Estamos muito longe das chamadas sociedades báquicas, da actividade daquelas confrarias malditas que, fosse nos cafés ou cabarés, se reuniam para ali se digladiarem entre concepções desafiantes do que o mundo poderia ser, e que, entre dois copos, propunham teses licenciosas e blasfemadoras tocando todos os aspectos da vida em comum, na sociedade ou à margem desta. Ainda assim, num verão que começava a dar sinais da sua inclemência, não havendo propriamente um lugar espaçoso, recolhido, sem excessivo movimento ou ruído, onde fosse possível gravar uma entrevista, como já acontecera antes, pedimos santuário a essa igreja profana que é a Poesia Incompleta, onde um dia mais tarde viria a ser apresentada a mais recente antologia poética de Eucanaã Ferraz, “Sob a Luz Feroz do teu Rosto”, uma edição da Casa dos Ceifeiros. Tratando-se de uma recolha de “Poemas de Amores”, nesta conversa procurámos recuperar uma visão menos estreita, mais actuante do amor, algo que nos aproximasse do apelo transgressivo daqueles que o cultivaram como uma ética complexa, ultrapassando a impudência, num esforço de abrir ao indivíduo uma perspectiva unificadora dos seus mais inconciliáveis desejos.
“Quem nasce com o coração?”, interrogou Paulo Leminski. “Coração tem que ser feito./ Já tenho uma porção/ Me infernando o peito.// Com isso ninguém nasça./ Coração é coisa rara./ Coisa que a gente acha/ E é melhor encher a cara.”
Hoje o amor cansa. Trocou o seu elemento feroz e a sua perigosidade por gestos vulgares, perecíveis, hábitos estéreis, que não transtornam grandemente a vida nem daqueles que se dizem enredados nem dos que se vêem como testemunhas disso. Não há vertigem num beijo, os quartos não tremem, não abalam a vizinhança. Como nos diz Eucanaã, foi preciso inventar o espanto, e o beijo que eram bichos farejando. “Mas logo vieram as escrituras e os escritórios sagrados trazendo a hora. O verbo cortou o nosso lábio. Vieram as conjunções adversativas enquanto regras de colocação pronominal espalhavam amarguras sobre os campos de trigo. O beijo se viu no espelho e viu que eterno era uma frase como todas as outras e era também um verbo desolado sob a luz dolorosa de um lugar onde eternidade não é mais que um atributo da taxidermia.” Era suposto o amor ter sido outra coisa. E o importante era menos saber exactamente o quê do que estar aí a instigar uma inquietação, uma necessidade de sair em busca. “Os amorosos buscam,/ os amorosos são os que abandonam,/ são os que mudam, os que esquecem./ O coração lhes diz que nunca hão-de encontrar,/ não encontram, procuram”, diz-nos o poeta Jaime Sabines. E prossegue: “Os amorosos andam como loucos/ porque estão sós, sós, sós,/ entregando-se, dando-se a cada instante,/ chorando porque não salvam o amor./ Preocupa-os o amor. (…) Esperam,/ não esperam nada, mas esperam./ Sabem que nunca hão-de encontrar./ O amor é a prorrogação perpétua,/ sempre o passo seguinte, mais um, mais um./ Os amorosos são os insaciáveis,/ os que sempre – que bom! – hão-de estar sós.” O amor não sobrevive ao cinismo, não sobrevive nesta coisa que se pôs entre nós e o mundo: o cinismo. Para Eucanaã, o amor tornou-se impossível nestes “lugares onde o mundo não existe”, e vinca que “o mundo é de onde a felicidade pôs-se a caminho// e não regressa”.
Esta antologia saiu primeiro no Brasil e chega agora até nós ou foi feita aqui primeiro?
Sim, e acho que nem sairá lá.
E porquê este subtítulo “Poemas de Amores”, em vez de apenas Poemas de Amor?
Primeiro porque se eu vou pelo “Amor” a coisa fica pairando, como se eu estivesse a dirigir-me a um espírito que incorpora nas pessoas. Como se essa entidade existisse por si própria, desligada das pessoas. E eu não vejo as coisas assim. Creio que o amor acontece nas relações, com as pessoas, nas pessoas, e vejo-o como uma coisa mais miúda, nesta ordem: fome, sede, tristeza, cansaço, alegria… amor… e assim sucessivamente. Assim, o amor é mais uma das nossas doenças diárias (risos). Queria fugir desse lugar uno, dessas alturas em que se coloca o Amor, e amiudá-lo, colocá-lo ao nível dos dias… Mas isto ocorre também porque ao ler os poemas vi que eram amores, eles contêm situações, têm personagens, narrativas ou cenas, por isso, estes amores estão misturados com a tristeza, o ódio, a traição.
Poderia dizer-se que o amor está para o conteúdo dos poemas do mesmo modo que o soneto está para a forma. Ou seja, é um desses temas clássicos da poesia. Nesse sentido, o que é curioso nesta antologia é o facto de, pressentindo-se que a sua escrita a todo o momento pesa e leva em conta o embalo da tradição, pois ela não fala apenas dos motivos próprios da sua vida, depois também vem glosar e burlar esse soneto, ou seja, o amor, levando-o por caminhos menos óbvios, desafiando-o e à ideia que dele fazemos. Provavelmente quando escreveu estes poemas não disse para si mesmo: vou escrever um poema de amor. Mas numa situação em que se vê tomado pela fome, a paixão, o desejo, percebe-se também que há sempre nos seus poemas essa relação mais vasta com outras referências, seja da música, da literatura, com a experiência dos que vieram antes… Por isso queria perguntar-lhe como é hoje escrever um soneto, nesse sentido, como é que se fala de amor, e se busca uma variação?
