Alice Vieira e Nélson Mateus. “Ninguém quer ser velho, mas todos queremos chegar a velhos”

Quase a lançarem o segundo livro que escreveram juntos, Alice Vieira e Nélson Mateus, que têm uma relação de avó e neto, conversam com a LUZ sobre a necessidade do envelhecimento ativo e a urgência da preservação da memória.

A escritora partilha que não teve avós presentes, mas inventou essa figura com uma prima. Já o mentor do projeto ‘Retratos Contados’ teve avós que, até hoje, o inspiram.

Encontramo-nos na Fundação Calouste Gulbenkian, na Avenida de Berna. Aos 81 anos, Alice Vieira continua alegre e a sentir entusiasmo quando fala na sua vida e caminha com genica até nós. Está de braço dado com Nélson Mateus, de 52 anos, mentor do projeto ‘Retratos Contados’ e que tem dedicado grande parte da vida a projetos solidários, com quem tem uma relação de avó-neto. Juntos, desenvolveram um primeiro livro focado na importância das relações entre avós e netos, publicado em 2021, intitulado de Diário De Uma Avó E De Um Neto Confinados Em Casa e estão prestes a lançar o segundo – Viagem às Memórias de Portugal – , que estará em pré-venda no dia 26 de julho (Dia dos Avós) e à venda a partir de 15 de agosto. Um dos temas inevitáveis na nossa conversa é o envelhecimento em Portugal. Alice e Nélson criticam a falta de valorização dos idosos e ambos acreditam que estes têm muito a oferecer, mas a sua sabedoria está a ser desperdiçada. Defendem, acima de tudo, a comunicação intergeracional como uma forma de enriquecer a sociedade.

Como é que se conheceram?

NM: Conhecemo-nos através de uma entrevista que fiz à Alice para o ‘Retratos Contados’. Falo de envelhecimento ativo e da importância da ligação intergeracional entre avós e netos. E a conversa correu muito bem.

AV: Foi há muitos anos!

NM: Há uns oito. Sabia muito bem quem era a Alice Vieira, mas longe de mim imaginar que viria a ter esta ligação com ela. E, no final da entrevista, disse que o meu projeto era muito interessante e que conhecia um semelhante na Argentina e que tinha feito muitas coisas para os mais novos, mas trabalhava muito pouco com os mais velhos. E foi a partir daí que a convidei. Está cansada mas, aos 81 anos e uns meses, não pára! É um exemplo. Quando a Alice fez 75 anos, escrevi um livro sobre a sua vida e obra. Foi preciso recolher alguns testemunhos e fotografias. Depois, falei de uma exposição e ela considerou uma belíssima ideia. Num dia, disse-lhe «Alice, não tenho avós há tanto tempo. Posso tratá-la por avó?» e, hoje, esquecemo-nos de que não somos avó e neto de sangue!

E como é que o Nélson decidiu criar o projeto ‘Retratos Contados’?

NM: Na altura, criavam-se muito blogues. Havia imensas coisas sobre viagens, culinária, bebés e crianças… Mas não havia nada focado nos mais velhos. E eu queria fazer algo que dignificasse os mais velhos, mas sem ser algo sobre cuidadores ou velhinhos que tratam de outros velhinhos. Queria escrever sobre pessoas que são um exemplo para a sociedade. Comecei pelo Ruy de Carvalho e pela Celeste Rodrigues. Não me esqueço de que ela disse que tinha deixado de fumar e que não queria ter telemóvel para o neto não saber onde ela andava! E, através destas pessoas, contamos também a História de Portugal. A Alice costuma contar uma história de quando trabalhava num jornal e o título da notícia foi Idosa de 40 anos morreu atropelada numa passadeira. Ninguém quer ser velho, mas todos queremos chegar a velhos. Portanto, o contrário de ser velho é morrer novo. Temos de valorizar os mais velhos. Até porque aquilo que somos hoje é o resultado da soma daquilo que os nossos pais e avós fizeram. Os nossos projetos não são de saudade, mas sim de valorização. Não podemos ignorar o passado.

