Camões é, entre nós, o mais insistente desses corpos que não definham nunca e vão dando sucessivamente à costa ao largo das eras, sempre que a maré está na disposição de devolver aqueles que mais a cativam pelos modos como desafiaram a sua voragem. No seu caso, passados séculos, tendo sido incapazes tanto a água e o sal de o desfazerem, depois de ser repelido tantas vezes e abraçado de novo, mais parece um desses troncos que vagam e, assim, ilustram os humores do tempo, adquirindo aquele desgaste que oferece margem às lendas, com a sua canção que ainda nos perturba e comove, nos causa ainda um estranho fascínio. Isto explica que em torno deste cadáver estarrecedor, que uma vez por outra é visto nas nossas praias, se juntem esses afanosos vendedores de passados, esses cronistas burlões, que se dispõem a auscultá-lo uma vez mais, sentindo-lhe o pulso, fingindo ouvi-lo murmurar mais qualquer coisa, uma última confissão. Não faltam também esses ministros luminosos que logo tomam conta destas ocorrências, esses que dizem ter o ouvido apurado para as subtilezas do oculto, a habitual canga de intérpretes que parasitam os mais rendosos e ilustres mortos, persistindo naquele ritual com que se abafa o moribundo já no limite, a extrema unção, apossando-se dos nossos fantasmas mais célebres, e também, deste modo, impedindo-os de assombrar o pardieiro das letras e causar pavor noutras esferas.
Foi Camões a inventar a expressão «máquina do mundo», no derradeiro canto d’Os Lusíadas, quando Deus se nos revela, permanecendo, contudo, um mistério. É uma esplendorosa ruína aquilo que ele dispõe diante de nós, esse mecanismo etéreo e elemental que liga todos os tempos, e isto de acordo com um ideal que sempre buscou o próprio rosto da beleza e da sabedoria nesse efeito de unidade. Porque a própria poesia era um modo de elevar o uso da língua a um grau tal que se impunha como uma forma de jurisprudência. Mas hoje e, entre nós, este espírito de demanda reverteu nas costumeiras formas de extorsão e logro. Com a celebração dos 500 anos do nascimento do príncipe dos poetas, foram exorbitantes as encomendas a nível de incenso, tudo o que é galo assaltou os telhados para proferir exaltações, mas, no fim, desse alarido pouco restou na rede, além das habituais escórias que ficam a flutuar à superfície deste naufrágio de que vamos fazendo a nossa festa.
Coube a Carlos Maria Bobone, alfarrabista e crítico literário nascido em 1992, apresentar-nos uma obra estranha ao nível geral da prosápia e desses fumos e outras estratégias ilusórias, restringindo-se quase cruamente ao pouco que realmente se sabe da vida de Camões, e virando o seu exame escrupuloso não para uma qualquer quimera, mas para essas carcaças fantasiosas acumuladas nos últimos 400 anos na morgue da nossa cultura. O seu livro, Camões – Vida e Obra (ed. D. Quixote), em que mesmo o título foi já uma cedência aos imperativos editoriais, é na verdade uma dissecação dessas lendas que se alaparam a esse prodigioso cadáver, revelando a fragilidade das conjecturas em que tantas vezes a cultura assenta, para se lançar então num exame que, em vez de avançar novas hipóteses mirabolantes, se atém ao sóbrio enredo que emerge a partir de um aturado estudo dos factos e da história, compulsando as diferentes teses e lançando-se de forma confiante numa leitura cheia dessa eloquente fineza da obra, própria de quem não precisa de a atafulhar das metediças e histriónicas notas de que se compõe a marginália para nos fazer sentir a poderosa constituição de um corpo que respira ainda demasiado perto dos que dependem desta língua, e que assim morre e vive com cada um de nós.
Uma coisa que notei é que já há um par de anos fizeste uma lista de 25 obras que consideravas centrais no que toca ao debate à volta da vida e obra de Camões.
Sim, isso foi feito por ocasião de um outro 10 de Junho, e a ideia era fazer uma lista de 25 livros sobre Portugal, outra sobre o Camões e ainda uma outra sobre a expansão. Não sei exactamente porquê, mas acabei por não fazer as outras. Mas já estava embrenhado no estudo do Camões.
Já estavas a trabalhar neste livro?
Sim, até há mais anos. Foi minha a proposta de se fazer esta edição.
E a ideia partiu de onde?
Houve dois momentos que foram decisivos. O meu pai, que é alfarrabista, como eu [Livraria Bizantina, na Rua da Misericórdia, em Lisboa], comprou uma série de documentos do Visconde de Joromenha, uma figura que, hoje, embora seja mal visto por ter acrescentado muitos poemas ao corpo da lírica camoniana, num abuso que entretanto já foi sanado, tendo-se mostrado crédulo na aceitação de provas ou documentos duvidosos, apesar disto era um homem de uma erudição extraordinária, e alguém que sabia de Camões como me parece que mais ninguém soube desde Faria e Sousa, séculos antes. O meu pai comprou uns papéis que pertenciam ao seu espólio, e estes fariam parte de um sétimo volume que reunia a obra dele na Imprensa Nacional. Tinham saído seis volumes, no século XIX, e, após a sua morte, o Teófilo Braga descobriu mais alguns textos, o que lhe permitiu fazer um sétimo volume, bastante magro. Mas os papéis que o meu pai comprou integrariam o projecto original, sendo dedicados ao Magriço e à Inês de Castro. Embora eu não tenha estudado a fundo esses papéis, começou aí o meu interesse e foi o que me levou a procurar e pesquisar mais sobre a obra do Camões. Um segundo momento importante foi a efeméride dos 450 anos da publicação d’Os Lusíadas, sendo que por esta altura eu já estava bastante embrenhado no estudo deste, e foi daí que partiu a ideia de fazer o livro.
Um dos aspectos cruciais deste livro é o facto de nos servir como uma espécie de mapa entre toda essa parafernália de textos e especulações que, ao longo dos séculos, vários autores foram produzindo sobre Camões, e, depois, além desse confronto com todas essas leituras há o reconhecimento da falta de informação fidedigna sobre a própria vida do Camões, o que em si mesmo define a atitude de sobriedade e suspeita que é própria da tua abordagem. Como é que foi para ti esse processo de descobrir o modo como deveria ser feito este livro?
