A música da guerra n’Os Lusíadas

A associação entre música e guerra poderá causar estranheza. O que são os estrondos dos canhões se não ruído? Mas é talvez nas descrições de batalhas que a música das palavras de Camões atinge as maiores alturas.

A primeira coisa de que me dou conta, logo na estrofe inicial d’Os Lusíadas, é que a expressão «da ocidental praia lusitana» talvez não seja forçosamente uma sinédoque (a famosa figura de estilo que consiste em «tomar a parte pelo todo», como aprendemos na escola). Não poderá tratar-se simplesmente de uma referência à praia do Restelo, de onde partiram as naus de Vasco da Gama?

Detenho-me em seguida na quinta estância: «Dai-me uma fúria grande e sonorosa/ e não de agreste avena ou de frauta ruda/ mas de tuba canora e belicosa…». «Uma fúria grande e sonorosa» – parece-me ouvir o som tumultuoso de uma poderosa queda de água a rugir. São os primeiros de muitos versos que hei-de registar nas minhas pequenas folhas de apontamentos.

À medida que vou avançando na leitura, começo a desconfiar que é talvez nas descrições da guerra que a música das palavras atinge as maiores alturas na Epopeia. A associação entre música e guerra não será evidente para todos. Sons como o estrondo dos canhões, o entrechocar das espadas e os gritos dos feridos agonizantes não podem ser considerados propriamente harmoniosos. Mas na realidade a música e a guerra sempre andaram de mãos dadas – basta pensar nas fanfarras para animar os soldados, nas trombetas que anunciam os combates ou nos tambores que marcam o ritmo da marcha. E n’Os Lusíadas este par forma uma dupla perfeita – música e guerra complementam-se, alimentam-se e confundem-se.

Lendo Os Lusíadas acorreram-me com frequência à mente títulos como O Som e a Fúria (W. Faulkner) ou O Canto e as Armas (M. Alegre). Creio que esta descrição da batalha de Aljubarrota (canto IV) permite perceber o motivo:

«Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas, e vários tiros voam;

Debaixo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam.

Espedaçam-se as lanças, e as frequentes

Quedas co’as duras armas tudo atroam».

Tiros e setas que cortam o ar, como um naipe de sopros; cavalos a galope que fazem tremer a terra, como tambores; duras armas e armaduras que caem no chão, como metais. Temos aqui uma orquestra quase completa.

Terminamos com a descrição de um campo de batalha durante a Reconquista:

«Cabeças pelo campo vão saltando,

Braços, pernas, sem dono e sem sentido,

E doutros as entranhas palpitando,

Pálida a cor, o gesto amortecido.»

E aqui, não querendo fazer comparações anacrónicas ou forçadas, ocorrem-nos talvez Os desastres da guerra, o conjunto de gravuras de outro genial criador ibérico, Francisco de Goya y Lucientes.

Mostrando-se em tudo um representante da nobreza arruinada, Camões glorificou as façanhas dos portugueses. Via na carreira de armas a mais alta vocação, mas esse fascínio pela condição militar nunca o impediu de denunciar o seu lado mais sombrio e absurdo.