Nasceu há 62 anos na aldeia do Pocinho, Vila Nova de Foz Coa. «Da casa dos meus avós víamos as vinhas do Barca Velha em frente, a Quinta do Vale Meão, onde o meu avô fazia trabalhos», recorda. «No dia em que eu nasci, a minha mãe teve que atravessar o rio Sabor para o Douro, e o cais onde atracou chama-se Cais da Barca Velha. É daí que vem o nome do Barca Velha». Apesar desses pergaminhos, só mais tarde aprendeu a apreciar vinhos. Francisco José Viegas gosta reconhecidamente de comer e ao longo da sua atividade profissional tem juntado o útil ao agradável publicando na Quetzal livros sobre o gosto de comer e histórias de comidas. Os títulos mais recentes, que nos servem de ponto de partida para uma conversa sobre esse prazer universal, são A Mercearia do Mundo (dir. Pierre Singaravelou e Sylvain Venayre) e Uma Grande Almoçarada. O primeiro leva-nos numa viagem pela globalização dos produtos alimentares, do champanhe ao ramen, do ceviche ao parmesão; o segundo consiste numa antologia de crónicas sobre comida (e bebida) do poeta, romancista e ensaísta norte-americano Jim Harrison, falecido em 2017.
Evidentemente, a conversa não segue um trajeto linear, e dá direito a alguns desvios e paragens em locais onde se come bem.
Este livro, A Mercearia do Mundo, tem um lado muito engraçado que é de alguma forma enriquecer o nosso quotidiano. Amanhã vamos buscar um bocado de parmesão ao frigorífico e já sabemos donde aquilo vem.
Tem algumas histórias maravilhosas. Eu não sabia daquela história do ceviche. Há a lenda de que o ‘son of a bitch’ vai dar ‘ceviche’. Mas depois aquilo tinha a ver também com os portugueses que levaram para lá o peixe fermentado. Essas coisas são muito engraçadas.
São contaminações sucessivas.
Nós em Portugal temos uma tradição do século XIX até meados do século [XX] de alguns escritores comilões e com boas referências de comida. Mas depois nos anos 60 e 70 cortámos completamente.
A comida desapareceu dos livros?
Há algumas coisas, duas ou três passagens, mas é raro. Houve um período em que a comida não entrava mesmo na literatura. A cozinha era uma coisa um bocadinho suja, um bocadinho desprestigiante. E a literatura tinha outras coisas para se preocupar.
Grandes questões metafísicas?
Metafísicas, mas também políticas. A gente não vai estar aqui a prejudicar a luta dos povos…
Por causa de um prato de comida.
Claro. Não vamos interromper a luta de classes para fazer um almoço. [risos] Não havia uma grande escrita de comida, tirando as três ou quatro pessoas habituais: o Quitério no Expresso dos bons tempos, o Quito Hipólito Raposo e mais um ou dois. Ao contrário de Espanha, que tinha tipos fantásticos, que além de serem gastrónomos também escreviam bem sobre comida. Nós nunca tivemos essa coisa. Tivemos essa tradição do Quitério, uma tradição muito Aquilino…
E Camilo. É um grande admirador do Camilo.
E é engraçado que o Camilo comia mal. O Camilo não podia comer, porque estava cheio de problemas. E o Eça também tinha úlceras, mas falava de comida. Quase não podia comer o célebre bacalhau com cebola e pimentos, porque tinha grandes problemas de estômago. Dois grandes escritores que escreveram coisas de comida, o Eça e o Camilo, não podiam comer. E o Camilo era realmente esquelético e comia pouco.
O Francisco costuma dizer que nos bons livros há sempre uma refeição, fala-se de comida. Enquanto conduzia para cá, estava a pensar nas minhas memórias literárias de comida, e a primeira é d’Os Cinco. Os Cinco preparavam sempre uns óptimos piqueniques para levarem naquelas suas aventuras.
Tinham sempre aquelas quintas onde iam buscar ovos e compotas. Tinham uns cestos com farnéis fantásticos.
O Jim Harrison, de que publicou Uma Grande Almoçarada, é um caso curioso. Escreve lindamente. Mas, como hei-de dizer… ele é um selvagem, um alarve.
Aquilo é muito chocante porque a poesia dele é de uma delicadeza fantástica, muito zen, sobre a natureza… E de repente: ‘Estou a falar sobre os pássaros neste poema mas eu gosto é dos passarinhos fritos’.
Tem graça porque é um iconoclasta, está-se nas tintas para o que deve ser ou para o que os outros pensam. Ele quer é comer, beber e fumar. De preferência em grandes quantidades.
