A ética separa o certo do errado, segrega o que é justo do que é injusto do ponto de vista moral. E isso reflete-se na nossa interação com os outros, nomeadamente através da justiça, da liberdade e da responsabilidade.
Sócrates ensinou-nos que a virtude impõe a reflexão. Isto significa que cada um de nós se deve questionar sobre a importância do debate e da análise crítica para o desenvolvimento moral e ético.
Foi São Paulo quem teve a originalidade de aliar a responsabilidade à liberdade, quando defendeu que ‘tudo é permitido, mas nem tudo convém’. Essa relação entre responsabilidade e liberdade exprime-se na ética pela empatia (que nos coloca no lugar do outro) e pela compaixão (que nos impele a ajudar quem sofre).
Este conceito ético, que de alguma forma moldou a nossa civilização, parece ameaçado pela ética republicana, quando invocada com soberba e superioridade. Os princípios em que esta ética se funda, e que orientam a conduta dos cidadãos em sociedade, decorrem da noção de res publica, ou seja, da ideia de bem comum. Uma ideia que visa o bem-estar coletivo e enfatiza a igualdade, a justiça e a virtude cívica, mas ignora valores morais como a caridade.
Foi certamente ao sabor dessa ética republicana que os nossos deputados resolveram convocar a mãe das gémeas luso-brasileiras para ser ouvida presencialmente na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso, obrigando Daniela Martins a viajar até Portugal.
Qualquer mãe teria feito, ou deveria fazer, por duas filhas doentes o que essa senhora fez. E isso deveria dispensá-la de depor, em função da razão ética da compaixão. O seu depoimento teria, aliás, de resultar numa irrelevância, porque a inquirida nunca iria comprometer voluntariamente quem a ajudou.
E quando Daniela Martins contou aos deputados da CPI uma versão fantasiosa dos factos, não foi a idoneidade da deponente que ficou em causa. O Parlamento, esse sim, colocou-se em cheque ao patrocinar um espetáculo tão deprimente, esquecendo os ensinamentos de Sócrates sobre a reflexão e a análise crítica.
Independentemente de um eventual favorecimento, Daniela Martins aproveitou o facto de poder recorrer à nacionalidade portuguesa, um direito que lhe assiste, e de o Serviço Nacional de Saúde ser um ‘bar aberto’, como alguém lhe chamou, para quem não é residente e só cá aporta temporariamente para obter cuidados médicos indisponíveis ou insuportáveis nos países onde vive. A ética republicana nunca reconhecerá que o modelo é insustentável e levará a que, um dia, o ‘bar’ tenha de fechar a porta ou dedicar-se a distribuir senhas de racionamento aos contribuintes e residentes que necessitem de cuidados médicos.
Se alguém cometeu algum ilícito, compete à Justiça, e não ao Parlamento, julgar. A Inspeção-Geral da Saúde já averiguou e o Ministério Público já constituiu arguidos, pelo que não se entende para que serve a CPI.
Só que cada partido tem um alvo político favorito para ‘fritar’. No fim, tudo acabará num escabeche avinagrado com o molho da carochinha desta história, que só veio a lume porque uma jornalista de investigação fez o seu trabalho.
Todos acabarão indignados: os deputados, os visados, a mãe que deixa de estar grata a Portugal, os luso-brasileiros em geral e a opinião pública que a todos condena na praça pública, dispensando as formalidades da Justiça, como convém ao populismo.
Lamento que Marcelo Rebelo de Sousa esteja a pagar tão caro, pessoal e politicamente, por um eventual gesto de compaixão. Ao contrário dos deputados, quer o Presidente da República, quer Lacerda Sales não podem ser acusados de desumanidade.