O livro tinha, à partida, vários propósitos diferentes. Por um lado, era preciso reconhecer que quando alguém se adentra nos estudos camonianos depara-se com especulação sobre especulação… E aqui não estou a assumir uma postura em detrimento dessas abordagens, muitas delas sendo realmente notáveis, e obrigando-nos a reconhecer que, a partir daquilo que se sabe realmente, o que é possível fazer são este tipo de exercícios altamente especulativos. Mas essa noção levou-me a sentir a necessidade de fazer um ponto de situação, tentar tornar claro aquilo que hoje sabemos de facto sobre Camões. E percebo que esse exercício de confronto possa impressionar o leitor, mas acaba por não ser algo assim tão difícil, uma vez que o próprio estudo da vida de Camões foi sempre sendo feito assim. Aquilo que nós vemos são estudiosos a rebaterem os argumentos uns dos outros. Portanto, basta leres algum livro para estares sempre a ser relembrado dessas posições ou atitudes divergentes naquilo que ficou para trás.
Ou seja, sentes que essa é a própria característica que define a tradição da abordagem a Camões.
Sim, ou seja, apesar de tudo existia já alguma organização, alguma clareza nesse confronto de posições. Ainda que haja nesta tradição uma relação algo fragmentária, havendo estudos muito rigorosos para a genealogia e para a parte histórica, mesmo muito rigorosos, estudos do Martim de Albuquerque, do General Galvão Borges, até do Pinto Loureiro, muito importante para a família camoniana em Coimbra, o que ocorre é que isso, depois, muitas vezes não passa para quem faz estudos literários sobre o Camões. Quer dizer, o António José Saraiva não anda a estudar o Pinto Loureiro, ou seja, certas vezes ocorrem esses curto-circuitos, e a informação não passa de uns para os outros. E esse foi um dos meus propósitos, refazer o circuito, ligando a informação histórica e genealógica à informação interpretativa, e tentar que esse tal ponto de situação fosse mais alargado. Isto foi o que me pareceu ser uma necessidade do ponto de vista mais académico, sendo que o que me interessava mesmo era chegar a esse momento de leitura da obra, mas que seria reforçado por esses elementos. Ou seja, ter a informação e todo o estudo, combinando isso depois com a leituras dos textos em si, da obra. Aquilo que vai ficando claro é que o modo de ler Camões obriga a uma abordagem muito diferente do que seria ler um romance contemporâneo. É uma leitura que procura reaver um outro tempo, um outro modo de relação, uma atenção que não pode limitar-se a avançar pelas frases ou versos, mas que deve deter-se e buscar o sentido original, aquilo que foi sendo mudado ou erodido.
Sim, e essa atitude parece contrariar algumas das teses que se têm ouvido de que o importante é ler Camões seja como for. Voltar ao texto, pôr as pessoas diante da obra. Mas fica claro, desde que entramos no teu livro, que houve uma série de termos ou expressões que se afastaram do sentido que Camões lhes deu, houve uma evolução ou digressão da própria língua, e ao sermos orientados e ao vermos serem corrigidos os equívocos que surgiriam de um confronto desarmado com o texto, percebe-se como o texto está já muito distante. Ou seja, sem estudo, por mais boa vontade que tenha o leitor de se lançar directamente sobre a obra de Camões, isso já não é possível pois acabará por se confrontar com uma quimera, pelo modo como a própria cultura e o idioma, os usos e os modos, se foram adulterando, ao ponto desse contacto exigir alguma forma de mediação, quase uma tradução. E até por Camões estar de tal modo absorvido na cultura do seu tempo, nas sensibilidades ou nas disputas que então se travavam que, sem ter consciência desse contexto, nos escapam elementos decisivos, nuances e chaves para compreender essas contendas em que ele se envolveu. Ou seja, o que se perde é precisamente a noção do quanto o Camões articula e serve de eixo para a compreensão de uma época. E tudo isto é o que faz da tua proposta de leitura histórica, interpretativa, com esclarecimentos de ordem filológica, esse cerco que combina uma série de saberes e mostram que Camões não é tão acessível como se imagina.
Sim, penso que uma pessoa querer ler de forma quase virginal o texto, sobretudo se estivermos a falar d’Os Lusíadas, é entregar-se ao fracasso. E a diferença para a Lírica é que esta, apesar de fortemente articulada com usos da época, pode ser hoje mais acessível. De algum modo podemos compreender aqueles sentimentos.
Mas a mim deu-me a sensação que quando abordas esses usos cortesãos da lírica, em que os poetas se servem dos mesmos motes e os glosam, e em que nos mostras a forma como Camões contraria os usos típicos, e lhes dá outro alcance, de algum modo sendo até bastante subversivo, parece-me que sem isso eu passaria por essas composições sem conseguir apreciar as suas subtilezas. O que tu mostras é que, apesar daquilo nos poder parecer banal, quando se percebe a forma como ele torce e revira os modos habituais, revela-se a sua ousadia e originalidade, produzindo variações que são, em si mesmas, uma forma de petulância e uma expressão do seu génio.
Sim, tudo isso é inegável. Por outro lado, também é certo que uma pessoa ao deparar-se com Os Lusíadas consegue ler ali algumas descrições e encadeamentos rítmicos que ainda hoje nos atingem com uma frescura espantosa, e nesse sentido há um prazer de se voltar ao texto e de ler aquilo, mesmo superficialmente, que está lá e que é bom que qualquer um o possa sentir. De qualquer modo, todos nós temos algum amigo que, na adolescência, terá lido A República ou a Bíblia de uma ponta à outra e parece que aquilo não lhe disse nada. Há livros que nos rejeitam, que de algum modo nos dizem que não é assim que estes devem ser lidos. Apesar de o Camões poder ser lido quase com o recurso exclusivo ao texto, acho que obriga a uma leitura feita de repetição, de insistência, com um nível de atenção que não se confunde com esse exercício de quem fala de ler um livro como andar com os olhos da esquerda para a direita e ir passando as páginas. Entendo que o próprio texto nos pode orientar em relação ao seu contexto, é preciso é uma atenção que está muito para lá dos recursos habituais da maioria dos leitores. De resto, é claro que ajuda ler muita coisa à volta, frequentar os contemporâneos de Camões, ler os poetas coetâneos, e ter alguma capacidade de compreender o contexto do século XVI, ter também um bom conhecimento da língua… Uma pessoa ao embrenhar-se na poesia do Cancioneiro, na obra de poetas como Diogo Bernardes, António Ferreira, Jerónimo Corte-Real, dá-se conta que às tantas aquilo parece uma massa quase indistinguível, e só lendo com grande atenção é que começamos a dar por essas subtilezas.
