Levar a leitura a bom porto

Ler Os Lusíadas de fio a pavio é uma viagem com altos e baixos. Mas Camões reservou um alto prémio para quem consegue levar a leitura a bom porto.

Recordo uma frase, já não sei dizer de quem, que o meu amigo Afonso de Melo citou, imagine-se, a propósito de um jogo de futebol: «OsLusíadas têm dois defeitos: são demasiado longos para se saberem de cor e são demasiado curtos para serem infinitos».

Não querendo eu ser nem impertinente nem desmancha-prazeres, posso somar a esses dois mais um ou outro.

É no início do Canto VIII que me dou conta de um certo cansaço, ao aperceber-me de que ainda me falta ler não dois (10-8=2), mas três cantos inteiros (VIII, IX, X).

O Canto VII termina com chave de ouro, com o lamento de Camões. Vale a pena transcrever a estância 81 completa:

«Agora, com pobreza aborrecida,

Por hospícios alheios degradado;

Agora da esperança já adquirida,

De novo, mais que nunca, derribado;

Agora às costas escapando a vida,

Que dum fio pendia tão delgado

Que não menos milagre foi salvar-se

Que para o Rei Judaico acrescentar-se.»

O poeta tinha a vida por um fio, e salvar-se foi um milagre tão grande – pelo menos é assim que eu o interpreto – como «o Rei Judaico [Jesus] acrescentar-se», ou seja, ‘ressuscitar’.

Depois de tudo isto – pobre, degradado, sem esperança – em vez de receber a recompensa merecida, «trabalhos nunca usados me inventaram».

É um momento altamente pungente. Mas o Canto VIII começa sem o mesmo rasgo, com uma galeria dos heróis de Portugal que se pauta por uma certa monotonia – e nalguns passos repete a narração da história de Portugal ao Rei de Melinde.

Essa é justamente uma pecha para quem lê Os Lusíadas de uma ponta à outra, a falta de mudanças de ritmo, e muitas vezes, de imprevisibilidade, torna a leitura por vezes um tanto pesada. Graças ao famoso decassílabo (ainda que nem sempre perfeito), seja Vénus, seja o Gama, seja o Adamastor, seja o Velho do Restelo, seja o Catual de Calecute, seja o próprio narrador, todos falam mais ou menos da mesma maneira. Não há grandes variações nas vozes dos protagonistas d’Os Lusíadas.

Evidentemente esses defeitos são largamente compensados pelos méritos do poema. No Canto IX, por exemplo, deparamo-nos com a Ilha dos Amores. As ninfas correm como gamos pelo arvoredo: «Senhores, caça estranha é esta!», graceja o Veloso (o mesmo que ficou celebrizado por fugir a sete pés do inimigo).

Os navegadores perseguem as ninfas, que correm «nuas por entre o mato, aos olhos dando/ o que às mãos cobiçosas vão negando». Mas não por muito tempo. A resistência serve sobretudo para espicaçar ainda mais os perseguidores. Uma das delas, com vergonha, «esconde o corpo na água». Ao que um dos homens, mancebo, se atira à água ainda vestido e calçado para que não tarde, «a matar na água o fogo que nele arde».

Os Lusíadas têm os seus defeitos, e não são apenas dois, como dizia o admirador incondicional que citei no início. Lê-los de fio a pavio é uma viagem com altos e baixos. Embora não custe tanto como chegar à Índia, também dá trabalho! Mas à imagem da Ilha dos Amores, onde Vasco da Gama e os seus homens se deleitaram, Camões também reservou um alto prémio para quem leve a leitura a bom porto.