No fim, mais do que expressar arrependimento pela retórica pró-fascista ou pelos ataques aos judeus, Pound acabou por assumir que chegara demasiado tarde à dúvida, pagando o preço mais alto ao sentir que a sua mente se desintegrava. E se a obra reflecte toda a beleza bem como o ódio que o movia, talvez seja apressado querer julgá-la segundo um obtuso sentido de moralidade, quando o facto de ele ter errado não significa que os seus inimigos estivessem certos.
Os últimos anos da sua vida, viveu-os quase inteiramente em silêncio. Não numa postura desafiadora ou sequer dedicado a uma forma de introspecção serena, mas para segurar um génio terrível que se virara contra si mesmo. Não eram só os problemas de uma saúde cada vez mais frágil, ou a dificuldade em manter o equilíbrio e se agarrar fosse ao que fosse entre abalos depressivos, que o sacudiam como a um homem embarcado e sujeito à impiedade das vagas, mas havia-se tornado recorrente nesses últimos tempos que o mero esforço de pôr ordem a uma frase logo o atraiçoasse, só lhe restando esses rabos de frases com que dirigia acusações a si mesmo. Não era o mundo já que contava com o seu desprezo, mas um reflexo degradado que se aninhara no rastro das suas velhas ilusões. Das vezes em que ainda acedia a receber visitas, quando havia um esforço de obter dele alguma entrevista, do alheamento saía para se mostrar um homem consumido por remorsos, confessando os seus erros, minimizando os seus feitos, enquanto lamentava as oportunidades que perdera e todos os livros que gostava de ter lido e que estavam já fora do seu alcance. Os fragmentos e rascunhos daquilo que deveriam ter sido os últimos cantos denotam já essa desolação, estando ali contidos, ao mesmo tempo, alguns dos versos mais sensíveis e pungentes da sua obra. Tendo começado por uma imersão dantesca nos elementos mais repugnantes da existência, por esta altura deveria estar já no paraíso, mas nalgum momento a ascensão terá encontrado uma resistência absurda, e nesses pedaços dos derradeiros Cantos que vieram a lume em 1969, em vez de uma conclusão arrebatadora, estamos diante dos soluços de alguém que admite a sua impotência e pede que os vindouros sejam clementes. “Que aqueles que amei possam/ perdoar aquilo que fiz.”
Num outro momento, fica ainda mais clara essa consciência do fracasso a que se entregara: “Mas a beleza não se acha na loucura/ Embora os meus erros e destroços se estendam ao meu redor./ E eu não sou um semideus,/ Não posso extrair algo coerente./ Se não houver amor em casa não há nada.” (Canto 116) “M’amour, m’amour/ que coisas amo ainda e/ onde te encontras?/ Que perdi o meu centro/ na refrega com o mundo./ Os sonhos querelam/ e acabam despedaçados –/ e se o que quis foi criar um paradiso/ terrestre.” (Notas para o Canto 117 e seguintes).
Aos 87 anos, Pound morreu na noite de 1 de novembro de 1972, sendo por fim libertado desse longo e agitado silêncio que se estendeu por quase uma década, em que o desespero e ânsia de contrição, entre outros sentimentos complexos e profundos, impossíveis de nomear, não lhe deram descanso. “Eu dou cabo de tudo aquilo em que toco”, disse a um jornalista em 1963. “Estive errado, desde sempre… Cheguei demasiado tarde à dúvida…” São inúmeras as declarações que provam como a sua interioridade colapsou sob o peso das antigas convicções que ele expressara de forma tão enfática. Era a pena a que ele mesmo se condenara, o reverso das suas paixões odiosas a acertarem finalmente contas com ele. Nem mesmo o poema a que se dedicou nos últimos 50 anos da sua vida foi poupado ao seu juízo implacável, considerando os Cantos um atamancado de coisas sem nexo. E foi num encontro com Allen Ginsberg que Pound admitiu que o maior dos seus erros tinha sido esse “estúpido e suburbano preconceito do anti-semitismo”.
