No Líbano tudo pode acontecer

A diplomacia tem feito o seu caminho, americanos, franceses e alemães têm assumido a linha da frente

O Líbano e Israel são dois pequenos Estados na região do Levante, que alavancam um impacto geopolítico regional e mesmo global muito acima da sua dimensão geográfica. Ambos convivem desde a independência dos seus territórios, nos anos quarenta do século passado, com a realidade da insegurança regional, dos múltiplos conflitos e guerras, de uma forma quase permanente e avassaladora.

Hoje e de novo os cidadãos de muitos países ocidentais, dos Estados Unidos ao Canadá, da Alemanha aos Países Baixos e de outros países da região, são agora chamados a retirarem-se com urgência do Líbano, face às ameaças e evidências de uma guerra generalizada entre o Líbano e Israel, ou melhor entre o movimento do Hezbollah e Israel. Uma guerra que pode ultrapassar fronteiras e estender-se mesmo a regiões da Síria e envolver outros Estados como o Irão e ainda milícias e grupos militares do Iraque.

Foram muitos e trágicos os confrontos que os dois países já registaram entre si; com destaque para a guerra em 1982, após uma primeira invasão israelita em 1978, o conflito no sul do Líbano (1982-2000) e a guerra do verão de 2006 (12 de julho – 14 agosto). Mesmo fora destes períodos, falar de paz foi sempre um ato de ilusão. Todos reconhecemos os esforços da ONU e das suas Agências e Forças de Manutenção de Paz, sabemos bem o que significa a “Linha Azul” traçada pela ONU em 2000, e observamos com angústia o permanente incumprimento por todas as partes, da Resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 11 de agosto de 2006. Tem sido por isso uma vivência dolorosa para as populações fronteiriças, num dia a dia de guerra, de nervos e incertezas no futuro. Tem sido assim, repetidamente ao longo de décadas. Citamos de memória nomes sempre associados a este longo conflito, como os do rio Litani, de Kafra Suba, de Sheba’Farms, Nabatiyah, Sidon, Naqura, Sidon, ou ainda Kyriat Shmona, Monte Hermon, Mylia e Maalot, Tzfat e Naharya, entre outras pequenas localidades. Mais de 60.000 habitantes do norte de Israel abandonaram as suas casas e pertences, e várias dezenas de milhares da outra parte da fronteira rumaram para casas de familiares em Tiro e Sídon ou mesmo até Beirute ou no Monte Líbano. Todos deixaram a zona de fronteira e a vida para trás. Todos depois do 7 de outubro.

A instauração do novo regime do Irão em 1979 e a criação do partido Hesbollah a meio dos anos oitenta, desde logo definiram como prioridade o combate sem tréguas ao Estado de Israel. O Hezbollah liderado pelo histórico Hassan Nasrallah desde 1992, um dos líderes mais escutados desde sempre no Irão, controla partes significativas do território libanês, não só no sul do Líbano, mas no sul de Beirute, no Vale de Bekaa e nas regiões fronteiriças com a Síria e mesmo no interior desta. É na verdade um “Estado armado” dentro do Estado fragilizado, dividido e empobrecido. Possui hoje um arsenal militar incomparavelmente maior, com o que tinha na guerra de 2006. Provavelmente mais de 150.000 rockets e mísseis modernos que podem atingir em profundidade todo o território israelita, e uma extensa panóplia de drones de vigilância e de ataque. Um sistema defensivo de túneis e bunkers, semelhantes ao Hamas. O maior exército não regular do mundo, que é dirigido em termos estratégicos, políticos, financeiros e mesmo operacionais pelo Irão. Uma ameaça temível para o Estado vizinho de Israel. Combatem ao seu lado as filiais libanesas do Hamas e da Jihad Islâmica e outros grupos radicais islâmicos.

De 2006 até ao ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, as tensões e escaramuças na zona de fronteira marcaram um tempo de confrontos de baixa intensidade entre ambos os lados.  Até porque durante alguns anos, o próprio Hezbollah participou em ações na Síria e no Iraque, aproveitando para se reforçar interna e externamente e ganhar influência política na região. A sua ação política, religiosa e social é hoje preponderante e reconhecida junto de uma parte significativa da população libanesa, onde este movimento surge como o seu principal elemento protetor, de apoio social e até empregador. Seja nos campos do Sul, ou nas cidades e povoações que administra e controla. São no entanto muito diversas e disputadas as zonas de influência dos restantes partidos e religiões que este país abriga desde a sua fundação e que estão na sua génese. Um país instável, e com problemas económicos, sociais e políticos graves. Um dos seus principais dramas são os milhares de refugiados que aqui vivem. Mais de 210.000 palestinianos e cerca de 1,5 milhões de sírios fugidos da guerra. A maior densidade de refugiados per capita do mundo. A grande maioria a viver em dramáticas condições. Onde a ajuda financeira dos Estados Unidos, União Europeia e da ONU é absolutamente vital para a sua sobrevivência. Os libaneses residentes no país já serão pouco mais de 65%, o que começa a colocar problemas junto da população e na própria política interna a seguir para com os refugiados.

Com a resposta militar de Israel ao Hamas em Gaza pós 7 de outubro, o Hezbollah tem aumentado os seus ataques às zonas fronteiriças de Israel e mesmo a outras zonas mais distantes. O Exército israelita e a Força Aérea vão ripostando com raidesa cada ataque, por norma de forma proporcional, ainda que ultimamente novos ataques tenham batido áreas estratégicas do Hezbollah, como na região do vale de Bekaa e em Baalbek. Pela primeira vez na sua história, as povoações do norte de Israel tiveram de abandonar a região, por força dos ataques vindos do outro lado da fronteira. Uma vitória muito saudada pelo Hezbollah perante o seu inimigo direto. É notória uma maior propensão do Hezbollah para o alargamento destes ataques, inclusive na intensidade dos mesmos. A justificação é o apoio sem reservas aos aliados do Hamas e da causa palestiniana, numa altura em que este perdeu o controlo militar do território da Faixa de Gaza e a sua capacidade ofensiva.

A diplomacia tem feito o seu caminho, americanos, franceses e alemães têm assumido a linha da frente. O enviado especial dos Estados Unidos, Amos Hochestein, tem sido visita assídua. A guerra está mais iminente do que nunca. De ambos os lados rejeita-se que esse seja o desejo. Mas a linha de fronteira até ao rio Litani é uma enorme seara pronta a arder. A todo o momento.

Israel vai entrar na terceira fase da guerra em Gaza, como referiu o seu Ministro da Defesa Yoav Gallant. Provavelmente com muito menos meios militares. Parte do seu Exército começa a ser transferido para o norte de Israel. O Exército está agora mais treinado e preparado para aceitar um novo desafio em defesa da segurança e das fronteiras ameaçados do seu país. O regresso dos residentes do Norte que foram evacuados é uma ação política prioritária do governo de Israel. O próprio Benny Gants coloca igualmente esta prioridade estratégica na sua agenda. Uma guerra total causará certamente muitos problemas a Israel, mas poderá levar à destruição de grande parte do Líbano. Resta saber se o muito experiente líder Hassan Nasrallah, estará pronto por agora, para assumir um nível tão elevado de perdas humanas, de capacidades militares e de contribuir para a destruição geral de um país, que “não precisava” de mais uma guerra. Para já fica a esperança na diplomacia internacional.