Antes de mais, a minha ligação com o tema é anterior ao soneto, ou seja, às formas clássicas que são próprias da literatura, dos livros. Ela vem da canção popular. A minha mãe cantava e canta muito bem. E desde garoto eu gostava que ela cantasse para mim. Sou filho único, e por isso tinha a mãe toda para mim. Gostava de ficar no colo dela, e ela fazia aquele carinho, o que nós chamamos cafuné. E eu pedia-lhe sempre que ela cantasse, qualquer coisa. E eram sempre canções de amor aquelas de que ela se lembrava. Era o que se chamava música de fossa, músicas de sofrimento amoroso. Canções que falavam de traição, vingança, ciúme… Eu era criança, e não sabia o que era Bach, como não sabia o que era traição, ciúme, nada disso. Mas aquilo repercutia em mim e que vinha desse conjunto: da voz da mãe, do ritmo da música, o encantamento e o encadeamento daquelas palavras, da melodia, e ainda tinha o cafuné. Então aquilo era bom. Fui-me formando ouvindo essa poesia falada, cantada, e estava sempre lá metido o tema do amor. Assim, quando cheguei à poesia dos livros eu tinha já uma sensibilidade formada. Por isso, o tema amoroso sempre foi uma coisa que emergia de forma muito espontânea, e anterior a essas noções clássicas. Pelo contrário, quando cheguei aos livros senti falta até dessas canções de amor. Tive a impressão de que se falava pouco de amor. Depois percebi que não, que havia toda uma tradição de lírica amorosa, e que a poesia de tradição bem popular, não estou a falar de Caetano Veloso e Chico Buarque, mas de uma coisa anterior, bem menos culta, mas percebi que estava tudo ligado, porque depois também estes músicos iam ali beber. Havia os boleros mais simples e depois essas canções mais sofisticadas, reunindo mais elementos. Pode-se dizer o mesmo de um soneto do Camões… Percebi que não havia uma incompatibilidade entre isso e as formas mais simples, menos educadas. Eu dou-me conta disto quando era muito jovem, quando comecei a namorar, na altura em que o amor deixa de ser um tema literário, musical, e se transforma numa experiência vital. Mas também me apercebi que, de certo modo, era um tema um pouco mal visto por parte da poesia contemporânea. Alguém me dizia um dia destes que os poetas mais novos preferem passar ao lado, não tocar directamente, pelo menos, na questão amorosa. E talvez por se relacionar imediatamente com esse formalismo, como seria escrever ainda em sonetos. Mas então eu acabava de fazer um livro inteiramente fora do radar, deslocado face ao mapa da poesia contemporânea, porque eu próprio me surpreendi ao ler estes poemas e dar-me conta de que é um livro alentado, e ainda deixei algumas coisas de fora. Não está aqui tudo. E a surpresa foi perceber que ao longo dos livros é muito expressivo o número dos poemas que andam em torno de experiências amorosas. Assim, acho que há em mim esse leitor da tradição, mas tem muito a ver com o leitor da tradição modernista, e um poema que para mim tem uma importância decisiva é aquele do Oswald de Andrade, aquele cujo título é “Amor” e depois tem um verso de uma só palavra: “humor”. Um poema de duas palavras, e uma delas é o título. Talvez seja o menor poema da língua portuguesa. Por comparação, um haiku torna-se uma odisseia. Mas nesta síntese e que nos lembra que a rima para o “amor” não tem que ser “dor”, pode ser esse “humor”, que nos leva a dar uma volta noutro sentido, e até por cima dessa ideia feita. E assim se dá um outro nó, e vamos ter ao Mário de Andrade ou ao Manuel Bandeira, e eu estou muito ligado à poesia destes tipos, para quem o tema amoroso não é algo castigador, ligado à melancolia, nem à grande tradição, mas é um tema que reflecte a experiência diária, quotidiana, e que pode ser tratado com graça. E há até, neste livro, e não sei se você reparou, uma coisa para a qual alguém me chamou a atenção certa vez: “acho que você recupera para a poesia essa coisa que é o melodrama”… Eu fiquei a pensar nisso, e devolvi: “É, talvez seja isso.” Quem me disse isto não foi uma pessoa qualquer, foi o João Moreira Salles, o cineasta. E sendo alguém do cinema, ele estava especialmente atento a essa modulação, pois estava a pensar nas clássicas fitas melodramáticas mais populares. E, então, quando fui organizar este livro, a primeira coisa que eu quis foi trazer o melodrama logo para a abertura do livro. Claro que é uma provocação, pois seria mais polido e mais refinado se eu começasse com poemas com uma maior elaboração, e que não tocassem esse tom do melodrama, que é kitch, tem humor, um vocabulário mais rude, tudo é mais rebaixado. E aí um outro amigo, a quem eu mostrei o livro, e disse: “vou começar com estes poemas”. E ele disse: “Não sei o que é que os portugueses vão achar.” (Risos). E ele acrescentou que aqueles poemas lhe lembravam os filmes do Almodóvar. E até me lembrei que um dos poetas que eu mais amo, que é o Eugénio de Andrade, tem uma entrevista… Eu adoro as entrevistas dele!, que têm muita verve, e onde ele exprime às vezes uma grande irritação…
E numa delas ele diz que odeia o cinema do Almodóvar.
Sim, tem uma lista lá das coisas que ele odeia. E se para mim está na cara que ele não ia gostar do Almodóvar, sendo aquilo o anti-Eugénio de Andrade, no meu caso eu amo Eugénio de Andrade, eu amo Almodóvar. Para mim essas coisas não são incompatíveis.