É importante sublinhar que os ataques que dirigiu aos judeus, fosse nas emissões de propaganda fascista nos estúdios em Roma da Ente Italiana Audizione Radio, fosse por meio dessa filigrana escarninha que vai pontuando os seus Cantos, em tudo Pound superou a snobeira e a malícia daqueles com quem crescera em Wyncote, na Pensilvânia. Se em seu apelo deve ser assinalado que, por esses anos, havia uma animosidade que era dirigida aos judeus em geral, que arcaram com o repúdio merecido pela classe de agentes financeiros que então, como hoje, merecem ser responsabilizados pelo flagelo materialista em que embarcámos, numa era em que a maioria dos homens dão o melhor das suas vidas em troca de algum “dinheiro escravo”, Pound era apenas essa figura que, por virtude da sua fabulosa concisão, era capaz de urdir o género de maldições que outros só não exprimem porque a paixão do idioma não lhes dá a mesma folga. De qualquer modo, é evidente que era mais fácil manifestar posições anti-semitas quando a maioria das pessoas não tinha noção dos contornos do Holocausto. De resto, Pound nunca sugeriu como solução o extermínio fosse de quem fosse. A guerra e a destruição de vida por parte daqueles que se alimentam da carne de outros homens era precisamente aquilo que ele se empenhou em denunciar e combater. Ao identificar a usura como “o cancro do mundo”, dificilmente será possível contestá-lo. Quando ele resvala é ao considerar que “só a faca cirúrgica do fascismo seria capaz de extraí-lo”. Seria, contudo, insistir num ludíbrio se sugeríssemos que as opiniões políticas de Pound podem ser separadas do julgamento da sua obra, ou que ele possa ser simplesmente encarado como um estuporado génio lírico que às tantas se entregou a uma sulfurosa catilinária, aceitando como inofensivos os seus ataques. Na verdade, os textos que redigiu e leu durante a II Guerra Mundial são exemplos claros de propaganda aviltante e odiosa. E o facto é que, bem antes do dia 13 de fevereiro de 1946, quando um júri, levando em conta o testemunho de quatro psiquiatras, considerou que ele não estava em plena posse das suas faculdades mentais, e que, por essa razão, não estava apto a defender-se no caso de traição que com toda a probabilidade levaria a uma condenação à morte, já há muito alguns críticos haviam manifestado preocupação com os excessos de Pound. Mas o alarido de contestação à volta da sua obra só se abateu decisivamente a partir de 1949, quando lhe foi atribuído o primeiro Prémio Bollingen pelos Pisan Cantos, o que levou alguns intelectuais a insurgirem-se, nomeadamente Irving Howe que afirmou que Pound, “em virtude do seu pronunciamento público e das suas convicções, se colocara para além das fronteiras da nossa vida intelectual”. Ou seja, ele escolhera assumir um empenhamento político, e devia ser julgado nesse papel.
Embora houvesse já passagens nos seus ensaios iniciais onde comparecem já indícios dos preconceitos que ele viria a manifestar mais tarde, a obsessão que desenvolveu com os judeus data do período em que começou a estudar alguma doutrina económica, interessando-se em particular pelas opiniões do fundador do movimento do Crédito Social, o Major C. H. Douglas, e de Silvio Gesell. Este era um movimento que defendia uma reforma económica que visava eliminar a dívida – daí os ataques de Pound aos esquemas usurários e aos judeus como agiotas e financiadores das guerras, sendo esta uma das mais persistentes e até clássicas formas de anti-semitismo. Não será certamente por ter abdicado daquela postura langorosa da arte pela arte, em face da enorme crise e depressão económica que marcou os anos 30, tendo assumido um decisivo empenhamento político, que devemos criticar Pound. O problema liga-se mais ao seu carácter impetuoso e à sua arrogância que, se lhe havia sido tão útil no campo literário, foi-lhe fatal na forma como desenhou esse seu tardio e desastrado curso de economia, julgando que isso fazia dele também uma autoridade internacional na matéria. Depois teve o azar de ver a sua débil compreensão ser amplificada na pior altura por aquelas emissões de rádio na Itália fascista. Pound ver-se-ia assim atraiçoado pelo seu próprio ímpeto, e o pior é que seria o seu orgulho a impedi-lo de reconhecer a tempo os seus erros, levando a que a sua poesia fosse arrastada e ficasse enredada num dos mais ignominiosos capítulos da história europeia. Depois da Guerra, os Pisan Cantos são ainda uma elegia num momento em que o poeta, perante os destroços de que se vê cercado, o que lamenta é que Mussolini e Hitler não tenham podido cumprir as suas visões para o velho continente.