Hélio Alves contesta até essa ideia da originalidade absoluta de Camões, seja no uso que faz da língua, nos requebros a que obriga a sintaxe, seja até nas suas descrições marítimas, ou noutras das temáticas centrais d’Os Lusíadas, e defende até que esta visão de uma obra que se impõe de forma triunfante esmagando ou condenando ao olvido tudo aquilo que estava à sua volta, que esta devoção camoniana funciona, como acontece amiúde entre nós, para apontar essas colunas que sustentam por si toda a nossa arquitectura linguística e cultural, deixando que o resto apenas seja enquadrado como paisagem. Dá a sensação de que o génio de Camões como nós o evocamos, quando contraposto ao desses outros poetas à sua volta, até beneficia se esses mais forem apagados. Porque o problema que se coloca é que a dificuldade de distinguir os poemas de uns e de outros é de tal ordem que persistem até hoje grandes dúvidas sobre o que é exactamente a obra do Camões, porque muitas das composições que lhe são atribuídas foram escritas por outros. E aquilo que imediatamente identificamos com Camões na verdade é algo mais lato e representa o espírito do seu tempo. Ou seja, é uma respiração e um modo de contemplação através da língua que foram cultivadas por uma série de figuras, e Camões tornou-se esse porta-estandarte que absorveu tudo à sua volta. Voltamos à imagem do eucalipto, essa árvore que, aqui por um defeito de perspectiva da nossa parte, parece secar tudo à sua volta. A este respeito, aquilo que Helder Macedo diz é que é importante discutir os poemas independentemente da sua autoria ter sido aclarada em definitivo. Como é que foi para ti dares-te conta de que hoje temos um país inteiro rendido a Camões sendo ínfima a porção dos leitores que sequer ouviu falar de Diogo Bernardes?
No meu caso, e para lá das leituras que fiz no período escolar, a minha introdução mais alargada ao século XVI até vem mais pelo Bernardim Ribeiro e pelo Diogo Bernardes, antes de ler mais a fundo o Camões, e isto por uma razão muito simples: o Delfim Guimarães, fundador da editora Guimarães, era um grande estudioso do século XVI e publicava uma revista praticamente feita em exclusivo por ele e que era dedicada à poesia deste século, e houve uma altura em que comprei vários números dessa revista e andei a ler empenhadamente aquilo.
E tinhas que idade?
Não sei… Uns 20, 22… Foi na altura em que comecei a trabalhar mais com o meu pai. E o conhecimento mais alargado da poesia que se escrevia então vem-me daí. Por isso, nunca tive essa percepção do Camões como aquela figura que engoliu a sua época, encarando o resto apenas como as sobras. Assim, se há a ideia de que é muito difícil distinguir a poesia dos autores de então, para mim o que foi ficando claro é que o século XVI foi o verdadeiro período de ouro da poesia portuguesa.
Sentes que, comparando com o século XX, para ti essa superioridade é óbvia?
Sim. Podendo haver outros períodos notáveis, é sem sombra de dúvida um grande período para a poesia portuguesa. Não é só um tempo em que surgem muitas vozes, diversas sensibilidades, mas é um momento em que a poesia estava muito viva, e tinha um peso bastante significativo nos usos sociais. E se embora em muitos casos pareça ser difícil divisar o que é de um ou de outro poeta, isso também acaba por ser um grande desafio no estudo do Camões. E isto porque, pela maneira como identificamos as guerras entre poetas, as trocas de elogios entre uns e outros, os grupos que então se formavam, e ainda que nada disto seja muito claro, por o nosso conhecimento do período ser muito fragmentário, apesar disso conseguimos fazer um mapa das correntes e tendências literárias, e vamo-nos dando conta de que algo nos estará a escapar… «Porque é que este parece tão próximo deste, mas os outros não o acolhem?… Há aqui qualquer coisa…» E esta sensação força-nos a entrar no texto como detectives, procurando alguma indicação, alguma diferença e o que poderiam ser os aspectos divisivos. E creio que este quadro lacunar e que compele a investigação também dá à poesia do século XVI e à do Camões em particular um interesse suplementar. Nesse sentido percebo, e concordo em parte com a ideia do Hélio Alves, que esta obra não surge do nada, embora me pareça que acaba depois por se confirmar essa superioridade, nem sempre na lírica… Há sonetos do António Ferreira ao nível dos que foram escritos pelo Camões, há rimas do Diogo Bernardes ao nível das do Camões, do Martim de Castro do Rio que é um poeta relativamente menor, mas que tem poemas desse nível e que estão enredados nessas confusões que fazemos. Mas depois o Camões tem uma coisa – Os Lusíadas – e aí parece-me que alcançamos um outro patamar. Pelo que aquilo exige do verso no esforço de aguentar aquela narrativa, e isso é que, por muito que queiramos colocar a lírica ao mesmo nível, como uma coisa extraordinária, que não deixa de ser, é perder de vista como esse passo mais além que foi dado pelo Camões é este imenso poema. Isso não só faz diferença em relação aos outros, mas é por aí que ele acaba por ser um esteio da cultura nacional. O que vem depois, os sonetos, esses que logo nos são reconhecíveis, «Alma minha gentil que te partiste», «Amor é fogo que arde sem se ver», etc., parece-me que se não fosse Os Lusíadas não os conheceríamos. Por isso, ainda que compreenda que alguém que estude o século XVI seja levado a sentir que há muita coisa ao mesmo nível, e se se tiver o verso como medida talvez o Camões possa ser puxado para o nível dos demais ou até estes elevados ao seu nível, também me parece depois que há uma diferença que foi sendo consagrada e que deve ser estudada justamente por isso. É um dos aspectos mais instigantes no labor da crítica literária, esse esforço de tentar compreender de que forma se foi impondo a superioridade de uma obra.