Antes de mergulharmos mais fundo na sua abordagem pessoal, acho que uma vez que tratam deste tema é uma oportunidade que vai rareando de abrirmos um pouco esta questão. Porque o amor, como ele era tratado a partir do século XVII, XVIII e XIX, mesmo no século XX, se pensarmos nos surrealistas, era uma utopia, era uma grande questão política até, e uma cunha que se intrometia na questão moral. Hoje em dia, pelo contrário, vemos como há uma série de coisas a torpedearem essa afirmação do amor como uma luta, algo que assume uma expressão individual e subjectiva, mas que tem depois transcorrência e um alcance social, um efeito transformador, um elemento combativo. E, assim, podemos chegar a questões tão prementes hoje como é o aborto, e todo este reaccionarismo que hoje procura levar-nos de volta aos valores tradicionais, e à religião que se assume abertamente como uma forma de perseguição, procurando ditar uma vez mais os costumes, legislar sobre os comportamentos, as atitudes, proibindo isto e aquilo. E o que é curioso é que, ao mesmo tempo que uma figura como o Bauman fala no “amor líquido”, aquilo de que nos apercebemosé que o individualismo actual, ligado à lógica do consumo, levou a que as pessoas se atomizassem e passassem a ver no amor apenas uma questão pessoal, quase uma confissão particular, quando, na verdade, o amor está no centro da luta política. E se formos ver quais foram os grandes autores que aprofundaram e desbravaram este tema, como o Restif de La Bretonne, o Sade ou o Laclos, entre outros, e que se deram conta de que a questão amorosa é decisiva para pôr em causa e dinamitar as pressões de ordem moral. Hoje em dia, por outro lado, abriu-se mão da ideia do amor como utopia e este perdeu o seu conteúdo político, e se calhar é por aí que chegámos a esta perspectiva cínica em relação ao amor, a ponto de os poetas contemporâneos considerarem que se trata de um tema piroso, contornando-o ou evitando, talvez porque se dão conta que todo o conteúdo que resta hoje ao amor é apenas como uma estética ou uma etiqueta, uma mera habilidade de sedução, e que foi ficando ligado ao kitch por não resistir qualquer conteúdo de luta, de disputa social. Por exemplo, há um verso seu em que diz que os dois, os amorosos, foram juntos comprar os cigarros. Ou seja, não houve um que abandonou o outro sem dizer nada, mas foram os dois que desapareceram de vista, sem se despedir. Ou seja, ali o amor não é uma prisão, mas é uma fuga. Eles dois fugiram do quotidiano juntos. Mas nos nossos dias parece que o amor foi capturado pela moral, e aqueles que se amam, necessariamente casam, constituem família, têm aquela vida típica, que o mesmo é dizer: já se lixaram. Viram-se metidos no frasco, engarrafados. Ora, esta ideia do amor como o sumo do dia, não têm nada a ver com o amor louco dos surrealistas. Ou seja, o que eu gostava de perceber é se o Eucanaã reconhece que esta postura cínica em relação ao amor, da parte nomeadamente dos poetas contemporâneos, não é revelador menos da própria visão que se tem do amor, mas da forma como se abdicou desse elemento transformador, utópico, contestatário, agressivo, de um amor que liberta as pessoas, como acontece no caso de Romeu e Julieta, em que os dois querem que se danem os constrangimentos familiares e escolhem-se um ao outro, contra o mundo se preciso.
Preciso de fumar um cigarro para te responder a isso. Tem um isqueiro?
Não.
Changuito, empreste-me o seu isqueiro, por favor. (Pausa). Você fez uma explanação tão larga que eu nem sei por onde lhe pegar…
Mas se calhar isto no Brasil ainda está mais presente, no momento actual, uma vez que ali os movimentos evangélicos estão claramente a servir-se dessa retórica moralista para fazer recuar os direitos e as liberdades, a ponto de se dar cabo do amor, voltando-se ao século XV ou XIV, em que era preciso inventar outra vez o amor para dizer à Igreja e a esses sistemas de opressão que vão ter de ficar atrás dessa linha. Ou seja, nós reclamamos esta vida, e não essa outra relação com o paraíso e uma existência eterna qualquer.
Não sei bem como te responder. Acho que o Amor (e temos de seguir falando como se a gente soubesse o que é isso – porque a gente não sabe, mas finge que sim para as coisas andarem, para poderem ser faladas, tocadas, pensadas…), de algum modo ele está diluído numa grande massa em que tudo é colocado a par, de forma homogénea, e sem esse valor de transformação do mundo. Realmente, perdeu-se o sentido, utópico, transformador, revolucionário… Mas se o amor não o tem, podemos perguntar que outro sentimento produz hoje algum tipo de fissura, de electricidade…? Parece que tudo vive submetido a essa espécie de roldão que não deixa margem a qualquer tipo de relevo diferenciador. Basta pensar na própria poesia, não a palavra, mas no aspecto mais material, que circula, mas circula do mesmo modo que tudo circula, sem nenhuma possibilidade de causar a menor agitação, e assim ficamos diante de um lago, uma superfície imperturbável. Não vejo erguer-se nenhuma onda. Ao mesmo tempo, eu tenho já uma certa idade, e, então, afectivamente, sexualmente, intelectualmente, penso que os meus pensamentos sobre estas coisas se formaram tendo como pano de fundo os anos 70, 80, e lembro-me que nessa altura os casais gays – e, então, havia apenas essa palavra, “gay”, era um nome que dava conta de tudo, de qualquer desvio à norma, não havia essas siglas e etc. –, o amor gay, as relações gays, procuravam sempre romper com a família, com o formato convencional, heterossexual… A família reprodutiva, portanto, produtiva, totalmente prevista, dentro do sistema, reforçando economicamente as expectativas, e que era por isso o mais desejável. Família, propriedade, produção, repetição, é isso, vamos chamar tudo isto de repetição, é esse o grande valor. Ora, face a isso a emergência da condição gay era em si mesma algo de revolucionário, e lembro-me que tudo aquilo que eu lia sobre o assunto ia nessa direcção. Parecia que se estava a inventar, ou, pelo menos, a ganhar expressão, uma coisa realmente nova e que ia abalar as fundações desse mundo. Pelo contrário, nos nossos dias, a grande demanda, não propriamente a heterossexual, mas aquela que correspondia à postura gay, que hoje já se declinou numa incontável série de variantes, vai na direcção de um aprofundamento dos direitos civis, e tudo isso está correcto, são valores correctíssimos, mas que, simultaneamente, levam a que aquela possibilidade de transformação do sistema seja inteiramente engolida pelo sistema. E então hoje vemos esses dois homens que casam, têm filhos, têm a casa, e depois os filhos procuram o mesmo, e voltámos aquele princípio de repetição, e fica outra vez tudo igual. Então, o que é que se construiu de novo? Tudo o que há de novo nos nossos dias é a possibilidade de se ser igual ao que já havia antes…
Ou seja, são apenas pequenas variações dentro do quadro da normatividade. Se se questiona o hétero, já não se questiona o próprio regime da normatividade.