Conviviam no génio de Pound uma audácia e uma perspicácia fabulosas com uma ingenuidade meio delirante, e William Carlos Williams, seu amigo de toda a vida e alguém que, em termos de carácter, era o seu oposto polar, certa vez descreveu-o como “um fedelho mimado”. E é um facto que, sendo filho único, concentrava a atenção dos pais, e permaneceu sempre ligado a eles, podendo contar com todo o apoio que lhe podiam dar, tendo os dois vivido sempre em condições modestas. A tentação de levar uma vida familiar, algo que ele encarava como um vício burguês, superou-a tendo não uma, mas duas famílias, duas mulheres devotadas competindo pela sua afeição. De resto, a enfatuação de Pound com Mussolini inicia-se depois de um concerto dado por Olga Rudge, uma violinista que Pound tinha tomado como sua amante, numa reunião em casa do primeiro-ministro italiano, em 1927, tendo o poeta visto nele um par, alguém inspirado pelos mesmos valores. Seis anos mais tarde, conseguiu uma audiência particular com Il Duce, no Palazzo Venezia, em Roma, tendo-lhe levado um exemplar do seu “Um Rascunho dos XXX Cantos”, que Mussolini acolheu graciosamente retorquindo “Ma questo è divertente”. Pound provaria a sua credulidade tendo-se convencido de imediato de que Mussolini se dera conta do alcance da sua poesia.
As emissões de Pound em que ataca os judeus, Roosevelt e a intervenção norte-americana na guerra, têm início em 1941, prosseguindo durante a invasão de Itália pelas tropas aliadas, em 1943. Um ano depois, ainda escreve dois cantos de propaganda, em que elogia o espírito combativo das forças fascistas. Conhecidos como os cantos italianos, durante muitos anos estes foram suprimidos da edição dos “Cantos” na New Directions.
Em 1945, Pound rende-se às autoridades norte-americanas, sendo detido sob a acusação de traição e preso num Centro de Treino Disciplinar do Exército a norte de Pisa. Seria depois levado para os EUA, mas, graças à intercessão de amigos e de Winfred Overholser, superintendente do Hospital St. Elizabeths, em Washington, foi poupado a um julgamento, por motivos psiquiátricos (embora nunca tenha recebido um diagnóstico específico). Naquela instituição gozou de amplas liberdades, sendo-lhe permitido, ao longo dos 12 anos que ali permaneceu, orientando uma espécie de seminário, recebendo os seus amigos e fazendo vários discípulos, incluindo John Kasper, um segregacionista associado ao neonazi George Lincoln Rockwell. Em 1958, e por pressão de vários intelectuais, a acusação foi arquivada e Pound regressou a Itália. Assim que saiu do barco, em Nápoles, fez a saudação fascista.
Mas pouco tempo depois da sua libertação de St. Elizabeth’s, numa entrevista que deu então, era assim que descrevia o seu estado depois de tudo o que se havia passado: “Não admira que me doa a cabeça; toda a Europa caiu sobre ela; quando falo, é como uma explosão num museu de arte”. Dez anos mais tarde, no encontro com Ginsberg, também parecia ter-se tornado o mais implacável dos seus juízes: “Em vez de falar de mim como um lunático, é mais certo dizer que era um idiota”. E a 4 de julho de 1971, confrontou aquele que tinha sido o seu mais constante inimigo: a usura. “Acabei por perder todo o foco, tomando um sintoma por uma causa. A causa é a avareza”.
De algum modo, é possível reconhecer antecedentes no percurso literário de Pound que o viriam a tornar especialmente atreito a uma deriva algo desesperada, levando-o a assumir posições políticas extremadas e indecorosas, tratando-se de alguém que revelou desde cedo uma compreensão profunda daquilo que se exigia de um artista no conflito com a sua época, e que, assumindo essa tarefa, se viu reduzido a uma condição de indigência, à medida que os embates no campo intelectual o empurravam para a margem, e desde logo o colocaram em conflito aberto com o gosto do público, que ditava as tendências e coagia os artistas, silenciando aqueles que se mostrassem verdadeiramente inovadores. “Não há tréguas entre a arte e o público”, vincava num ensaio publicado em 1917. “O público celebra as suas eucaristias com corpos mortos. Os seus escritores aspiram a ser iguais às ostras: querem ser engolidos vivos. (…) O gosto do público é mau. O gosto do público é sempre mau. É mau porque não é uma expressão individual, mas meramente uma mania que busca aprovação, uma mania em ‘fazer parte’. / Até os fiascos de um bom artista têm alguma qualidade, alguma distinção, que evita que agradem ao palato das massas.” Vendo-se obrigado a pagar do seu próprio bolso para que aqueles que julgava serem os mais inspirados artistas da sua geração pudessem ver-se publicados, fundando pequenas revistas de modo a prosseguir o seu magistério enquanto poeta e crítico, Pound sofreu na pele os efeitos desse enredo caritativo daqueles que se submetem à disciplina imposta de fora à arte. Numa carta a Harriet Monroe, editora da revista Poetry, em 1912 ele manifestava o seu profundo desgosto face a esse quadro de sufocação: “Estou completamente farto das pessoas que não se preocupam com obras-primas, que se afirmam artistas sem terem interesse em produzi-las, que não fazem o mínimo esforço para atingirem o melhor, que se contentam com a publicidade e com o aplauso dos críticos.”