O projeto ‘Retratos Contados’ «nasceu de uma ideia muito simples: Falar da importância dos avós na vida dos netos e da importância dos netos na vida dos avós», como o Nélson escreveu no site oficial do mesmo. Acham que falta esse diálogo em Portugal?

NM: Falta. Vivemos num país muito pequeno, mas com realidades completamente diferentes. Estive com a Alice, há um mês, numa freguesia que nem sequer sabia que existia, em Bragança. Chama-se Rebordãos. E a exposição esteve lá e fomos convidados para fazer uma tertúlia sobre o nosso livro. Ficámos surpreendidos porque, quando chegámos ao espaço, os miúdos tinham feito coisas com frases do nosso livro para decorar as paredes e, depois, apareceram frases e vídeos deles a falarem dos avós. Estão com os avós, em casa deles. Vão à horta, apanham flores… Há uma cumplicidade entre avós e netos. Nas grandes cidades, percebe-se que, por vezes, os avós e netos até podem estar na mesma casa mas um está na cozinha e outro no quarto. Existe um muro, que nem sequer é visível, que os separa. Mas a Alice diz uma coisa muito interessante, que é «os avós não devem ser»…

AV: Estás a tirar-me as palavras da boca. Há casos em que tem mesmo de ser, mas os avós não devem ser o ATL para onde os miúdos vão fazer os trabalhos. Somos avós, mas não somos mães nem pais. Lembro-me de que, quando o meu filho voltou para Portugal, disse que a minha principal atenção eram os miúdos. E eu respondi «O quê? Eu estou com eles quando puder». Tenho uma relação extraordinária com os meus quatro netos, mas nunca fizemos nada por frete. Fazíamos as maiores maluqueiras deste mundo e do outro e isso é que é! Não é suposto fazer almoço e jantar e mandá-los fazer os trabalhos de casa. Por exemplo, a minha neta mais velha tem 29 anos e eu sou sempre a primeira pessoa a saber o que se passa com ela. Os avós têm muito a ensinar aos netos, mas os netos também aos avós! Então agora, com as novas tecnologias… Se eles realmente não ensinam os mais velhos, é terrível.

Pegando nesse tema, como é que veem o papel das tecnologias modernas na aproximação entre avós e netos?

NM: As pessoas podiam estar muito mais próximas através da tecnologia, mas estão cada vez mais afastadas. Nós somos do tempo em que nem sequer havia telefone fixo em casa.

AV: Vivia na Ericeira, como agora, e na vila só havia uma pessoa com telefone. Tínhamos de ir a casa dela ou aos correios para fazer um telefonema.

NM: E muitas pessoas emigravam e, quando vinham a Portugal, casavam os filhos e era a primeira ou segunda vez que estes viam os netos! Hoje, em qualquer parte do mundo, é possível os avós verem os netos a tomar banhinho quando são bebés e tudo o mais. Há um vidro, é verdade, mas tem de haver mais proximidade entre as pessoas. A pessoa está do outro lado, mas também temos de estar presencialmente com ela.

AV: Com a tecnologia vamos onde queremos! Tive um bocadinho de relutância em relação ao Zoom, por exemplo. Ainda há tempos, tive um encontro extraordinário com grupo de miúdos que estudam português e vivem em Nova Iorque. Antigamente, só faria isso se me deslocasse aos EUA. As novas tecnologias ajudam muito e há pessoas que são parvas e dizem coisas como «Há invasão da minha privacidade, não quero». Ainda tenho de fazer um curso cujo título seria ‘Como utilizar o Facebook’ [risos]!

NM: Temos de ter cuidado e filtrar aquilo que é verdadeiro e falso. Mas eu é que sou avô e a Alice a neta nisto porque tenho muito medo do impacto da inteligência artificial.

AV:_Já te disse que isso não me preocupa nada porque estou velha!

Como é que eram os vossos avós?

AV: A minha avó materna já tinha morrido quando eu nasci. A minha avó paterna ainda era viva, mas vivia numa aldeola – Penados, hoje Penedos – muito longe. Chamava-se Gertrudes. Dava-me muito pouco com ela. Dizia uma coisa de que nunca me esqueci: «É preciso saúde e paz que o resto a gente faz».