Pound quando leu Os Lusíadas disse que liricamente não era uma obra tão assinalável como isso, no entanto, se comparada às epopeias homéricas é inegável que há um investimento lírico bem maior n’Os Lusíadas, ou seja, o que é mais curioso na epopeia camoniana é essa hiper-concentração dos modos da poesia, porque se os versos mantêm a tensão narrativa, não deixam de corresponder nas suas descrições, no enlevo rítmico e prosódico, nesse efeito cantante e no trabalho imagético…
Sim, e há episódios que são líricos… Acho que isso tem a ver com a personalidade literária de Camões, ou seja, o seu modo de se relacionar com os cânones da poesia passa por essa tentativa de puxar elementos de uns para os outros, de os mesclar, e isso explica o que há de lírico como o que há de descrições de teor aventuroso, de épico não no sentido clássico mas no de canção de gesta, tudo isso é muito impressionante. Quer dizer, ele quis investir ali tudo, quis pôr tudo n’Os Lusíadas.
À medida que foste fazendo esse trabalho de análise e compreensão desse quadro de influências no qual ele se move, parece-te que a referência capital, a grande fonte ou matriz d’Os Lusíadas é a Eneida do Virgílio?
Sim, isso é bastante claro quando se compara uma e outra. Mas essa influência é assumida à maneira do Camões, porque essa imitação depois assume modulações muitíssimo subtis, quer dizer, há um lado quase de paródia, pois não é apenas uma tentativa de fazer uma nova Eneida, há um esforço de a superar. Chego a referir uma tese de C.S. Lewis no livro, isto embora ele não se tenha servido dela para analisar Os Lusíadas, mas é a ideia de que a Eneida é um paralelo que Virgílio formulou de Troia, agora do ponto de vista de Roma. Alguém que vem de fora e funda uma perspectiva de um mundo mais vasto. Alargando esta noção aos Lusíadas também é fértil, pois desloca o centro… Dizer que se trata de uma epopeia sobre Portugal não é inteiramente correcto, porque o que está em causa é lançar um olhar sobre o Oriente. Portugal aparece ali mais como o ponto de onde partem esses espectros para fundar o Oriente, e este mundo que será gigantesco – do tamanho do Índico – e irá afectar tudo aquilo que sabemos. Neste sentido a imitação quer competir com o original, quer ir além, fazer mais do que foi feito na Eneida, querendo mostrar que o mundo que está a descobrir é mais vasto. Assim, há também uma arrogância na atitude de Camões face à Eneida que passa por parodiar episódios, por tentar levar a um extremo esse efeito de glosa e imitação de toda a épica renascentista, maneirista, e que toma elementos da Eneida, como a introdução, que por sua vez Virgílio glosou a partir da Ilíada, aquele «Canto, ó Deusa…», começando a enumerar aquilo que vai cantar. Mas Camões até torce a ordem das palavras e a própria sintaxe de forma a soar mais próximo do «Arma virumque cano…», colando-se à sonoridade do latim de Virgílio, «As armas e os barões assinalados…» Quer dizer, o Ariosto não começa assim, segue a fórmula que vem do grego. Mas Camões quer estar tão perto possível da Eneida mesmo ao nível das sequências de palavras, para que soe e, de algum modo, se sobreponha à epopeia de Virgílio.
Quase copiando a dicção do outro. Como se ele escrevesse de ouvido e se obrigasse a fazer com que o português ocupasse o lugar do latim, invadindo a partir do interior a canção que ele conhece de cor.
Sim. Nesse sentido essa influência central é clara, e eu diria que o esforço de Camões vai no sentido de dizer… «eu consigo aproximar isto da Eneida a um nível tal que parecerá uma loucura, mas, ao mesmo tempo, parecendo que me estou a aprisionar de tal forma a esta canção, a partir do seu âmago, vou conseguir superá-la». É uma audácia que quase parece uma fanfarrice. Há momentos em que revira a coisa, goza, brinca, faz dela o que quer, de forma a deixar claro o seu virtuosismo e a superioridade da sua canção. Estamos na poesia como um modo de competição, em que há um valor acrescido por se conseguir provar um domínio das armas do outro, superando-o desse modo, em vez de o vencer recorrendo às minhas. É impressionante, porque é uma imitação, mas feita segundo uns modos que se permitem extravasar o original.
Em relação a essa perspectiva a que aludiste, da exploração do Índico, dessa vantagem da fundação de um novo mundo, império, isso carrega esse efeito de paródia no sentido em que, segundo o Helder Macedo, o Camões pode ser visto como um poeta moderno, pela abertura ao outro, à diferença que nos transforma. Interessa-te falar nesses termos ou achas que ele não pode de facto ser desligado do espírito do renascimento, em que era possível reclamar uma originalidade a partir de uma profunda inscrição dentro dos modos que lhes eram próprios?
O que eu acho é que a ideia de contemporaneidade poética vem de uma influência poderosa que assumem o Eliot e o Pound no século XX e que eram grandes leitores da poesia do século XVI. Podemos também incluir o Joyce neste lote. E eles vão recuperar um modo que é muito próprio da literatura desse século, neste sentido, não é propriamente o Camões que está à frente do seu tempo, o que me parece é que o que recebemos como herança dessa poesia fundadora da modernidade, no princípio do século XX, é uma poesia que recupera essa relação… Poesia e prosa, no caso do Joyce, em que é muito clara essa relação entre o Bloom e o Ulisses. No Eliot as fontes são mais variadas, mas também é claramente uma poesia que deve muito da sua invenção e fulgor a essa capacidade de imitar e combinar elementos diversos, e acho que eles tentam recuperar este modo de fazer poesia seguindo essas influências do século XVI. O Eliot defende essa ideia de que a poesia que ele faz faz dele um clássico. Ele vai buscar essa oposição entre o romântico e o clássico, que em França foi motivo de grandes debates, destacando-se a intervenção de Maurras… E o clássico parte deste sentido de se cultivar uma forma que funciona como uma prisão, essa imitação em que o poeta se encerra e que o obriga a uma subversão a partir de dentro. É a ideia de que, se eu tiver o campo livre, acabo por me perder…
Às tantas um excesso de liberdade pode revelar-se algo bastante estéril para o artista, pois não é capaz de alimentar essa tensão e confronto com a tradição…
Sim, deixa de ter interesse porque não tenho nada com que me relacionar ou a que me comparar e opor.
O génio do passado ao exigir de ti um confronto permite que emerja na tua obra algo que supera a tua vontade e, nesse sentido, alimenta-se e serve-te de alimento para irem mais longe.