Pound não recusou a tarefa de fazer inimigos, encarando o compromisso da tradição modernista como um esforço para alimentar o ímpeto de uma arte vulnerável, que não recebe o seu sustento do público, e que acaba por ter como inevitável traço a nobreza da sua derrota. Ao contrário da maioria dos escritores que não hesitam em ostentar a sua descrença na arte, as aspirações que Pound depositava na literatura eram verdadeiramente revolucionárias. Em O ABC da Leitura, ele defende que “os artistas são as antenas da raça”, e vai ao ponto de afirmar que “uma nação que negligencia as percepções dos seus artistas entra em declínio”. “Depois de um certo tempo esta cessa de agir e apenas sobrevive”, adianta. Não só isso, Pound entendia que se a grande literatura nos oferece um rumo, a má escrita destrói as civilizações e, ainda que fosse peremptório ao afirmar que não há democracia em arte, acreditava que a literatura podia aumentar a apreciação da vida para todos. Por outro lado, não fazendo a defesa de uma vida ascética, reconhecia o perigo do vil metal pela capacidade que tem de levar um artista a trair os seus instintos. “A questão é que se eu aceitar mais [dinheiro] do que realmente necessito, torno-me imediatamente num parasita, e perco imediatamaente a integridade. Ao fazer este trabalho [editar a The Egoist], recebendo apenas o mínimo indispensável, permaneço respeitável”, escreve numa carta a Margaret C. Anderson, editora da The Little Review, em 1917. “Toda a minha posição e ideia de que o artista é ‘quase’ independente está relacionada com a realização das coisas, tanto quanto possível, sem ‘dinheiro’.”
Compreende-se assim a repugnância de Pound diante de uma sociedade toda ela orientada para a acumulação de dinheiro, e em que a usura não só deixara de ser condenada como era a base das grandes fortunas e reputações que agora se criavam e ofuscavam as melhores mentes de cada geração. Sendo vaidoso e idiossincrático, não há dúvida de que Pound era um homem de princípios e de uma generosidade sem igual. Podemos até considerar que Eliot, Joyce, Yeats, Frost, William Carlos Williams, H.D., Hemingway, Ford Madox Ford ou Marianne Moore teriam certamente produzido obras interessantes e inovadoras quer tivessem conhecido Pound ou não, mas eles mesmos reconheceram a dívida (a verdadeira dívida) que tinham face a Pound por tê-los ajudado com a escrita bem como na divulgação das suas obras. Ele foi muitas vezes o seu primeiro e mais atento leitor, editou-os, fez com que fossem publicados em revistas a que estava associado e incluiu-os em antologias, apresentou-os a editores e a mecenas, empenhando-se pessoalmente, investindo neles o seu tempo, os seus conhecimentos, até o dinheiro que tinha, e que nunca foi muito, em alguns casos foi ao ponto de lhes dar as roupas do corpo. Ele era, no entender de Joyce, “um milagre de ebulição, gosto e ajuda”. E sim, depois disto, também se pode reconhecer como era extravagante, imodesto e imoderado nas suas opiniões, sem tacto, levando os outros à loucura à medida que ele próprio resvalava cada vez mais nas suas atitudes erráticas e insanas.
“Um galeão bombástico, palpavelmente ligado ao, ou vindo do, Terror dos Sete Mares”, escreveu Wyndham Lewis lembrando o encontro com Pound. “Ao entrar a bordo, descobri, por baixo da caveira e dos ossos cruzados, entrelaçados com flores de lis e salpicados de estranhezas absurdas e estreladas, um coração de ouro.”
E se os aspectos mais insidiosos do seu carácter não devem deixar de ser tidos em conta quando lemos a sua obra, se há um lado desumano nesta, este não deve ser imediatamente desconsiderado, como se isto excluísse à partida quaisquer méritos, uma vez que também isso ilustra os elementos mais negros e cruéis que estão presentes em todos nós. No fundo, a complexa mente de Pound prova ser uma região densa, variada e intrincada, e deveríamos ter isso em conta, pois como o próprio está sempre a lembrar-nos, é essa a dificuldade de se contemplar uma mente “inteira”.