NM: No meu caso, tive o privilégio de conhecer os quatro. Vivi muito intensamente com eles, mais com os paternos. Costumo dizer que eram os avós analfabetos mais inteligentes que conheci até hoje. São os meus pilares do ‘Retratos Contados’. Com a avó Vitória e o avó João aprendi a valorizar aquilo que a terra nos dá. Hoje, muitas crianças acham que a fruta e os legumes vêm do supermercado. Com os avós paternos aprendi outro tipo de conceito de vida. O meu avô esteve escondido da PIDE. Aprendi a valorizar a democracia. Quando se fala na percentagem de abstenção, lembro-me sempre do avô Alberto falar daquilo que se lutou para que o direito ao voto existisse. Com a avó Clementina aprendi hoje aquilo que se considera a separação do lixo e a necessidade de não deixar nada no prato para outras pessoas não passarem fome. E aprendi de que somos todos iguais independentemente do tom de pele, da altura, da orientação sexual, etc.

Depois de terem iniciado a vossa relação avó-neto, digamos assim, como é que decidiram escrever crónicas?

AV: Foi durante a pandemia. Passei a mandar uma espécie de carta ao Nélson, pelo Facebook, e ele respondia-me. Íamos falando. E tinha muita altura. E as pessoas até nos davam ideias para temas. A editora viu e disse que publicaria o livro. Saiu esse em 2021 e será publicado outro.

NM: Mas falta fazer um parêntesis. O ‘culpado’ de escrevermos e termos os livros é o jornal SOL. Primeiro, publicámos nas redes sociais e o jornal SOL pegou no nosso trabalho. Foi assim que começou. A primeira obra foi um sucesso e nunca deixámos de escrever.

Pareceu-lhes natural publicar outro livro tendo em conta este percurso que têm trilhado?

NM: Sim! Temos feito Portugal Norte a Sul a fazer tertúlias em centros de dia, Universidades Sénior, etc. E quando vamos para esses espaços, não vamos ensinar ninguém. Queremos ouvir aquilo que têm para nos dizer. E percebemos que o nosso livro funciona muito como um exercício. As pessoas fazem uma visita às suas memórias. E quando chegamos, mal abrem a boca. Ao fim de uns 10 minutos, todos querem falar ao mesmo tempo! E dão-nos ideias para crónicas e perguntam quando será publicado o próximo livro.

E o que podem revelar acerca do Viagem às Memórias de Portugal?

NM: Estamos muito contentes não só com o resultado final do livro, mas também com o facto de o Afonso Reis Cabral ter escrito o prefácio e o Dr. Luís Marques Mendes o posfácio. Um dos netos e um dos avós de Portugal. Tem gravuras lindíssimas: complementam os textos e levam os leitores a uma viagem. Falamos, por exemplo, do quadro d’O Menino da Lágrima ou do galinho do tempo, que decoraram tantas casas portuguesas. E da Gabriela, Cravo e Canela. No último dia da novela, a Assembleia da República fechou mais cedo para que as pessoas fossem ver o episódio!

AV: Quando tive um dos meus abortos, infelizmente tive alguns, as enfermeiras foram buscar um televisor e puseram-no na enfermaria para que toda a gente visse o episódio. Hoje, não vejo telenovela nenhuma!

NM: Por vezes, estou a falar com alguém e vejo que a pessoa confunde as personagens das novelas todas que são transmitidas. Mas queremos recordar as pessoas que, infelizmente, ainda são esquecidas em vida. Temos uma crónica que dedicamos à Anita Guerreiro e perguntam-me se ela ainda está viva! Foi uma das principais personalidades da cultura popular. Não é elitista, é transversal. Não estamos a fazer um projeto com cheiro a naftalina, mas sim um recordatório de personalidades. Não é com pena!