Sim, qualquer coisa que nos mostra que, apesar de tudo, há uma devoção à poesia que faz com que o objectivo seja atingir a plenitude dessa tradição, e isso faz-se pela aproximação a tudo aquilo que foi feito de melhor, de exaltante, e que não deve perder-se à medida que procuramos algo de novo. Ou seja, há ali algo dessa perfeição e fascínio que nos provoca a obra de outros poetas, e o que me compete é prosseguir esse esforço e trazer algo mais a essa essência. Nesse sentido, quanto mais próximo eu estiver da estrutura que ao longo dos séculos foi sendo erguida e robustecida, mais capaz eu sou de a levar a outros níveis, sendo, assim, fiel à substância da poesia, ou qualquer coisa desse género. Tendo isto em conta, se dissermos que o Camões é um poeta moderno não estamos a fazer mais do que reconhecer que a poesia fundadora da modernidade foi buscar muito da sua essência ao século XVI. Isso está patente na mundividência do Pound, essa reverência que ele mostra pelas literaturas latinas, e no Eliot também.
Um outro aspecto que tu ressaltas é o facto de, por se saber tão pouco da biografia do Camões, este ter-se tornado um espelho que acaba por nos revelar mais sobre quem quer que se debruce sobre ele. Isso é evidente desde logo na aproximação que a ele faz o Jorge de Sena, em que se percebe que está a tentar que vingue a sua personalidade, a sua capacidade e força… Mas tu defendes que isso acaba por ser um vício ou uma virtude geral, ou seja, que as leituras do Camões revelam-nos mais quem está a ler do que o próprio Camões, que continua a ser uma figura elusiva. E uma vez que defendes que é indubitável que Camões é uma figura que está do lado da expansão do império colonial português, e que é fraudulento vir colocá-lo como uma voz que condena esse movimento, sendo esse um dos debates que tem persistido mais recentemente, gostava de saber que balanço é que fazes neste momento desta revisão que se está a fazer da matéria dada.
Tenho alguma dificuldade em falar estruturadamente sobre isso. Porque nem sequer é para mim certo que isto seja um grande problema. O que acaba por acontecer é que, sendo a obra do Camões uma obra aberta, no sentido que qualquer pessoa que estude literatura conhece, tem essa vantagem de permitir leituras poderosas e originais, que se calhar não nos dão uma perspectiva muito clara sobre quem foi Camões, mas oferecem margem para que se afirmem, nesse diálogo, grandes estudiosos, grandes poetas. Também me parece que a leitura que o Pessoa faz do Camões é muito interessante, e ainda que aquilo talvez já não seja o Camões, consegue mesmo assim ser uma visão grandiosa. Eu vejo vantagens nessas abordagens. Mesmo o Sena, em relação ao qual tenho sentimentos bastante contraditórios no que toca às propostas críticas que ele faz sobre a obra e a vida do Camões, e se há muitas que são um disparate completo(sobretudo quando se mete na genealogia, onde é evidente que não sabe nada, havendo aspectos em que se espalha ao comprido), depois há outras alturas em que se nota a força da personalidade e da inteligência dele, até um certo génio interpretativo e um arrojo que são muito cativantes. O mesmo poderia dizer de alguns dos leitores que Camões teve no século XIX… Houve erros? Claro, mas também é verdade que quase tudo o que se descobriu sobre o Camões partiu de leituras feitas então. Assim, fica claro como o Camões mitológico é uma presença muito forte na cultura portuguesa, e é algo em que acabam por estar investidas muitas das melhores cabeças que nós tivemos. Se não temos o mesmo nível de adoração que se tem em Espanha, por exemplo, em relação ao Quixote, em que qualquer ensaísta escreve sobre o Quixote e aquilo é quase uma prova de vida, ficando a ideia de que essa interpretação significa o mesmo que para um escolástico medieval interpretar as sentenças de Pedro Lombardo, um exame a que cada um tem de se submeter e que dá a medida das suas capacidades de interpretação, se não temos algo desse género, e as aproximações a Camões vão sendo feitas de forma mais espontânea, a verdade é que o Camões tem sido um ponto de partida para muita gente dar o melhor de si na expressão de um pensamento e na ideia que faz da cultura… Assim, não me parece que seja um grande problema que haja margem para todo o tipo de divagações e propostas, o que depois acaba por acontecer é que, nas questões biográficas, que tantas vezes são misturadas com as leituras do texto, já nos deparamos com extrapolações que muitas vezes não me parecem legítimas. É evidente que as interpretações textuais também podem conduzir a erros graves, e se é bom que cada um sinta o caminho desimpedido para propor a sua leitura, creio que às tantas devemos poder definir um reduto de verdade mínima e que emana do próprio texto e um critério ao qual me parece ilegítimo fugir. Na questão do Império português, e até na própria ideia de epopeia, parece-me que isso é bastante claro. Esta ideia de que Camões operou uma subversão da epopeia parece-me que é esticar demasiado a corda, ainda que a maior parte dos estudiosos que avançam essa tese, como o João R. Figueiredo, ou até o José Madeira, já há alguns anos, com aquele livro que publicou na Fenda – Camões Contra a Expansão e o Império / os Lusíadas como antiepopeia –, ele admite que essa noção nasce de entender que o poema do Camões é de tal modo impressionante que é como se a partir dali não pudesse mais retomar-se aquele género, repetindo-o tal e qual. A epopeia camoniana destrói porque seca. O que acaba depois é por haver uma percepção junto do público que vai mais longe do que essa proposta que esses leitores estão a fazer.
Sim, trata-se de conceitos com alguma fineza que depois são apercebidos e apropriados de forma algo grosseira. Mas voltando atrás, gostava de perceber porque é que a leitura da poesia que se fez no século XVI te leva a concluir que está aí o nosso século de oiro, o momento mais poderoso da poesia portuguesa.