No entender de uma das suas biógrafas, Wendy Flory, Pound era um tanto “avesso à introspeção”, como se os seus pensamentos devessem ser representados através de figuras autónomas. Naquela sinuosa linhagem que ele foi construindo e fazendo reverberar, tendo em Robert Browning um claro antecessor, Pound parecia ouvir vozes e ter desenvolvido esse talento ventríloquo de as projectar. Não seria inadequado enquandrar todos os seus poemas sob esse título recorrente, Personae. Cada um deles resulta normalmente numa evocação, chamando ou falando por um outro, envolvendo-se num monólogo dramático, e o próprio presente não se reconhece senão como um reflexo que se recompõe a partir de fragmentos do passado. A partir do momento em que o leitor se dá conta de que a maior parte da obra de Pound se constitui de admiráveis formas derivadas, no melhor sentido, daquilo que se tem por imitação, dá-se conta de como esta é uma mente plural, tal como era a de Virgílio. A grande tarefa do poeta seria estabelecer o paideuma, ou seja: a ordenação do conhecimento de modo a que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva deste e gastar um mínimo de tempo com objectos ou expressões obsoletas. A virtude mede-se assim pela capacidade de traduzir a radiância vital da tradição, e, para isso, Pound canibalizou outros autores como se quisesse cingir-se a falar apenas em ecos, a compendiar de forma primorosa aqueles elementos da cultura que provocaram nele um estado de exaltação.
Para ele, o poeta tornava-se uma força condutora ao interagir com outros poetas, definindo a sua própria identidade através de escolas e tradições, contendas, polémicas e pastiches. O ‘It’ no seu célebre mandamento – “Make It New” – é o Antigo, aquilo que merece ser resgatado na cultura do passado. Por isso, muito do que encontra o seu lugar nesta obra chega ali por um efeito de tradução e recriação, alusão e citação. Desfazendo-se dessa mistificação da originalidade, que a maior parte das vezes apenas revela a ignorância de um poeta em relação ao que já foi feito, Pound procura infundir nova vida a uma linha que chegou até ele, servir-se da tradição como uma matéria, sujeitando-a a um novo fulgor, uma unidade imprevista. Isto significa que, para termos alguma noção da tarefa a que ele se entregou, é precisar estar minimamente familiarizado com essas escolas e autores sobre os quais ele se debruça. Mas é preciso acima de tudo compreender como ele se afasta da abordagem filológica da literatura que se ensina nos departamentos de Línguas e Literatura Clássica, como ele repudia essa fidelidade que, pretendendo restituir tudo, abre mão do que importa. É ao considerar-se uma ciência e julgando-se acima do juízo crítico que a filologia trai o seu objecto. Ora, Pound estava consumido por uma paixão pelo juízo crítico, e considerava que a verdadeira tarefa que se nos impõe no estudo do passado era a capacidade de restituir esses textos a um diálogo, por meio de versões e reanimações promiscuamente livres da literatura de meia dúzia de tradições expiradas: latim, anglo-saxónico, provençal, italiano medieval, chinês do século VIII e japonês do século XIV.
O que resulta deste modo de exumação e regeneração de outros textos é paradoxalmente fresco e original, e o leitor de Pound sente essa confluência e esse efeito de sobreposição de tempos e de vozes, sobretudo ao ouvir tais palavras, que nos devolvem à origem, não a esses desastrados esforços que se sucedem depois, sem chegar a dominar a tradição, mas um lirismo que leva ao limite o efeito de concentração. É isso o que anima Pound, essa capacidade de assimilar e encarnar os elementos mais admiráveis do passado, e restituí-las de modo a que possam ser apreciadas hoje. Deste modo, também soube conferir uma autoridade estarrecedora aos seus princípios estéticos, localizando-os na obra de poetas que admirava. Os seus poemas são ao mesmo tempo ensaios e peças dramáticas, uma consideração sobre a vida humana ao longo dos tempos, e a restituição de um efeito de progressão que não esquece o que ficou para trás, mas renova-o. Assim, é importante saber que antes de Dante estava Virgílio, e que atrás de Virgílio está Homero. Pound quer renovar o propósito da epopeia, que mais do que um relato épico dos feitos dos homens, era um livro entendido enquanto acção que unificava uma comunidade através da crónica das suas guerras, lugares sagrados, deuses.
Ao mesmo tempo, como assinala Irvin Ehrenpreis, a doutrina que subjaz a esta poesia “diz-nos que a propriedade definitiva da natureza humana não é a moralidade racional (como Locke ensinara) ou a moralidade emocional (como Rousseau ensinara), mas a imaginação criativa; e que esta, por sua vez, está profundamente relacionada com a paixão do amor e com a empatia com as coisas amadas”. “A arte regista e recria o processo pelo qual o artista se mistura com o que ama.”