É, a normatividade está igual ao que era. O formato da família, o formato económico, o formato ideológico, afectivo, está tudo exactamente igual. São os mesmos valores… Como é que se diz quando uma pessoa está casada com outra e não pode ter mais parceiros?
Não pode cometer adultério, tem de respeitar o ideal da monogamia…
Pois, é a “monogamia”… A palavra é tão chata que eu nem me lembro dela. Então é a isso que estamos presos: à família, à monogamia… Fica tudo igual. Parece que estou a ouvir os meus avós, se é que eles falavam assim.
E é curioso que mesmo a violação do pacto de monogamia faz, normalmente, de uma pessoa um bígamo, ou então simplesmente um ser dissoluto.
Sim, tardam em surgir outras palavras, a própria linguagem fica tolhida, e como não se pode dizer, fica tudo por referência à norma, mesmo quando a rejeita. E nesse sentido parece que quando se fala de amor, também este entrou nessa mesma massa indiferenciada, faz parte um mesmo sistema que torna tudo muito semelhante. Quanto à questão do kitch, de que você falou, acho que há nele uma energia a que eu não quero fugir quando o vejo, e que está presente nos meus poemas, e que passa por romper um pouco com a representação do amor, das relações amorosas, elevando-as sempre a um patamar lírico, respeitável, nobre, onde tudo aspira a uma dignidade que me parece que acaba por sufocar este sentimento, quando me parece que nas relações não há nobreza nenhuma, o que há é o combate no, e contra, o quotidiano, e para se chegar à vida temos de passar pelos dias, pelos problemas que estes nos colocam… E acho que isto enriquece a nossa perspectiva do amor. Mas no que respeita à poesia, essa nobreza não interessa. Basta que as coisas partilhem um mesmo chão. O que importa é a vibração que nele se sente. Por vezes é preciso gerar algum tipo de terramoto.
Em Portugal, o primeiro livro da colecção forma, da Presença, que teve uma importância muito grande na edição de poesia, a par dos Cadernos de Poesia, da Dom Quixote, foi um livro de Daniel Filipe chamado “Invenção do Amor”, e esse livro ia buscar aquele registo próprio dos manifestos das vanguardas para nos lembrar que o amor ainda tem de ser inventado, como se essa fosse uma tarefa essencial do poeta em cada época. E é curioso como o célebre poema de Éluard à Liberdade, começou por ser um poema de amor, mas o nome da mulher a quem era dedicado teve de dar o lugar à exaltação da Liberdade, mas havia essa consciência de que o íntimo tinha uma reverberação social e política, e que aquilo que acontecia no quarto rapidamente podia chegar ao parlamento, às ruas, onde quer que fosse. Nesse sentido, e para analisar aquilo que disse sobre o amor ser hoje estranho à poesia, não acontecerá isso por a poesia ser pensada meramente como um discurso de ordem estética, e não lhe ser atribuído qualquer papel na invenção do próprio discurso desejante, da luta que deve ser travada no sentido da renovação da vida?
Sim, é o que me parece. Acho que em grande medida a poesia se transformou numa matéria universitária. Sobretudo isso, e vejo também como isto se normalizou, como as pessoas reconhecem isto sem nenhum incómodo. Parece haver até um certo cinismo na forma como se estabeleceu essa ligação, como se a poesia estivesse condenada a ser uma matéria universitária. Não acompanha esta constatação sequer o lamento, uma insatisfação por a poesia ter caído sob a alçada da universidade. Um assunto que foi apropriado e reservado à discussão entre universitários, sendo, por isso, uma matéria académica que ali circula, e só. Não sei se você costuma ter essa sensação, mas sabe quando você lê um livro e sente que este foi escrito para colher os elogios de um determinado grupo, para cumprir com um plano de recepção. É um livro que já tem um endereço, e quando se chega aí a matéria amorosa não interessa porque está fora desse quadro de avaliação.
