Os “comentadeiros” políticos e do futebol, cada qual na estrita defesa do seu clube, esgotaram a minha paciência para assistir a programas televisivos. Contudo, em momentos de tédio, sou tentado a ter uma ideia geral da actualidade noticiosa. Num desses instantes, deparei-me com uma dita Comissão de Inquérito da Assembleia da República ao “Caso das gémeas” interrogando uma mãe indefesa, em termos inconcebíveis. A minha primeira reacção foi desligar o televisor, mas fui masoquista e acabei por assistir àquele espectáculo indecoroso para ver até onde chegava o despudor e a falta de humanidade e de compaixão daqueles deputados.
Qual era o crime cometido pela senhora para ser tratada daquela forma ignóbil: ter tentado remover obstáculos para poder aceder ao tratamento de duas filhas gémeas que nasceram com uma grave deficiência genética. Na mente dos indomáveis interrogadores o libelo acusador era agravado por a senhora viver no Brasil, embora fosse neta e filha de portugueses e ter dupla nacionalidade. Entretanto, as crianças também tinham adquirido a nacionalidade portuguesa, antes de terem o diagnóstico da doença.
Acrescia a tudo isto o facto de haver suspeitas de ter recorrido a “cunhas”, ao mais alto nível, para ter acesso num hospital público português a um medicamento inovador, dispendioso, mas susceptível de melhorar a situação clínica das filhas.
Pelo que foi dado perceber ninguém foi ultrapassado, porque não havia qualquer outra criança a aguardar essa terapêutica.
A “cunha” em Portugal é quase uma instituição, mas isto acontece porque os serviços públicos não respondem com a rapidez necessária para resolver muitos problemas, mesmo quando têm manifesta gravidade. E se está em jogo a saúde de pessoas, sobretudo com patologias graves, é lícito que se lance mão dos meios técnicos disponíveis para tratar os nossos doentes. E quando se trata de crianças como estas, para quem a genética foi tão cruel, só temos de louvar a luta e a persistência desta mãe para conseguir obter medicamentos inovadores capazes de melhorar a saúde das filhas.
Se os interrogatórios foram genericamente chocantes, a interpelação de um deputado ultrapassou todos os limites: perguntou à senhora como estavam as filhas! Talvez pretendesse obter a resposta de que tinham piorado, para poder inferir que não tinha valido a pena o seu esforço muito menos o volume da despesa. Como seria de esperar, da face abatida da interrogada escorreram lágrimas e não palavras!
Já agora interrogo-me: estes deputados da Nação nunca meteram “cunhas” quando a doença lhes bate à sua porta ou à de familiares e amigos? Se a resposta é negativa, terei de lhes dizer que são a excepção e não a regra, porque durante a minha longa carreira profissional, e ainda hoje, inúmeros políticos, deputados e governantes me solicitam ajuda em contextos de situações clínicas mais ou menos graves. Nunca deixei de os atender, tal como faço com qualquer cidadão anónimo que implore os meus préstimos, sem deixar de respeitar os princípios éticos e deontológicos inerentes à profissão.
A partir de agora fico a saber que, por esta minha faceta profissional, corro o risco de vir a ser incomodados por estes “vigilantes” a quem o povo, infelizmente, conferiu o seu voto. Mas não me amedronta a possibilidade de um dia ser constituído arguido por essa minha atitude solidária. Cá estarei para me defender!
A última palavra é para a jornalista que descobriu esse “furo” mediático que abriu telejornais e se arrastará durante meses na comunicação social. Tudo parece indicar que o freelancer que contratou e que teve acesso à casa da senhora o fez de forma sub-reptícia, insinuando que estava ali para ajudar duas crianças fragilizadas, quando afinal o que estava em jogo era obter uma caixa jornalística de muito mau gosto.
Médico internista e Ex-administrador do HGO