Eu vi o livro e disse: ‘Isto é uma coisa que vale mesmo a pena’. E depois a Isabel Lucas [que traduziu o livro] diz-me: ‘Eu gostava de escrever sobre o Jim Harrison’. E eu: ‘Olha, nem de propósito’. É uma espécie de um libertário, um demónio à solta. Ele tem o fascínio da comida, tem um bocadinho a obsessão da comida. E é exactamente isso que estava a dizer: é um selvagem. Um selvagem à mesa. E depois há aquelas páginas onde fala dos amigos. Por um lado, os amigos cozinheiros, de que o Mário Batali [que assina a Introdução] é paradigma. Mas depois tem os outros. Aquela conversa com o Orson Welles, a comer… Acho que pessoas como o Jim Harrison já não existem. Não quer dizer que eu tenha um fascínio tremendo por aquilo. Quer dizer que é uma experiência que, no nosso caso, acabou. Nós hoje pensamos muito na comida como uma espécie de atributo turístico das cidades, pensamo-la como um meio de elevação social… e como uma ‘experiência’. Será um bocadinho de tudo. Mas aquilo que me preocupa é como é que se escreve sobre comida. O livro do Ricardo Dias Felner [O Homem que Comia Tudo] tem uma graça tremenda porque é um tipo que não nasce gastrónomo, aprendeu a ser gastrónomo, portanto teve de estudar. E faz uma investigação sobre a sardinha. Donde é que vem a sardinha? De onde é que vêm as ostras, o que é que se come aqui, o que é que se come ali? O que é o bitoque? Essas experiências comuns. O programa dele agora na SIC é muito interessante, porque quebra uma série de preconceitos sobre a comida estranha. Acho que ele fez mais contra a xenofobia do que muitos discursos…
Ou o SOS racismo.
Exato. Aquele programa sobre a comida chinesa é maravilhoso. Vemos que eles têm alguns exageros, como o picante, mas no fundo eles não são muito diferentes de nós a comer. Nisso ele é muito bom. E depois há o Jim Harrison e este livro que me apaixonou muito, que é A Mercearia do Mundo. Para já, porque é escrito por historiadores. E tem uma característica fantástica que é todos os capítulos começarem por uma data: ‘No dia tantos do tal aconteceu isto…’, desde o molho de soja Kikkoman até ao chili con carne. Aprendi imensas coisas nesse livro, a origem das coisas, a circulação e sobretudo a ideia de que a globalização alimentar contribuiu muito para acabar com os preconceitos. O meu pai, um senhor transmontano, aos 80 anos começou a comer comida chinesa. E ao fim de duas ou três refeições já comia noodles com pauzinhos. Não tem a ver com a perda da raiz, mas com o facto de todos nós estarmos contaminados por outras tradições. É evidente que há as modas…
Os miúdos hoje são todos doidos por sushi, que é uma coisa que me faz alguma confusão.
Eu gosto moderadamente de sushi. Há dias em que gosto bastante porque apetece uma coisa fresca, crua. A minha avó fazia o que na verdade era sashimi de sardinha: o lombo de sardinha crua temperada só com limão e sal e alho. Hoje dizemos que é um carpaccio de sardinha ou um sashimi de sardinha…
Damos-lhe um nome fino.
O Ferrán Adrià tinha sashimi de sardinha no restaurante dele, mas era 40 euros.
E era parecido com o da sua avó?
Era aquilo. Quando provei sushi pela primeira vez para mim foi regressar um bocadinho a essa sardinha crua que comia na minha infância. Mas hoje vivemos rodeados de modas. Lembro-me de ver os miúdos todos completamente fascinados com o churrasco coreano. Por um lado, posso achar isso um pouquinho pateta, porque de repente começam todos a comer poke e ramen e acham que aquilo é que é a verdadeira comida. Mas na verdade não há verdadeira comida. É como quando nós dizemos: ‘Esta é a verdadeira comida brasileira’ ou ‘Esta é a verdadeira comida chinesa’. Não há ‘a’ verdadeira comida chinesa. É impossível.
Andamos sempre à procura da essência, não é?
Exatamente. Mas este livro tem histórias super divertidas. Por exemplo, o facto de Inglaterra ter decretado que o prato nacional era o chicken tikka masala.
Que é feito com caril.
E depois veio o primeiro-ministro escocês dizer: ‘Não, não. O chicken tikka masala é escocês’. [risos] Ou quando eles percebem que o Christmas pudding, o bolo de Natal inglês, é uma misturada que só deve ter duas ou três coisas de Inglaterra. Tudo o resto veio de todo o lado. Isto é uma coisa que a mim me comove, o empréstimo.
