “A minha caracoleta não é de viveiro, é apanhada no pasto, vem de Marrocos. As caracoletas de viveiro são criadas com farinha, são aquelas muito grandes. Aquilo só sabe a farinha. Temos muitas pessoas que não gostavam de caracoletas, mas provaram as nossas e agora é uma perdição. Ficaram fãs. “O meu genro é a mesma coisa”. “Sim , o meu marido chegou cá e não comia caracoletas, caracóis, poucos. Agora é um grande fã. Como ele há muitos que dizem: ‘Ah, não quero’. Provam uma, provam duas, três e depois não querem outra coisa”, acrescenta Liliana.

A casa dos benfiquistas Sendo uma rua tão conotada com os gastrópodes, o Germano faz orgulho do seu benfiquismo, como contraponto ao Menino Júlio, uma Meca para os sportinguistas. O Germano era uma espécie de casa do Benfica da zona e os jogos dos encarnados eram vividos com muita intensidade: “Lembro-me de uma vez o Benfica estar a perder, na final de uma competição europeia, e do meu marido agarrar numa travessa de berbigão e atirá-la à televisão. Foi o berbigão pela escada abaixo, e a televisão avariou-se. Outra história engraçada passou-se com o Manel mecânico agarrado a um barril, que estava aqui junto ao balcão, que foi pelas escadas abaixo, foram os dois”, diz enquanto se ri a recordar o episódio.

Já se percebeu que a paixão pelo Benfica é forte: “Outra história foi quando o Benfica foi campeão e nós pensávamos que o Manel mecânico estava a dormir, mas ele com a bebedeira desmaiou. Estava em coma alcoólico. Essa noite foi épica. Saímos todos daqui, fomos para S. José, ele foi na ambulância, e como estava tudo bem, fomos para o estádio da Luz, onde estivemos até às seis da manhã. Uma hora depois estávamos a abrir o restaurante para servir os pequenos-almoços. Antigamente abríamos às sete, mas agora já só abrimos às 10h”, lembra Liliana. Quando Germano morreu os benfiquistas não deixaram de lhe prestar uma enorme homenagem. “Eram sempre grandes enchentes em dia de jogo. No ano em que o meu pai faleceu, pararam aqui os camiões todos, ninguém entrava nesta rua, em sua homenagem”, recorda a filha.

Bitoques, choco frito e moelas Se o Germano vende muitas toneladas de caracóis durante a época deles, a verdade é que também começou a ser conhecido pelos seus bitoques, depois de Ljubomir Stanisic o ter eleito como um dos melhores de Lisboa. “Sim, ele foi um dos grandes divulgadores, mas também gosta muito do choco frito, das moelas grelhadas e do bitoque. A Mariza também é fã das moelas”, afirma Liliana. O problema, às vezes, é que muita gente desiste por ter de esperar muito tempo por mesa. Muita gente conhecida diz-me isso”.

E têm clientes que não são de Lisboa? “Muitos, alguns são emigrantes no Luxemburgo, França, etc., e não dispensam uma visita. Há quem leve caracóis daqui, no nosso baldinho, no avião para comerem lá ou para levarem para alguém. Congelam e levam no avião. Nós temos uma cliente que vem sempre buscar caracóis no final da época, para congelar para depois comer no inverno. Nós temos clientes que vêm cá e que nos dizem que vêm da Lourinhã, de Cascais, de vários sítios. Temos uma cliente que já marcou para dia 24, pois vem da Suíça e quer ter mesa para 13 pessoas quando chegar”.

D. Graça já não consegue comer “caracóis, nem caracoletas”, mas Liliana não prescinde, quase todos os dias, com os filhos e o marido, “de um ou dois pratos antes de jantar quando a casa fecha”.