E é daqui que emerge a angústia e o verdadeiro nó do conflito com o seu tempo. Pois se Pound estava empenhado em trazer de volta o poeta dos tempos antigos, essa voz que contém que mistura no seu timbre a força e a graça de tantas outras, o bardo, esse cantor de lendas, que ele, no seu génio sonoro, se considerada, tudo isto entra em choque com uma sociedade que tinha perdido todo o contacto com a poesia, virando costas à sua grande tradição. E se essa mesma sociedade se recusou a reconhecer o génio dele e de outros, não é de estranhar que Pound tenha procurado estar do lado de um regime que prometesse restituir aos povos uma forma qualquer de mitologia serôdia. À medida que se isolava no estrangeiro, depois de passar por Londres e Paris, quando chega a Rapallo, a sul de Génova, a tentação de encarar a vida como um mito literário fê-lo resvalar para a paranoia, vendo na indiferença que o rodeava uma conspiração que ameaçava a própria civilização. Hoje, é bastante evidente que Pound estava certo no pressentimento dessa ameaça que viria a pôr em causa, não só a cultura, como a própria existência e equilíbrio dos ecossistemas neste planeta. O erro de Pound foi ter acreditado que uma figura como Mussolini poderia significar um outro rumo. A resposta não era o fascismo, mas seríamos igualmente ingénuos se acreditássemos que a alternativa provou ser bem melhor.
Contudo, só à medida em que nos formos libertando da perturbadora herança do século XX para a colocar em perspectiva diante de um quadro de devastação que virá reordenar inteiramente a noção que temos do inferno, só então ficará claro como os erros de Ezra Pound são bastante elucidativos quanto à nossa presente idiotia. De resto, seria apressado querer assumir um juízo definitivo sobre este artista e o seu legado, isto quando, como notou Charles Olson, o nosso próprio caso está ainda longe de ter sido examinado. “Como poderemos então julgar homens que foram tão mais longe nesse exame de nós próprios? Eles sabem contra o que lutam. Nós ainda nem sabemos pelo que lutamos.” No momento em que se tornar claro que devemos fazer escolhas difíceis, a sua obra continuará a convocar-nos para esse exame tão exigente a partir dos elementos mais cativantes da cultura humana. E se se abre diante de nós um percurso tão custoso, este consegue ser incitante pelo modo como entretece “cernes e medulas”, ou seja, reverberações que alcançam um tal nível que o leitor se sente a penetrar num território obsidiante, libertando-se da dieta redundante oferecida pelas realidades contemporâneas com a inane e esgotante desordem auto-referencial da cultura popular, para aceder a uma teia de saberes que nos devolve a uma relação temporal mais vasta, a uma compreensão do passado e dessas culturas estranhas que, embora hoje cheguem a parecer-nos de tal modo obscuras, são aquelas que respondem de forma mais desafiante ao que se agita dentro de nós.
Haroldo de Campos, que juntamente com o irmão, Augusto, com Décio Pignatari e mais uns poucos, foi dos raros que aceitou este convite, dedica-lhe estes versos: “O poeta ezra pound desce aos infernos// não para o limbo/ dos que jamais foram vivos/ nem mesmo/ para o purgatório dos que esperam/ mas para o inferno/ dos que perseveram no erro/ apesar de alguma contrição/ tardia e da silente senectude/ – diretamente com retitude –/ o velho ez/ já fantasma de si mesmo/ e em tanta danação/ quanto fulgor de paraíso”.
O seu exemplo persiste e as suas acusações e encorajamento conseguem soar ainda mais instigantes hoje: “Se pudesse banhar-me-ia em estranheza:/ Este conforto que se amontoa sobre mim sufoca-me!/ Eu ardo, eu fervilho tanto pelo novo,/ Novos amigos, novas caras,/ Lugares!”, escreve num dos seus primeiros livros (Ripostes, 1912). Noutro dos seus textos, sublinha que “se nunca escrevermos nada para além do que já foi compreendido, o campo da compreensão nunca será alargado”. “Exige-se o direito, de vez em quando, de escrever para algumas pessoas com interesses particulares e cuja curiosidade as leva mais longe.”