Não faz parte da matéria curricular…
Sim. E aquilo que está na matéria curricular o que é? A metalinguagem, a intertextualidade, não sei quê… Ou é isso, ou então há esta coisa que no Brasil hoje vigora plenamente que é o quotidiano como um relato, que me parece que é já um resultado da difusão dos textos nas redes sociais, e que está ligado à irrupção das vozes de sujeitos antes invisibilizados, e que querem reclamar espaço, aparecer, contar sobre as suas experiências, representar a sua classe social, mas tudo isso cede a um relato que, no Brasil, chega a confundir-se com o discurso próprio dos grupos evangélicos… E não é que os evangélicos hoje estejam a escrever poesia, mas é essa ideia de que um relato pessoal deve reclamar também o espaço de expressão artística, um pouco como se fôssemos transportados para as sessões dos Alcoólicos Anónimos, parece que todo o mundo virou alcoólico anónimo, e vem aqui contar a sua história. “Eu bebia e não sei quê, mas agora quero parar…” É uma maneira de todos ali se reconhecerem e identificarem, lutando por uma melhoria das suas condições de saúde, por se desligarem de algum vício, e, é claro, eu desejo que os alcoólicos tenham sucesso nesse esforço de largarem a bebida, e que tenham saúde. Nada contra os alcoólicos anónimos, mas às tantas parece que isso já contaminou até a poesia, onde estão todos a contar a sua vida para encontrar reconhecimento dos pares, conseguindo encontrar eco através desse elemento de identificação, e que garante que os leitores vão ficar satisfeitos por também eles se reconhecerem… Mas eu acho que a poesia não era isso. A mim sempre me interessou buscar algo que não fosse igual a mim. Quer dizer, vamos então reduzir a poesia a isto? “Nossa eu li um poema, ele exprime isto e aquilo, e eu penso tal e qual.” Isso não me interessa nada, eu quero é outra coisa, que não tenha nada a ver comigo. Eu quero ler algo que me faça sentir desde logo que aquilo não sou eu. Aquilo tira-me do lugar, obriga a uma deslocação, puxa-me para dançar num outro ritmo, faz-me ver uma cor que eu desconhecia, uma forma que me era estranha, à qual eu não tive acesso até então. Mas essa busca incessante de reconhecimento tem levado a duas coisas. Por um lado, uma poesia extremamente ensaística, essa totalmente dirigida ao ambiente universitário, e, por outro lado, há essa poesia do relato pessoal, sem nenhum tipo de filtro estético, literário… sem oficina. Neste sentido, talvez eu seja um poeta à moda antiga, mas para mim a poesia é antes de mais oficina. Mas para mim não é por ser a poesia, o próprio trabalho de fazer um livro é uma oficina, desde os elementos de composição, coser o papel, encapá-lo, é preciso uma oficina para se chegar àquele objecto. A oficina não é um exclusivo da poesia, é uma necessidade de tudo aquilo a que damos forma. O copo tem de levar água à tua boca sem se quebrar na mão. Não percebo assim uma certa ideia de que um excesso de trabalho oficinal possa alguma vez ser entendido como um pecado mortal para a poesia, como se isso excluísse alguém e, portanto, fosse algo a abolir.
Tudo isso remete para a ideia da poesia como a relação daquilo que emerge numa forma, do fazer, e, portanto, de um efeito de artesania. Às tantas parece que a arte se considerou de tal modo inspirada que podia prescindir desse conhecimento das formas, desse artesanato de ordem verbal.
Exactamente. E aí jogou-se isso fora e ficámos com outra coisa, ficámos com a defesa desse ideal da oficina, mas sem a própria oficina. Mas seria necessária uma aliança renovada entre os princípios e os meios. E não é que isto me guie como um programa ao escrever poesia, mas quando eu acho que alguma coisa que escrevi dá certo é quando me parece que fui capaz dessa aliança. Muitas vezes falho, e posso fazê-lo caindo tanto para um lado como para o outro. No meu caso erro demais quando os poemas ficam com cara de oficina, a um ponto em que me parece que a oficina já atrapalha. Releio um poema e penso: isto só tem oficina, por trás disso não há mais nada. Outras vezes leio um poema e sinto: isto aqui está confessional, meloso. Isto aqui é daquele dia… Sabe quando há uma coisa que te atinge e você fica dominado e não consegue vencer um facto, um acontecimento? Assim, eu erro entre os dois pólos. Outras vezes acho o hemisfério, e é quando a coisa acerta. Mas é difícil.
Um aspecto curioso é que o amor romântico como ele é formulado pelo Petrarca surge como uma conspiração ultra-intelectual, mas que acabou por ter uma influência formidável no contexto da cultura popular, de tal modo que, hoje, mesmo sem se dar conta disto, em algum grau aquele conceito foi impregnando os usos culturais e sociais, e todos melhor ou pior o glosamos. Mas aquilo que muitas vezes se esquece é que o elemento crucial e que marca a novidade daquela poesia foi a introdução da subjectividade, de tal modo que cada sujeito inventava a relação amorosa, muitas vezes em contradição com o amor como este vinha previsto nos costumes sociais da época. Ou seja, o que a poesia petrarquista nos diz é que o amante transforma a própria ideia do amor. Mas, tendo em conta o que o Eucanaã nos diz, parece que hoje o sujeito já não é capaz de desviar e transformar as convenções, mas como essa figura imbecilizada que se limita a relatar a sua biografia, e em vez de procurar transcender as suas circunstâncias e assumir um alcance universal, amarra-se ainda mais a elas, e assim a experiência em vez de alimentar a sua visão do mundo torna-se o seu cárcere, e o sujeito morre dentro da sua biografia pois parece estar obrigado a comunicar apenas as coisas com as quais se identifica. Ora, esta identificação mesquinha dá cabo da poesia, pois a poesia busca esse valor de transcendência, a liberdade do sujeito que contém em si multidões. E o mais curioso numa antologia como esta é o ser tão difícil situar o sujeito, pois a voz e o poeta não são identificáveis de imediato. Estes amores apontam para vidas, cada amor pede uma vida. E essas vidas são possibilidades poéticas. Isto contradiz esse efeito de deserção do amor, como se este já não fosse um elemento de recriação do sujeito.