Por várias razões. A primeira é por ter sido uma altura em que se introduziu na corrente um elemento que teve um efeito libertador, um desses momentos que ocorrem nos períodos em que nos precipitamos num território por explorar e que vai dar-nos pano para mangas. Isto acontece quando surge a psicanálise, ou quando o marxismo surge, é algo que sucede em momentos capitais da história, sempre que nos damos conta de que há ali um filão que nos vai levar a grandes aberturas, transformando a perspectiva que até ali tínhamos. E o que aconteceu no século XVI é que se operou a transição de uma poesia performativa, em que o que se fazia era uma poesia que se dirigia a outros, e em que mesmo a poesia de amor era uma forma de eu cantar os atributos de determinada senhora entre os demais, e, a partir do momento em que chega a influência do Petrarca, que aqui chega já com algum atraso, há esta revelação de que a maneira mais fina de me descobrir a mim próprio é fazer uma poesia sobre mim, sobre aquilo que me domina, e já não apenas por referência àquilo que se impõe como moeda corrente da vida cortesã. A poesia liberta-se dos usos regulares, de certas facilidades ou trocadilhos, nesse esforço do indivíduo se analisar e descobrir a si mesmo, e isso oferece à poesia toda uma outra dimensão e uma profundidade até ali inaudita.
Então é aí que tu localizas esse foco em que a abertura é feita através do mergulho numa subjectividade e interioridade que persiste até aos nossos dias?
Sim, exactamente. É a altura em que me parece que esse movimento para dentro realmente assume um ímpeto decisivo.
Isso claramente parece apontar para esse movimento que antecede o do modernismo, em que há um tal grau de exasperação da subjectividade que, por fim, se supera a noção do eu, e então o eu já é um outro. E esse movimento de multiplicação vai cindir a personalidade e fazer explodir as possibilidades de se ser não isto ou aquilo mas o próprio movimento e metamorfose sucessiva.
Sim, mas o que é engraçado é perceber como a génese disso está no século XVI, que é um século filosoficamente ainda muito dominado, em termos de ética e moral, pela ideia das paixões, e isso que está muito presente na poesia, leva o poeta a reconhecer que há uma série de coisas que estão dentro dele, que exercem o seu apelo e força, mas que lhe são estranhas. E este confronto e debate consigo mesmo é algo que a todo o momento anima a obra do Camões, essa contradição das vontades, essa ideia de que eu não domino as minhas vontades e impulsos, e que essa estranheza que há em mim me força a tentar a todo o momento compreender o que é que realmente foi gerado por mim e o que é que me vem de fora, o que é que se me impôs. É esta noção de que muitas vezes eu sou um mistério para mim mesmo, que não me conheço e que não tenho sequer forma de apaziguar esse desconhecimento. Tudo isso, sendo de algum modo um território virgem, acaba por gerar perspectivas muito diferentes, e maneiras de olhar para esta questão bastante complexas. Nesse sentido, é um século extraordinário para a literatura. Do Bernardim Ribeiro ao Camões, passando pelo Frei Agostinho da Cruz… Há uma diversidade muito grande na forma de se debater com este processo. É um século que se debruçou assim perante uma fonte gigantesca, e parece-me que isso foi reconhecido pelos poetas do modernismo, sobretudo. Por isso acaba por haver essa influência tão fértil.
Um aspecto em que me parece que o Camões se destaca e diferencia grandemente da imagem do poeta cortesão e desses modos de uma elite que se ia servindo da palavra para efeitos de recriação são os 17 anos que ele passa fora de Portugal, o período em que se aventurou e que acaba por lhe dar não apenas uma perspectiva mais vasta do mundo, dos diferentes povos e culturas, mas também uma experiência que modula aquilo que somos capazes de integrar com outra subtileza nos nossos saberes. Porque a inteligência ou a sensibilidade, por maiores que sejam, ainda é na experiência que bebem essa capacidade de virar algo e captar os seus vários ângulos, propondo uma posição inesperada, face a nós próprios, face àquilo que julgávamos saber. E esta parece-me ser uma componente distintiva na obra do Camões e que, depois, mesmo séculos mais tarde, continuou a ser rara, pois não é tão frequente como isso encontrarmos obras poéticas de pessoas que levaram vidas realmente aventurosas. Esse exílio de 17 anos do Camões parece ser também um elemento que lhe permite aquela audácia e arrogância na forma como adopta e revira os clássicos.
Não temos maneira de datar com muita segurança a altura em foram escritos os poemas de Camões, mas há composições que parecem claramente ter sido escritas em Lisboa, num período que antecede esse longo périplo pelo Oriente, e parece-me que já aí há algo que talvez não fosse claro se não tivéssemos o resto, mas parece que, mesmo antes de o Camões ter obra, já há nele um certo sentido de superioridade, e que, de alguma maneira, altera a poesia cortesã dele. Há ali um certo despeito, às vezes quase uma raiva, que pode vir dessa sensibilidade e inteligência que não se conseguia ver reconhecida. E talvez não pudesse ser reconhecida porque ele, na verdade, não tinha feito nada que provasse essa superioridade, mas há nele algo que alimenta essa agressividade, que já aponta para outra coisa, e que talvez fosse demasiado discreto se não tivéssemos o resto, o que depois veio a tornar clara essa sua diferença. Assim, eu não sei se terão sido aqueles 17 anos, até porque me parece (embora seja difícil provar este tipo de intuições) que, mesmo Os Lusíadas é uma obra construída em vários momentos e até aproveitando coisas que ele provavelmente já tinha. Há alguns indícios que parecem apontar para aí. Aquela dedicatória em que D. Sebastião aparece sempre muito novo poderá vir de um poema escrito ainda em Lisboa, redigido por ocasião do nascimento do príncipe… Mesmo o magriço seria um parente do Conde Redondo, que foi Vice-Rei da Índia quando o Camões lá esteve, e poderá ter sido uma coisa feita para ele e que depois foi refundida n’Os Lusíadas. Até porque não faz grande sentido narrativo aparecer, de súbito, no Canto VI aquele episódio isolado, um episódio de cavalaria. Portanto, acho que mesmo n’Os Lusíadas damos por uma construção que torna difícil afirmar que aquilo é produto de uma altura em particular. Camões tem uma diferença face aos seus contemporâneos e que, nesse aspecto, o aproxima particularmente do Petrarca, que é ele ter essa consciência de que está destinado a escrever uma grande obra. E que esta não se fará escrevendo uns sonetos dispersos. Tem de haver uma unidade, e, por isso, em certos poemas parecem estar presentes esses indícios de que ele poderia estar a querer fazer uma recolha com uma certa unidade. Acho que essa noção o acompanha durante muito tempo, e isso também o eleva, pois obriga a esse sentimento constante de insatisfação com aquilo que já fez, tentando acrescentar novos elementos a uma obra ainda por completar. Qualquer pessoa que escreve conhece essa sensação, a de que, quando está a escrever, qualquer coisa que esteja à sua volta parece poder entrar na corrente, alimentar o caudal, e isso também devia acontecer ao Camões. A própria ideia de se fazer uma grande obra funciona como um núcleo que vai absorvendo tudo ao seu redor. Depois essa passagem e contacto com um mundo extraordinário, que em muitos aspectos é um novo mundo, com culturas e povos que eles nem sonhavam que pudessem existir, essa descoberta europeia de realidades insuspeitadas, tudo isso que ele em parte testemunhou terá tido algum impacto. Isto embora Os Lusíadas não seja propriamente um livro de viagens, e se há descrições do que viu e encontrou, não é um palimpsesto etnográfico extraordinário. Aquilo reforça a narrativa de ordem mítica, e de algum modo circunscreve-se aos seus modos. O que há é essa consciência de se estar diante de uma perspectiva nova e grandiosa e que significa uma alteração fundamental. A maneira de ele olhar para aquilo não é só essa de pensar: «Fizemos aqui uma grande viagem, e isto é um feito impressionante.» Ele vai alargando a sua perspectiva do que é o Oriente, vai descobrindo o que pode ser aquele mundo, e, nesse sentido, aqueles 17 anos fazem uma diferença muito grande, e dão-lhe uma experiência e uma noção que mais ninguém na poesia portuguesa poderia ter.
