Petisco: o vocábulo é suficientemente parecido com petit – o francês para ‘pequeno’ – para sugerir um qualquer grau de parentesco. Todavia, e apesar de também se servirem em porções diminutas, os nossos petiscos nada têm que ver com as modernices da nouvelle cuisine francesa. Pelo contrário, podemos dizer que são “cousa” muito antiga.
No império romano já havia bancas que vendiam comida pronta a levar – o antepassado da nossa street food. Em 2020, foi descoberto em Pompeia, perto de Nápoles, um desses estabelecimentos que ofereciam refeições simples e baratas. Curiosamente, na cidade sepultada pelas cinzas do Vesúvio eram os pobres que comiam fora, enquanto os ricos se refastelavam com banquetes opíparos servidos em suas casas e que podiam incluir iguarias como ostras, enguias, ouriços-do-mar, lebre, javali, vulva ou tetas de porca recheadas. Os convivas comiam reclinados e regavam as refeições com doses generosas de Falerno ou vinho de rosas afrodisíaco.
No outro lado do espectro social, a banca de rua descoberta em Pompeia – um tipo de estabelecimento a que se chamava thermopolium – revelou um pouco do que seria a alimentação popular por aquelas bandas. Nos recipientes de terracota foram encontrados vestígios de carne de porco, de peixe, de carne de vaca e caracóis. Aliás, Apício (25 a.C.-37 d.C), autor do primeiro livro de receitas que chegou até nós, apresenta quatro maneiras de preparar estes moluscos: fritos em azeite, assados com sal fino e azeite, assados com liquamen (molho de peixe) e cozidos. “O uso de caracóis na alimentação romana constitui um vestígio exemplar da antiga prática de recolecção”, comenta Inês de Ornellas e Castro na edição portuguesa do Livro de Apício (Colares Editora). “Os caracóis já eram consumidos pelos Gregos no século V a. C., mas em Roma é Varrão o primeiro autor a testemunhar a sua utilização e processos de engorda”.
Há que acrescentar ao menu do thermopolium pompeiano o inevitável garum, uma pasta malcheirosa à base de peixe, sal e especiarias muito apreciada pelos romanos.
A origem do escabeche Serão os petiscos uma herança romana? É difícil dizer. Também parece ter ficado qualquer coisa da ocupação árabe. O escabeche, por exemplo. “A palavra escabeche que aqui nos surge é de origem persa”, escreve José Pedro de Lima-Reis em Algumas notas para a história da alimentação em Portugal (ed. Campo das Letras), “e aparece no Livro de Cozinha de al-Baghdadî datado de 1226, mas a palavra e o modo de confecção já estavam difundidos na península […]. O as-sikbâj, designação original de onde provém o nome português e espanhol, poderá assim ter sido divulgado no nosso país durante a dominação árabe e fazer parte da ementa da população autóctone mesmo antes da fundação da nacionalidade”. A diferença é que a receita árabe tinha carne no lugar do peixe e incluía passas, um ingrediente que desapareceram da nossa versão.
A possibilidade da influência muçulmana nos petiscos parece ser reforçada pelo seu protagonismo na cozinha da Andaluzia – e de toda a Espanha, para dizer a verdade – onde a presença árabe deixou uma marca mais funda. As tapas, uma fatia de pão que se metia a tapar a boca de um copo de cerveja ou de vinho, são disso o melhor exemplo. Claro que o pão não se comia sozinho, mas sempre encimado por um pouco de queijo, uma rodela de embutido, tomate com orégãos e um fio de azeite ou com um qualquer resto de comida de tacho.
Mas não é de modo algum apenas o Sul que contribui para a tradição do petisco. Do Norte, mais especificamente da Galiza, chegou-nos um dos tesouros da gastronomia tradicional, a meia desfeita de bacalhau. “O nome original será desfeita de bacalhau com grão, a que acresce o ‘meia’, por se referir à meia dose”, explica Guida Cândido (A Vida Secreta da Cozinha Portuguesa, ed. D. Quixote). “De acordo com alguns investigadores, trata-se de um prato de influência galega, designadamente da comunidade de galegos residentes na capital”. “No imaginário dos portugueses”, diz ainda a especialista em história da alimentação, “a Meia Desfeita encontra-se associada aos pratos de taberna, aos petiscos servidos nas casas de pasto lisboetas desde finais do século XIX”.
onde “se dá de comer à plebe” E, por falar em tabernas, não podemos perder de vista a feliz associação entre os petiscos e estes estabelecimentos despretensiosos. Em 1552 haveria cerca de 300 destas casas em Lisboa. “No início do século XVIII, o Vocabulario portuguez e latino de Bluteau informa que as tabernas eram casas «onde se vende por miúdo vinho, azeite e alguma coisa de comer», sendo também habitual a venda de carvão e velas”, diz-nos a investigadora Maria Alexandre Lousada na História Global da Alimentação Portuguesa (dir. José Eduardo Franco, coord. Isabel Drumond Braga, ed. Temas e Debates). “Eram o local, por excelência, de consumo de vinho a retalho, o que as distinguia imediatamente dos cafés onde o vinho era proibido e se bebia café, limonada, licores. E caracterizava-se pela confeção de petiscos e refeições baratas, o que as diferenciava das casas de pasto onde se serviam pratos mais elaborados. Na taberna vendia-se «alguma coisa de comer», «se dá de comer à plebe». Era, ainda, possível comer aí alimentos comprados na rua, regra geral às mulheres que se encontravam às portas das tabernas «frigindo e assando sardinhas e outros peixes» que, com o copo de vinho comprado na taberna, compunham a refeição dos populares”.
Com a chegada da primavera e do bom tempo, o apetite pede comidas mais leves e mais frescas. Recordemos as palavras de Garcia de Orta na primeira metade de Quinhentos: “Todas as coisas enfastiam por saborosas que sejam, quando se come muito delas; […] e por esta causa lhe bem que sempre nas mesas haja cousas que incitem o apetito, assim como alcaparras e azeitonas”.
E quanto a teoria dos petiscos estamos conversados – porque melhor do que falar sobre eles é saboreá-los.