Sim, e em consequência disso, o amor fica relegado às canções mais banais, que acabam por repetir sempre as mesmas frases e ideias. Parece-me que também a canção popular abdicou do seu potencial de invenção, seja de ordem formal, musical ou existencial. Assim, ficamos enclausurados nesses ciclos repetitivos, extenuantes. E se o problema ainda fosse só que isto atingisse a poesia, que tivéssemos algumas gerações mais pobres ao nível da produção poética, isso ainda era o menos, o mais grave é que isto atinge isso de que você falava, a subjectividade. O que fica em causa é o próprio sujeito, ou seja, isto atinge cada um de nós. Você estava referindo o Petrarca, e a questão é que nós beneficiamos da poesia dele mesmo sem nunca o termos lido, do mesmo modo que hoje toda a gente vive falando que isto e aquilo está no seu inconsciente, e também nunca leram Freud, mas estas noções são de tal modo influentes que se disseminaram, têm um impacto e um alcance de tal ordem que acabam por estar na água que bebemos todos os dias. Hoje, todos se põem a interpretar o sonho do vizinho, da mulher, da mãe, eu sei lá. E porquê isto? Porque isso é uma verdade muito poderosa. E a questão que se põe é a que nível estão hoje a surgir estas novas ideias, conceitos que depois vão impregnar a cultura como um todo, colocando-nos em movimento, deslocando-nos face às noções que tínhamos antes? Como o amor… Este é que me parece ser o problema, pois de algum modo os afluentes parecem ter secado. E se o amor romântico do Petrarca disseminou a ideia do amor como uma possibilidade de transformação daqueles que se amavam, e isto se transformou quase numa arma no sentido de afectar uma mudança nas nossas vidas, tenho dificuldade em perceber onde estão estes quadros de criação artísticos que possam vir a irrigar a cultura num sentido mais abrangente. Não consigo encarar isto com uma distância irónica. Na verdade, acho lamentável que as coisas estejam como estão. Tudo muito compartimentado… E se o amor se confunde com a questão erótica e sexual, e por aquilo que me vão contando as pessoas, sobretudo as mais jovens, no que toca à experiência com os sites de encontros e relacionamentos, onde cada pessoa diz antecipadamente o que é que ela faz na cama, quais são as posições, o tipo de sexo ou fantasias que quer realizar, isto para que a outra pessoa já saiba ao que vai, e pense a questão de compatibilidade desta forma. Eu estou muito velho, acho isso uma loucura… Quer dizer, não tem nenhuma possibilidade de surpresa, já se parte para a coisa como um contrato. Mas ali era precisamente a hora para a qual a pessoa ia sem lhe ser possível prever o que ia acontecer, era preciso ir para inventar tudo ali e na medida do encontro com o outro. Mas agora não, agora já sabe antecipadamente ao que vai, e o que acho é que assim fica tudo muito chato, pois já há esse acordo prévio e cada um vai representar um papel. Isto não dá margem alguma à surpresa. Você junta sexo e tédio…? Mas é o contrário: sexo é diversão, não pode ser tédio.
A crítica que é feito tanto da cultura como do sistema económico já começa a levar em conta a prevalência das perturbações mentais, as questões da miséria afectiva e miséria sexual, ou seja, surgem cada vez mais elementos estatísticos que traçam um retrato deprimente sobre a vida íntima e sexual nas gerações mais novas, o que quer dizer que há um preocupação pelos efeitos da atomização social que levam a que os jovens iniciem a vida sexual cada vez mais tarde, os casais não mantenham uma vida sexual activa, etc. Começa a ficar claro como por trás da cortina ou debaixo do véu casamenteiro, há um deserto a perder de vista. E se em anos recentes alcançaram grande repercussão ficções como As Cinquenta Sombras de Gray, que significou um movimento de grande interesse pelas práticas de BDSM, vemos como tudo foi no sentido desse regime da contratualização dos comportamentos sexuais, e muitas vezes o que parece é que as pessoas vêm com as preferências formadas pela frequência dos sites pornográficos, e estes são o Petrarca moderno, que servem às pessoas não variações propriamente líricas, de ordem mais sentimental ou ideal, mas uma série de variações do próprio coito, e depois dessa formação as pessoas seguem para os sites de relacionamentos apenas para reproduzirem esse catálogo. Ou seja, os sites de encontro servem cada vez mais a essa procura de realizar as fantasias de acordo com o consumo solitário de pornografia. Assim, temos estas perversões por catálogo, que seria algo como olhar para o UberEats e escolher qual é a comida que se quer dentro de um raio de uns quantos quilómetros, e isto vale para a posição sexual tendo em conta a disponibilidade de parceiros nas redondezas. Ou seja, não se experimenta nada, não há propriamente uma exploração e uma gastronomia de ordem sexual, porque não importa a confecção, a descoberta, o erro, mas apenas as categorias. E a par disto temos esses quadros de monogamia em que o sexo se torna uma ocorrência ao nível dos aniversários e de outras datas especiais, ou vai obrigando a formas de suborno de um ou de ambos os parceiros. Isto porque não havendo uma invenção das práticas amorosas, não se multiplicam os caminhos que levam aos actos sexuais. O sexo torna-se uma ocorrência de ordem quase meteorológica. Tem de se esperar que estejam reunidas as condições ideais para que se dê essa tempestade.