E então foi ao El Bulli, onde comeu aquela sardinha. Era considerado o melhor restaurante do mundo. O que achou?
Não foi a melhor refeição da minha vida. Fiquei sobretudo impressionado. Se aquilo era feito para impressionar, resultou. Acho que é uma grande experiência, não sei se gastronómica, mas foi uma grande experiência para a boca, porque aquilo dava estalinhos, espalhava-se… Mas nunca deixei de sentir que era uma coisa de laboratório. Por exemplo, uma das coisas que me incomodam muito é aquela ideia de que para comer nós não podemos nem fumar, nem ter comido nem bebido nada antes.
Para ter o paladar ‘limpo’.
Por amor de Deus, a comida é uma coisa social! Não é uma atividade de laboratório, não é uma atividade pura. Pelo contrário, comer é uma coisa impura. Por exemplo, a comida de rua na Ásia é maravilhosa. Não há nada menos de laboratório do que aquilo. Esse lado laboratorial da comida a mim não me fascina nada. Na história da alimentação interessa-me muito mais saber o que as pessoas comem em casa, que escolhas fazem, o que é que aproveitam, o que é que a comida doméstica transmite sobre os ingredientes, sobre a relação com a terra, sobre os gostos da família. A grande parte de nós até pode gostar dessas experiências foodie ou gourmet, mas depois do que temos saudades é de bolinhos de bacalhau, de pastéis de massa tenra, de arroz de frango, sei lá…
De coisas normais.
Coisas que hoje curiosamente se chamam ‘comida de conforto’, que é uma coisa irritante. Comida de conforto? Toda a comida tem que nos emprestar algum conforto. Se não é confortável não se come. Pode ser uma experiência…
… mas não é uma refeição. Faz muitas peregrinações gastronómicas?
Já fiz mais.
Do tipo ir comer um leitão a Águeda, uma sopa de tomate a uma aldeia perdida no Alentejo ou um cabrito num sítio específico de Trás-os-Montes.
Às vezes faço essas peregrinações para revisitar um sabor da infância – a vitela no forno da minha avó, que era costela de vitela, que é uma coisa que depois deixou de se fazer, porque era comida pobre. Ou a omelete de acelgas. Ainda vou a Moncorvo comer a omelete de acelgas. A partir de certa altura a comida é uma revisitação da infância.
E não faz descobertas?
Hoje em dia Portugal é um imenso restaurante. A indústria turística portuguesa é sol e restaurantes, portanto é muito difícil não estar sempre a fazer descobertas. E como vou com alguma frequência à Ásia, aproveito para comer coisas que não como cá. Os chineses são verdadeiramente obcecados por comida. Quando nós encontramos alguém, ao fim de uns minutos perguntam: ‘Então e o que é que almoçaste?’.
Será por terem passado fome?
É uma sociedade que passou, de facto, muitas dificuldades e a descoberta e a redescoberta da comida na China é uma coisa fascinante.
Come-se bem lá?
Come-se muito bem. Estive há um mês em Xian e Luoyang, as capitais da Dinastia Tang, e fiquei absolutamente maravilhado. Ao sábado e ao domingo ir à rua comer polvo frito, ostras ou comer os melhores dim sum de rua…
E é fácil encontrar os bons sítios? Não acontece ir ao sítio errado por desconhecimento?
Não é muito fácil comer mal. A certa altura estávamos em Luoyang e fomos comer a uma tasca onde iam os trabalhadores das obras ali ao lado. Era absolutamente maravilhoso.
Os trabalhadores normalmente sabem onde se come bem.
Acho que nunca comi noodles tão bons. É uma delicadeza diferente.
O problema da boa comida é esse: a gente habitua-se e depois já não quer outra coisa.
E eu, por exemplo, sou um bocadinho obcecado com o arroz. Já cheguei a levar arroz para a China.
Isso não é levar areia para a praia?
É, mas lá não há o nosso arroz carolino. Eu vou à China muitas vezes porque a minha mulher dá aulas em Pequim. E ela disse: ‘Ai, tenho umas saudades de um arroz de grelos…’. E eu naquele dia de manhã – apanho o voo à tarde – vou comprar grelos e levo os grelos na mochila. Depois penso: ‘Mas com o arroz deles não dá. Tem que ser com o arroz carolino nosso’. E levo arroz carolino para fazer. Mas o meu triunfo é ter feito arroz de feijão com pataniscas no Natal passado para um grupo de amigos lá na China, e eles terem ficado completamente rendidos. Comiam o arroz à colher e devoraram tudo, como se nunca tivessem comido arroz.