Na escrita de Pound havia sempre um rasgo e um destempero que deixámos de associar à poesia, uma energia extraordinária, um desejo de provocar e revirar tudo do avesso. Ele estava entre entre uns poucos que não se conformavam com a perda de influência da poesia face à prova, empenhando em reclamar esses poderes perdidos no século XIX para os grandes romancistas. Em seu entender, esta era uma arte que não tinha por que deixar de ser primitiva, já que “os deuses nunca nos abandonaram”. Assim, teve um papel decisivo em dar ao modernismo essa feição assombrosa, indomável, com o seu fascínio pelo arcaico e pelo inconsciente, com o seu desdém pelas massas, e com um repúdio absoluto pela sociedade industrial, em que os homens abdicavam do seu intelecto para gozar dos benefícios da mecanização. “Vá! Fujam de mim! Sou um desses que destrói/ E deixa almas puras menos puras ao conhecer-me;/ Fujam! Fujam, que eu trago a luz que cega Homens/ E os faz cambalear,/ Fujam, pois eu sou aquela parte da vida que não vos convém –/ A infâmia e indelicadeza,/ Sou a Primavera e o Outono./ Ah! Já escuto o vosso pavor!/ Venha a ira que arruína as sementeiras,/ O malfadado ouro do precipício.”
Ler os seus poemas é como beber de um odre um resto de água fresca que sentimos tomar conta da boca e da garganta, descer e atravessar-nos, restituindo-nos a essa fluência dos prodígios de um mundo e de uma tradição radiantes e que não podia senão indispor-se e desdenhar de tudo aquilo em que nos tornámos. Ao sentir o apelo do passado, Pound colocou-se em oposição à virgem estupidez inexpugnável das novas gerações, ofendendo a moral e a pretensiosa ideia do progresso, sendo fiel a um mundo hierático, revelando um respeito imenso pelas coisas tal como elas são, no mundo natural, antes de serem organizadas ou interpretadas pela mente humana. Para Pound, a mente é meramente o lugar onde o mundo se refugia, onde é armazenado, “na mente indestrutível”. “Como pode parecer longínquo se pensarmos nisso?”, interrogou repetidamente, querendo fazer notar, não que a distância está toda na mente, mas que a mente pode derrotar a distância recordando as coisas, respeitando-as o suficiente para as reter e reavivar através da memória.
Era preciso abrir mão das nossas conveniências e desses luxos sufocantes para recuperarmos o convívio com os deuses. “Ide afora e desafiai opiniões,/ Ide contra esta escravidão vegetal do sangue./ Sede contra todo o tipo de amortizações.” Era preciso retomar essas faculdades “mais antigas que o peixe”, de forma a alcançarmos o sentido do que pode devolver-nos o ímpeto vital, o novo, aquilo que é realmente novo, e perturba o que permanecia estático até ali. Esses objectos e obras que não estariam fora do seu elemento se fossem expostas na companhia de um bisonte de Altamira. Pound não tinha a menor paciência para esses que se limitam a uivar e reclamar “em métricas delicadas e esgotadas”, preferindo dirigir-se aos outros, aqueles que então como hoje não encontram motivos de deleite nessa poesia escrita por uma gente que prefere colher o favor do público e a publicidade que este lhe faz à recompensa de escrever umas poucas linhas avassaladoras e que lhe garantam a imortalidade. “Não se esforcem por me encontrar uma audiência.// Eu dou-me com os da minha estirpe livre sobre as escarpas;/ os recessos escondidos/ Hão escutado o eco dos meus saltos,/ na branda luz,/ na escuridão.” A sua intenção era, através da sua poesia, arrastar um mundo obscuro de volta para a luz, forjando uma realidade ecuménica onde todos os tempos se podiam encontrar livres da usura da noção de progresso, sendo esta estimada sempre de acordo com o lucro que alguns são capazes de obter. Pound recusava acompanhar essa forma de declínio, em que os valores culturais se submetem aos de ordem monetária, e via como missão do poeta expor o antagonismo entre essas duas realidades: “É que eu sou o estranho indomável/ Que não come da carne dos homens (…) A minha música refuta as vossas regras,/ Não podeis trilhar a estrada que demarquei.// E mais! Recuso as vossas ofertas./ Não me rebaixarei às expectativas que gerais./ Eis!/ Desapareço como uma chama vermelha na neblina,/ O meu acorde é irresoluto face à vossa contra-harmonia.”