Deixando agora de lado o Camões, gostaria de falar da tua formação como leitor e crítico literário. Disseste que foi quando começaste a trabalhar mais assiduamente como alfarrabista que sentiste o apelo de muitas dessas obras que circulam sobretudo nas criptas, e que animam os coleccionadores. Há claramente uma propensão nos teus artigos para estabelecer ligações e paralelos com exemplos encontrados na literatura, muitas vezes até o fazes jocosamente, parodicamente, revelando uma veia satírica, como quando analisaste o que se passou com o Ricardo Robles falando no romance de Camilo A Queda de um Anjo… Essa tua relação desabusada com os clássicos, esse recurso a obras e autores que muitas vezes até andam na boca do mundo, mas que, na verdade, praticamente ninguém leu, nem é capaz de manobrar como uma arma, e assim a pergunta que te faço é: Como é que, hoje, aos 31 anos, estás a assumir este papel de intervir e provar uma erudição e um entusiasmo pelas questões centrais da literatura, que se foi algo bastante comum noutras gerações, quando os jovens cultos assumiam para si estas grandes empreitadas, nesta faz de ti um caso extremamente invulgar?
Não sei bem como responder a essa pergunta. Este é o meu mundo. São as coisas que eu gosto de fazer, de ler… Estas leituras que eu fui fazendo, e as que são feitas indo lá mais atrás, sobretudo, acabam por se apoiar umas às outras, porque a dificuldade de mergulhar em obras mais antigas, onde esbarramos nesses elementos arcaicos que podem, por vezes, ser dissuasivos, esse nível de discursos que podem parecer algo densos, armadilhados, do pondo de vista conceptual, quando estamos perante discursos de natureza mais filosófica, ou aqueles que nos impõem mais dificuldades, a verdade é que depois de superarmos essa consciência de que estamos a entrar numa língua que já não é bem a nossa, se aceitarmos que estamos a ler coisas cuja mundividência se perdeu algures no caminho, o que acaba por acontecer é que esse movimento de recuo, essas leituras através das quais calcorreamos o passado, se num momento levantam muitos obstáculos, depois, a partir de um certo ponto, já nos empurram de umas para as outras, e o rumo vai-se aclarando. Dando um exemplo que me diz alguma coisa: Qualquer pessoa que se esforce por ler aqueles autores contra-revolucionários do princípio do século XVIII, um Joseph de Maistre, um Bonald, um Burke, etc., lê aquilo e não consegue encontrar grande interesse porque nem consegue dilucidar ali argumentos propriamente políticos, e isto porque são obras cujo vocabulário mal se cruza com o nosso. Aquilo não é o nosso mundo. São autores que, no fundo, estão a falar para outras cabeças. Mas o certo é que, percebendo um, investindo tempo num, o do lado já se torna familiar, e por isso as coisas acabam por se ir ganhando umas às outras.
E qual foi um desses autores que se revelou mais instigante e te desafiou nesse sentido, levando-te aos 20 anos a mexer com entusiasmo num desses tomos que para a maioria de nós servem mais como túmulos onde apenas cheiramos o passado como um perfume de decrepitude?
Foi um percurso que fui fazendo por fases. Mas é preciso notar que o meu convívio normal, em casa, desde sempre com livros antigos, esses cartapácios que para outras pessoas podem ser objectos raros ou com os quais pouco contactam, tudo isso ajuda a não te atemorizares perante uma edição antiga, a não sentir de imediato uma estranheza diante de um texto que possa parecer mais solene, isso foi algo que eu nunca senti, e, nesse sentido, acho que isso pode ter sido decisivo. De resto, e em termos de leituras, acho que fiz um percurso bastante normal, e naturalmente houve uma altura em que me dei conta de que havia uma literatura que apontava de facto para outra dimensão… Quando era mais novo, jogava râguebi e parti uma perna, e acabei por ficar com ela pendurada durante um largo período. Foi nessa altura que li Os Maias. Quando a seguir fui ler outra vez o Harry Potter a diferença tornou-se demasiado óbvia…
Mas foste ler o Harry Potter para tentar perceber o que pensavas daquilo depois de leres o Eça?
Não, nada disso, fui ler porque tinha 14 anos. E se um tipo leu Os Maias e gostou, não se dá logo conta de que há ali um ponto a partir do qual já não é possível andar para trás. Houve ali um salto que fez com que as coisas normais que então um miúdo lê já não lhe saibam ao de antes, começando a desapontá-lo. Depois o meu percurso foi o normal dos adolescentes, aos 16 e 17, havendo aqueles autores que então nos chamam, os Oscar Wilde, os Dostoievski, esses que então se tornam mais inebriantes…
Sim, mas esses autores, nos nossos dias, são lidos, e só com muita sorte, aos 26 e 27. Muitas vezes só aos trinta e tal. É o meu caso. Na verdade, é raro encontrares, hoje, um adolescente que leia com proveito uma obra do Dostoievski.