AV: E acontecimentos. Vivi muito o Maio de 1968 e, há uns tempos, estava a falar disso a uma pessoa e ela perguntou-me o que era e onde tinha sido. Eu estava em Paris e Charles De Gaulle decidiu falar à população. Como não sabíamos o significado de uma palavra que ele disse, a revolução parou e fomos todos a casa consultar os dicionários!

Quais são as maiores diferenças que observam entre a forma como as relações entre avós e netos eram no passado e como são hoje?

AV: Há uma relação mais normal, digamos assim. Não há o avô que manda simplesmente porque é avô, mas também não é aquele que «deixa andar». É saudável, mas há avós que têm mesmo de tratar dos netos. A vida não está fácil e os pais, para trabalharem, têm de ter alguém a cuidar dos miúdos. Não é o ideal. Os avôs e as avós que conheço são despachados, tratam dos miúdos, vão vivendo normalmente com os netos. E é preciso isso!

NM: Os netos que nunca conheceram os avós preocupam-se, através dos pais, em perceber como é que eles eram. Acho que os avós, hoje, já não são matriarcas e patriarcas como eram. Devemos respeitá-los, mas não com o medo que existia antigamente! Por outro lado, os mais velhos são velhos muito mais jovens do que os antigos! Saem para viajar, divertem-se… Já não querem estar em casa à espera de que a morte chegue! Quanto mais tarde chegar, melhor é. Até os lares já não são «depósitos de velhos» como antes e há quem vá para lá por opção!

Qual é a vossa visão para o futuro das relações entre avós e netos em Portugal?

AV: Os avós terão cada vez menos netos porque as pessoas, no presente, têm cada vez menos filhos. Mas penso que as relações não serão piores…

NM: Talvez exista uma relação com mais anos porque os avós morrem cada vez mais tarde. Embora os netos nasçam cada vez mais tarde… O governo tem de se preocupar com o futuro dos mais velhos. Voltando ao início: não sou escritor nem jornalista, mas da janela de minha casa vejo imensas janelas. Muitas das vezes, casais de velhos cujos membros cuidam um do outro. Mais tarde, um fica sozinho à janela. E, depois, surgem outras pessoas à janela. Em Lisboa, as pessoas estão muito isoladas. Há vizinhos que se vão preocupando ou… Eu não sou novo, mas sou o mais novo do meu prédio!

AV: Na Ericeira, por exemplo, tenho sempre alguém a perguntar-me se estou bem ou se preciso de alguma coisa.

NM: Falamos do isolamento numa das nossas crónicas, sobre morrer de solidão.

Há pessoas que morrem em casa e só são encontradas meses ou anos depois.

AV: Sim, é horrível.

NM: Mas há algo de que temos de falar e não tenho nenhum pudor. Por vezes, alguém morre e diz-se «Coitado, não tinha ninguém». É que temos de nos preocupar com o tipo de pessoa que somos ao longo da vida. As pessoas esquecem-se, algumas vezes, que são filhas da mãe durante a vida e parece que toda a gente tem de gostar deles quando envelhecem e cuidarem deles. Há pessoas que abandonaram os filhos!

AV: A minha mãe deu-me quando eu tinha 15 dias. Costumo dizer que sou a rapariga que saiu mais cedo de casa! E o meu pai gostava tanto tanto de mim, que eu quando estava para casar com o meu primeiro marido ele perguntou «Mas que raio é que ele viu em ti?».

NM: Tinha tudo para ser uma mulher cheia de traumas.

AV: Sim, tudo! Mas acho que isto deu-me força até!

NM: É esta a Alice que as pessoas podem encontrar na exposição que temos [a exposição Retratos Contados de Alice Vieira estará no Centro Comercial do Campo Pequeno até ao dia 15 de agosto]. A mulher jornalista, escritora, mãe, avó, a pessoa a que deram dois meses de vida quando teve cancro da mama e que já viveu mais 37 anos…

AV: Digo que tive a vida que quis, os homens que quis, vivi onde quis, tive os filhos que quis e, por vezes, vou a dizer que tive os netos que quis, mas depois lembro-me de que isso não depende de mim [risos]! Mas, se pudesse escolher, seriam aqueles que teria!