Ou então há uma prática tão vazia de sentido e de risco que se torna uma coisa mecânica, e que então até pode ser diária, momentânea, e que não altera seja o que for. É o reflexo desse gesto bastante cínico de pegar no telemóvel e ver que há uma pessoa a não sei quantos metros ou quilómetros que está disponível, e então marca-se um encontro, vocês trepam e a coisa está resolvida. Até outro dia. São comportamentos ditados pela conveniência e ao abrigo das circunstâncias. Se a pessoa estiver a 50 metros, um quilómetro, dá para ser, se for mais longe, já complica os horários. Mas havendo disponibilidade até se pode ir para a cama com alguém, não interessa quem, todos os dias. E, então, sim, estamos perante algo de ordem meteorológica, que tanto pode ocorrer uma vez a cada cinco anos ou todos os dias. Mas são sempre a mesma coisa, porque não oferecem nenhum risco. E não estou a falar do risco de você adquirir uma doença sexualmente transmissível, mas digo o risco de você se apaixonar por alguém. O risco de você cair dentro do olhar de outra pessoa e sentir que precisa daquilo, e mudar de vida para se encontrar com essa pessoa amanhã e no dia a seguir e no seguinte. Esse risco não ocorre porque não se dá tempo e, embora as práticas pareçam tão diferentes entre si, acabam por equivaler-se. São conexões que não mudam o sentido nem as regras do jogo. E quando você procura trazer algo de novo ou de diferente logo sente a rejeição. Lembro-me que há uns anos publiquei um livro com o título “Sentimental”. Era uma provocação porque eu estava farto dessa poesia higienizada, livre de qualquer sujeira afectiva, e não suportava mais que as pessoas lessem os meus livros e me chamassem de “arquitecto dos versos”, como às tantas se tornara um hábito, de forma a assinalar o facto de eu escrever de forma elaborada, angulosa e tal. E a mim irritava-me que ninguém visse para além disso. No fundo, quando a crítica já tem o seu chavão ou etiqueta, já não a larga. No fundo, a crítica só vê o que quer. Ou o que pode. Como senti que ninguém estava a ver mais fundo, senti que tinha de explicitar esse outro lado, e então decidi que o livro seguinte ia chamar-se “Sentimental”. A partir de agora não é possível que as pessoas passem ao lado disso, pensei. Todos aqueles a quem falei disto me desaconselharam (risos): “Você, ‘tá louco. Não faça isso!” E porquê? Porque sempre que você encontra um livro, um filme, uma obra qualquer que tem um pouco mais de densidade afectiva você elogia-o, mas sente a necessidade de alertar: “mas não é sentimental”. Ai que alívio: isto é bom mas sem sentimentalismos. Fica tranquilo, pode assistir. Eu quis fazer o contrário: este é sentimental. Se quer outra coisa, vai procurar noutro lugar, porque este é mesmo sentimental. É claro que se for ler os poemas, não é só isso. São poemas, a oficina está toda lá. Mas eu queria chamar a atenção para esse aspecto, porque me parece que no limite é isso que a poesia, aliás, que a arte pode dar-nos. Alguma coisa que sobressalte o seu espírito, que te deixe insatisfeito, que sopre para dentro de ti algum sonho, desejo, nem que seja um pouco de silencio. Alguma coisa que você não encontra já todo o dia e a toda a hora em todo o lugar. A poesia tem de sair desse curso do que ocorre todo o dia e em qualquer lugar, porque se o que você busca é confirmar o que já traz consigo, aí não vai transformar nada. E se é suposto o amor ser uma coisa tão superior, tão nobre, tão perfeito, a sensação que dá é que se fica sem acesso a ele, fico tão distante ou apenas a bater à porta, que nunca se abre… É a mesma ideia de que se você não puder ler Goethe no alemão, não vai ter acesso à verdadeira poesia. Se não puder ler Shakespeare no original não vai ter acesso ao verdadeiro teatro. “Você não lê Sófocles em grego? Coitado!” É preciso encontrar alguma coisa que esteja ao seu alcance. Eu acho que a canção popular foi isso para mim. Tive acesso a uma coisa que era poesia de verdade. Muito cedo me surpreendi com as coisas que a minha mãe cantava. Sempre me vem uma mesma memória… Uma imagem de uma canção da Dolores Duran: “as flores na janela sorriam e cantavam por causa de você”. E eu ficava com aquilo na cabeça… Como é que a flor sorri… e cantava? Como é que flor canta? Flor não canta. Mas ali era lindo. De algum modo eu entendia ainda que não correspondesse ao que via quando olhava para uma flor. Era como se houvesse um descompasso entre o mundo e aquilo que a canção dizia. E às tantas eu perguntava como é que eu podia entender uma coisa que não dizia respeito ao mundo, que acontecia na música, que de certo modo só acontecia entre as palavras. Então as palavras podem criar determinados mundos que não são reais. E daqui não se segue que isto tenha sempre que nos levar a uma longa dissertação sobre a mimesis, mas perceber como estes elementos fazem parte da compreensão mental e existencial de toda a gente. Não é privilégio de classe nenhuma, isto está na circulação universal. O que sinto é que esta tem vindo a empobrecer por falta de exemplos mais audazes. E que esta farra tecnológica, que estamos a viver, é muito empobrecedora, e, no fundo, é cafona, é triste, é uma coisa sem vitalidade, sem força transformadora. Eu amo Lisboa, e vivo dizendo isso, que adoro esta cidade, e já venho aqui há mais de 20 anos. Assim, apanhei a mudança, a transformação. E muito meu gosto por Lisboa é a memória da cidade que eu conheci, é uma memória literária também, e, por isso, para mim Lisboa liga-se aos seus autores, ao Fernando Pessoa e outros, uma cidade que eu quis conhecer depois de ter vivenciado numa série de autores tão importantes para mim. Quando cheguei aqui era como ser transportado magicamente para aquele mundo que eu tantas vezes imaginara. E das últimas vezes que vim ainda sentia esse efeito mágico, mas nesta semana, pela primeira vez, fiquei um pouco chocado com a sensação de parque temático. Hoje Lisboa já parece uma imitação de Lisboa. Ali o Chiado já me pareceu de uma cafonice completa. Tudo é falso. Quanto mais as coisas procuram transmitir um elemento de pitoresco, de algo de tradicional, mais falsas se mostram. Assim, a cidade está transformada numa máquina de trituração da memória. Eu acompanhei este processo, mas acho que estava em negação enquanto foi possível. Mas esta semana tudo se tornou demasiado gritante, a cidade esfregou nos meus olhos a sua descaracterização. Há um tal excesso… Tudo, todos querem chamar a nossa atenção, todos querem vender alguma coisa, e isso fez com que a cidade hoje seja um imenso shopping. Como todos querem vender, todos têm um produto, todos se especializam numa contrafacção qualquer de ordem gritante, e tudo preciso ser cada vez mais colorido, mais brilhante, mais ruidoso. E quem aqui chega vem para ver estes produtos, e, por isso, é preciso criar um regime de trânsito permanente, e então a cidade fica tomada dos tuk-tuks, desses calhambeques, esses autocarros, tudo colorido, e é tudo feio. É a primeira vez que eu faço esta apreciação da cidade, porque é a primeira vez que foi levado a sentir isto. E nem sei porque é que fui levado a falar de Lisboa… Talvez porque estava a falar da farra tecnológica, que, no fundo, é uma farra do mercado, uma superfície em que tudo está à vende e se vende compulsivamente. O próprio turista quer confirmar essa ordem que o confirma a ele. A cidade é um reflexo do turista. Dessa ânsia daquele que quer comprar um reflexo, como se a própria cidade tivesse sempre estado à espera dele. E o amor caiu nisto, é mais uma mercadoria. Agora aqui não. Este livro pode ser mais um produto à venda aqui ou na Fnac, mais um produto despejado na corrente, mas quando olhe este livro ou outros, a experiência a que ele nos obriga é diferente.