Não sei. Eu também não estou certo de ter tirado algum proveito dessas leituras. Mas aquilo não deixa de ser impressionante, não é? Naquela altura aquilo deixa em nós uma impressão indelével, e isso vai construindo um mundo para depois ires apalpando o terreno e dando por elementos mais subtis. Já não estás dependente das indicações dos autores mais espalhafatosos, e isso permite-te ir mergulhando em zonas mais exigentes e, de algum modo, também mais desafiantes. Entretanto, fiz um curso de Filosofia, que também é uma coisa que dá muito jeito para uma pessoa não se atemorizar com algumas coisas que estão rodeadas de uma aura mais sagrada ou que parecem impenetráveis. Se não for por mais nada, é um curso que nos dá essa noção de que a leitura é esse movimento que não se deixa desencorajar ao deparar-se com obstáculos, com problemas, mas é uma disciplina que vai inculcando em nós esse princípio de que, se algo te retém, aquilo que te é pedido é que te concentres, que estudes a questão de forma mais aprofundada, e então o que parecia intransponível acaba por se tornar mais um elemento a teu favor. Essa veio a ser a minha relação com a literatura e com a História, ou seja qual for o tema a que me dedico. Quando há uma coisa que não percebes, estuda-se mais.
Quanto ao teu trabalho como alfarrabista, foi aos 20 anos que começaste a ajudar o teu pai?
Não. Comecei a trabalhar na feira da Rua Anchieta aos sábados, de uma maneira muito amadora, claro, porque era o meu pai que me dava os livros e eu ia para lá vendê-los, com 15 anos. Ia para lá cedo, saía ao fim da tarde, e essa foi a minha iniciação. Depois, enquanto ia fazendo o curso, fui entrando cada vez mais no negócio familiar, até que, ao terminar o curso, entrei definitivamente.
Se no século XVI houve essa abertura a novos povos, culturas, a novos mundos… Nós já nascemos imersos no enredo da globalização, e a internet e as novas tecnologias alteraram o ritmo a que a própria mudança ocorre, tornando-se uma vertigem constante. Desse ponto de vista, o teu percurso também é curioso, uma vez que tu fazes o teu percurso enquanto alfarrabista num período em que não se ouvia outra coisa a não ser que o fim dos livros estava aí ao virar da esquina, quer dizer, tens passado a tua vida dedicado a um ofício que supostamente teria os dias contados. E se esses rumores da morte do livro foram claramente precipitados, o que é um facto é que muitas livrarias e alfarrabistas foram fechando, e Lisboa, que em tempos oferecia aos leitores uma rota bastante intrincada a esse respeito, está reduzida a serviços mínimos. Gostava assim de saber que perspectiva é que isso te coloca.
Também tenho alguma dificuldade em falar sobre isso, por uma razão: apesar de ter crescido no meio dos livros, das livrarias e alfarrábios, uma coisa que sempre foi mais ou menos clara em minha casa e na relação do meu pai comigo é que se fazemos isto a motivação principal é o gostarmos de ler, escrever, lidar com livros, etc. Esta é uma profissão que nos permite estar em contacto com os livros. Em termos profissionais, há um investimento apenas no sentido de uma pessoa conseguir viver a sua vida, sem demasiados constrangimentos, mas, e sem querer parecer desinteressado ou alheado dos problemas que enfrentam as livrarias, a verdade é que não encaro este ofício como uma missão especial no sentido de defender certos valores, nem a vejo como uma forma de garantir algo de extremamente importante nos nossos dias. Quem quer encontrar livros encontra-os sem grande dificuldade. Não faltam bibliotecas, os livros estão acessíveis livremente em formato digital, circulam por todo o lado, não acho que esteja em causa qualquer tipo de escassez, antes pelo contrário, o problema até é de uma certa saturação. Não me vejo como um guardião dos livros, nem um paladino dos benefícios que estes trazem. Isto é uma profissão, e, apesar de tudo, consegue ser um pouco mais simpática para mim, mas é-o porque me permite chegar a uma série de coisas que, de outra maneira, provavelmente seria mais difícil que passassem pelas minhas mãos. Mas como qualquer pessoa que gosta de ler, e que por isso tem algum apreço por livrarias, é claro que assistir ao desaparecimento destas, sobretudo essas livrarias com personalidade, e que conseguimos perceber que corporizavam uma ideia diferenciada e que assim se perde, isso é obviamente triste, pois deixa-nos uma sensação de isolamento, de perda de um mundo que nos dizia alguma coisa. Nem digo isto como livreiro, sendo certo que em tempos, na Rua da Misericórdia, tínhamos ali uma vizinhança bastante viva, e agora já só estamos lá nós, mas digo-o sobretudo como leitor. De cada vez que abre uma livraria, seja mais generalista ou dedicada por exemplo à arte, vendo-a fechar passados alguns meses, o que nos entristece é pensar que não há em Lisboa leitores suficientes para sustentar uma livraria de arte. Ou sequer uma livraria tão decente como era a Buchholz, entre outras que têm sido compradas e revertidas para as cadeias livreiras sem uma identidade autónoma. Isto imprime em nós uma sensação de isolamento e de desaparição de um mundo. Mas este é um tema que, da minha perspectiva, tem implicado do lado de quem vende um certo exagero, como se para defender o ofício fosse preciso insuflá-lo de uma dignidade de tal ordem que roça a soberba, e nessa postura já não me revejo. É claro que torço para que tudo corra bem às livrarias, e esforço-me no meu trabalho para ter uma livraria boa, que justifica a necessidade destas existirem, mas não esperem de mim esses exercícios de grandiloquência, pois não acho que seja importante num sentido primordial que esta profissão persista, como se os livros deixassem de chegar aos seus leitores sem ela.
Ou seja, não estás disponível para este exercício que passa por fazer de uma ameaça à condição dos livreiros um estribilho que permita encenar uma forma de heroísmo, da parte daqueles que se mantêm como irredutíveis ou resistentes da causa…
Não tenho grande reflexão a fazer sobre isso. Porque isso obrigar-me-ia a uma distância que se calhar…
Obrigava-te a olhares para ti mesmo de fora e a fazeres um exercício de auto-exame permanente.
Sim. É claro que me vejo como alfarrabista, mas não acho que isso seja uma condição particularmente distintiva, ou de tal modo importante para sentir que me devo entregar a um discurso de enaltecimento da minha função.