1. Defendi, na semana passada, no jornal i, a necessidade de substituir os discursos puramente negativos sobre o funcionamento da Justiça por uma outra abordagem que, além da indicação das faltas e dos seus responsáveis – profissionais do foro e legisladores – apontasse, sobretudo, para soluções positivas que ajudassem a ultrapassar os problemas consensualmente identificados.
Falando da atuação do Ministério Público (MP) e das causas das suas intervenções polémicas, procuremos, pois, focar-nos em alguns problemas que estão na sua génese e na identificação das diferentes responsabilidades dos que as geraram.
Dado pertencer ao corpo de magistrados que servem o MP não me cabe, nem parece curial, que me dedique a analisar os despachos processuais mais controversos e as suas razões – ou falta delas – que, de resto, não conheço, nem, nesta fase, me compete conhecer.
Posso, porém, sem sombra de pecado, como aqui já fui fazendo – sem recado de ninguém, nem dores de parto ou outras decorrentes de tiros que me tivessem visado pessoalmente – procurar de forma breve, mas sistemática, identificar os dispositivos que contribuem para um menor controle dos alegados erros e as possíveis e simples soluções para os corrigir.
O que parece mais difícil, se não absurdo, é, por um lado, elogiar os inspiradores e legisladores que estiveram na origem de alguns dos problemáticos equívocos por todos salientados e, ao mesmo tempo, denegrir a sua obra.
2. Já aqui, e em muitos outros escritos, se perorou, com mais ou menos acerto, angústias e rancores sobre a função da hierarquia do MP e a sua compatibilidade, ou não, com a sua autonomia estatutária: ambas características constitucionais que enquadram e desenham a estrutura desta magistratura.
Importante é que o Estatuto do MP (EMP) garanta, efetivamente, a liberdade de consciência jurídica dos magistrados de qualquer grau hierárquico na condução dos processos de que são titulares, permitindo-lhes, assim, resistir às diversas tentativas e formas – mais diretas ou mais melífluas – de influenciar o seu comportamento processual, se ele não corresponder ao que um superior hierárquico considere, infundadamente, mais ajustado.
Até por ainda não se terem criado regras que, além de obrigar – como já sucede entre nós – o superior hierárquico de um procurador titular de um processo a dar as ordens de natureza processual por escrito, o obriguem, também, a assumir essa sua intervenção no próprio processo, importaria clarificar melhor o preceito que estatuiu o direito de recusa do inferior hierárquico visado por elas.
Face à recente criação (necessária) de equipas conjuntas de procuradores para investigar num mesmo processo de inquérito uma situação criminosa complexa, conviria, também, estabelecer, com clareza, quem é o titular efetivo do processo e a que título participam os outros membros da equipa nos seus trabalhos.
Recordo que os procuradores estão sujeitos aos mesmos impedimentos e suspeições que os juízes e que, assim, uma indefinição na titularidade dos processos investigados por tais equipas pode dificultar aos outros sujeitos processuais a individualização dos atos e dos autores por eles responsáveis que possam ser alvo de tais incidentes processuais.
Mais; importa definir como se tomam decisões no seio de tais equipas e como se relacionam entre si os procuradores que as integram: agora, os problemas da hierarquia processual não existem num plano meramente vertical, existem, também, no plano horizontal da organização e estruturação das equipas e no seu modo de funcionamento.
Uma equipa de investigação não passa de uma mini-procuradoria, que deve reger-se, exatamente, pelos mesmos princípios, mesmo que com regras adequadas à sua específica e limitada função.
Quem, em tal equipa, decide o quê; quem assina uma peça processual e se responsabiliza por ela; quem, na realidade tomou a decisão de realizar as diligências ordenadas no processo e, por fim, quem decidiu dar um certo destino autos?
Há, ou não, um titular único; ou vota-se, em coletivo, a orientação processual a seguir?
3. O MP italiano, que já teve de resolver tais questões, há mais tempo, decidiu e bem – em minha opinião – criar um regulamento geral de organização e funcionamento das procuradorias que, entre outros aspetos, prevê e rege estas questões.
Em tal regulamento, precisamente por o MP ser uma magistratura hierarquizada, foi entendido, depois de muitos e dolorosos casos e aflitivos excessos, que o envio ao juiz das liberdades (entre nós o JIC) de pedidos para decretar um conjunto de medidas de coação mais graves e intrusivas na fase de inquérito, o procurador titular do inquérito devia obter, previamente, o acordo e corresponsabilização do superior hierárquico imediatamente superior.
Por essa via, se devolveu e constituiu a hierarquia do MP italiano numa responsabilidade efetiva e numa intervenção processual obrigatória.
Deste modo se evitou, também, que esta – na medida em que, formalmente, apenas exercia um controlo operacional difuso – se desresponsabilizasse, totalmente, da intervenção processual concreta, deixando toda a responsabilidade pelas decisões dos atos mais críticos e gravosos aos magistrados mais novos, menos experientes e, por isso, mais expostos, à crítica extra processual.
4. Pessoalmente, preferiria que as diferentes intervenções processuais a cargo do MP na fase do inquérito – que é uma fase judicializada, ao contrário do que sucede em outros países – fossem, tanto quanto possível, reguladas pelo Código de Processo Penal, permitindo, por essa via, e no momento certo, o seu controlo judicial e o dos distintos sujeitos processuais dos atos e decisões proferidas pelo MP.
Ainda nesta linha de pensamento, considero que os mandados de detenção nacionais – como acontece já, na prática, com os mandados de detenção europeus, considerados pela jurisprudência do TJUE como mera emanação dos primeiros – deveriam ser obrigatoriamente emitidos ou autorizados pelo juiz do inquérito.
Isto, à semelhança do que sucede com medidas menos gravosas, designadamente, no que respeita a certos mandados de busca e de interceção de comunicações.
Parece, com efeito, pouco curial, do ponto de vista do sistema de garantias constitucionais, que quem não pode o menos, possa o mais.
5. O pior que poderia suceder era o legislador avançar para reformas radicais inspiradas, apenas, em apreciações impressionistas e magoadas, por mais razões que tenham os que, de acordo com a leitura que fazem da sua situação, se consideram vítimas inocentes da conduta de alguns magistrados.
Tal como hoje está desenhada no atual estatuto a estrutura hierárquica do MP, não pode esta magistratura, enquanto instituição, ser comprometida pela atuação autoresponsabilizante de alguns dos seus magistrados.
Se, portanto, o ponto de partida para a tão reclamada reforma do MP (e da Justiça penal) não incluir, afinal, no juízo que se fizer daquelas atuações do MP os erros de rumo legislativo que as facilitaram, corremos o risco de – ao sabor das emoções – erigir um monstro, por certo mais perigoso e politicamente manipulável do que aquele que é hoje caricaturado, com traços medonhos, como tratando-se do MP que existe.
Ora, foi isso que, precisamente, a CRP quis evitar, quando consagrou a autonomia do MP.
Felizmente, que a atitude serena e consciente de alguns dos principais responsáveis pela orientação política do país – que terão, como outros, sofrido, pessoalmente, as mesmas angústias quando tocados pelas investigações dirigidas pelo MP – permitem compreender que a responsabilidade política nem sempre se mistura, ou justifica, com atitudes levianas, revanchistas e, puramente, emocionais.