A este respeito, uma das mais eloquentes homenagens que lhe foi dedicada, veio do poeta espanhol Felipe Benítez Reyes, num poema com o título “O preço de um soldado”: “Em 1938, num artigo sobre outra coisa,/ Ezra Pound, que entendia a poesia como uma ciência hermética/ e a economia como uma magia exacta,/ o perturbado admirador de Mussolini,/ o bricoleur de tradições e exotismos,/ o visionário/ que naufragou na maré caótica das suas visões,/ escreveu, num rasgo de lucidez e decência,/ o seguinte:// ‘A guerra custa/ 25.000 dólares por cadáver./ Quero saber/ QUEM fica com esses 25.000 dólares./ Esta pergunta parece-me/ de criminologia elementar’.// Ezra Pound, o pró-fascista retórico,/ nunca soube com certeza/ quem ficava com esses milhares de dólares,/ da mesma forma que não podemos saber/ se os beneficiários desse dinheiro fúnebre, ontem e hoje,/ conseguem afugentar do repertório dos seus sonhos/ os cadáveres anónimos que levam na carteira,/ como uma sequência recorrente de mortos sem porquê/ que perguntam por quê, enfiados numa carteira.”
Mas, de entre aqueles que o conheceram, talvez o testemunho mais arguto sobre as contradições de Pound e a forma como a sua complexa personalidade se reflecte na obra seja o de Yeats, que, na introdução de The Oxford Book of Modern Verse 1892-1935 (1937), escreveu isto sobre ele: “Quando considero a sua obra como um todo, encontro mais estilo do que forma; em certos momentos, mais estilo, mais nobreza deliberada e os meios adequados para a transmitir mais do que em qualquer poeta contemporâneo que eu conheça, mas é constantemente interrompido, quebrado, desfeito em nada pelo seu oposto directo, pela obsessão nervosa, o pesadelo, a confusão gaguejante; é um economista, poeta, político, envilecido pelo seu ódio contra agentes que ele identifica com o mal e que são descritos através de traços de carácter e de motivos inexplicáveis, figuras grotescas saídas de um livro infantil de bestas.”
O certo é que Pound não recusou fazer inimigos, traçar uma fronteira, havendo uma afinidade entre as culturas ancestrais que ele tanto admirava e a ideia do conflito. Por outras palavras, todos esses erros e destroços com que nos deparamos na sua obra obrigam-nos a abrir mão de um juízo final ou total, apocalítico ou não. A própria noção de tempo estava em ferida, e, de qualquer modo, era demasiado tarde, o mundo mostrava-se demasiado fragmentado para que fosse possível formular ainda alguma síntese dantesca. Mas talvez isso apenas seja uma outra forma de ser fiel à sua época. E no confronto que com ela travou, Pound não poderia deixar de ser afectado e de escrever composições ainda mais impressionantes por se atreverem a mostrar-se em público de tal modo descompostas, em tão grande desordem, umas vezes iradas, outras tão magoadas, frágeis. É certo que fracassou se levarmos em conta o seu esforço para devolver o mundo a uma unidade perdida, mas isso teria sido uma mentira. Os Cantos não poderiam restituir uma outra atmosfera, mas apenas dar a sentir de forma dilacerante a desordem e a impenetrabilidade do mundo moderno, que deixou de poder ser contido na mente humana, levando à loucura aqueles que, assim mesmo, se entregam a essa tentação de absorver tudo.
Ao longo de mais de meio século, Pound entregou-se a esse empreendimento único e coerente, “um poema criselefantino de comprimento incomensurável”, como ele mesmo o descreveu certa vez. Pode ser um clamoroso fracasso, mas nem por isso é menos admirável, estando ali reunidos os elementos da grandeza, e tratando-se do fruto de uma paixão de tal modo exuberante e exaltante, de uma atenção de tal modo intensa e persistente face ao mundo que o rodeia, que o mais provável é que não voltemos a depararmo-nos com outra obra com o mesmo grau de investimento e esperança. Assim, e como assinala outro dos seus biógrafos (Hugh Kenner), Pound conseguiu afinal transformar-se numa criatura mítica, identificando-se de tal modo com a própria poesia que foi capaz de nos dar uma ideia do que seria restituir o enlevo divino às coisas terrestres: “Deus é atenção concentrada; uma obra de arte é o acto de atenção de alguém, requerendo a nossa”. E se houve grandes feitos de atenção ao longo dos tempos, esta época parece ter-se tornado demasiado cínica para não olhar com desconfiança ou desprezar estas formas de afeição, debatendo-se para resgatar esses saberes que nos impediram de ficarmos petrificados. O verdadeiro conteúdo desta obra é a esperança, e esta chega a ser revolucionária num tempo em que, por muito que se fale e temam as catástrofes, as pessoas buscam novos valores como meros analgésicos. Ora, a solução proposta por Pound era recuperar a ligação com as culturas antigas, tempos realmente difíceis, em que os homens desenvolveram ferramentas críticas superiores às nossas no que toca a analisar a realidade. Pois se as nossas ciências vão muito longe no esforço de explicar a mecânica de tudo, depois não alcançam o espírito de coisa nenhuma.