Um aspecto diferenciador da sua poesia é o não estar sempre a remeter-nos para a literatura, porque, às tantas, uma poesia que não deixa saída é mais um poço, mais uma prisão. O que há de inusitado na sua poesia recorda-me a relação que temos com a música popular brasileira, mas também esse laço que foi mantido entre a nossa cultura e a vossa, através das telenovelas brasileiras. Depois de durante séculos termos partilhado a mesma raiz cultural e linguística, a partir do momento em que se abre um desencontro, na minha geração houve esse conteúdo que foi formativo que foi o termos contactado com a vossa telenovela, e se os nossos canais chegaram a estar dominados por uma praga de produções brasileiras, a verdade é que, comparando com a nossa produção audiovisual, e nomeadamente as nossas próprias telenovelas, acho que saímos a perder. Desde logo, a telenovela brasileira mantinha essa relação com a vossa música popular, que é uma música capaz de sínteses espantosas, pois artistas como o Chico Buarque ou o Caetano Veloso, entre tantos outros, podendo ser uma elite, não se esquecem daquela cultura que emerge espontaneamente, e que se liga a essa necessidade de representação de modos e atitudes variadas, e vemos a força da expressão no uso da língua através nomeadamente do documentário Palavra (En)Cantada. Este vínculo tem vindo a perder-se, com as telenovelas brasileiras a serem substituídas pela produção nacional, coisa que a princípio parecia desejável, mas que significou a perda desse vínculo com uma língua que, sendo nossa, aparece ali virada, carnavalizada, com graça e uma entoação que já de si aponta para uma reacriação e uma invenção tão férteis, por nos chegar de um país tão vasto, oferecendo tantas modulações e variações, dando-nos um outro ouvido, uma sensibilidade para um outro gozo da língua, quando o português tem tendência para ir comendo sílabas, fechando o idioma numa língua de consonantes, que já de si ilustra essa entropia que caracteriza os nossos modos. Assim, há também esta entropia linguística, com a perda da abertura que oferecem as vogais, e, por outro lado, por essa redução dos quadros do melodrama ou enredos fastidiosos e que nos encerram cada vez mais em nós próprios. A telenovela brasileira teve nas suas origens um laço forte com a literatura brasileira, representando certos quadros e vivências sociais, ao passo que a nossa só parece chafurdar em clichés e nos mais gastos arquétipos. O que ainda nos chega do Brasil, para lá da música, hoje são os produtos e fórmulas mais grotescas, como o Lucas Netto, que é já um índio cibernético, no sentido em que absorve e reelabora os elementos mais pobres e imbecis daquele regime. Mesmo os poetas parecem ler pouco os poetas brasileiros, sendo que poetas como Manuel Bandeira, Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto foram nossos tios avós, dá a sensação que depois do Ferreira Gullar já quase se perdeu essa ligação. Isto apesar dos esforços da Imprensa Nacional, que tem reunido e publicado por cá a obra de alguns dos melhores poetas brasileiros, como é o seu caso. Mas isto para assinalar a abertura da sua poesia a esse gozo e malandragem da expressão mais espontânea e vibrante, sendo depois elaborada pela oficina que traz à sua poesia esse rigor e elegância das sínteses, dando resposta e entretecendo tantos ecos, e, por outro lado, queria saber também que relação lhe parece que resta ainda entre estes dois países.
Vou ter de acender outro cigarro. Não sei bem por onde começar, mas parece-me que você já colocou bem o problema. Isso aí foi um ensaio sobre a situação. Não acompanho bem estes fenómenos, não tenho o ouvido no chão destas coisas. Não estou numa só rede social. E nunca estive numa. Sou perfeitamente marginal face a estes modelos. Venho aqui para divulgar o meu livro, e é esse o esforço que faço, mas se não publiquei um livro não tenho motivo para me fazer fotografar, dar entrevistas. É preciso que haja um livro, algum motivo. De resto, não tenho que aparecer, que dizer onde é que eu estou, o que é que eu faço, o que comi, abrir o meu passaporte, mostrar as viagens que fiz, expor a minha cara… Não quero ter um milhão de seguidores, não quero ter nem um seguidor. Acho a palavra “seguidor” já em si um problema. Desse regime de circulação só conheço aquilo que é impossível desconhecer ou evitar. Vou sabendo de alguns aspectos, mas o suficiente apenas para reforçar a minha decisão de não querer participar. Não é por um qualquer princípio aristocrático, é até mais por preguiça e desinteresse. Eu gosto é do contacto humano, o mais directo possível. Tenho profunda admiração pelas pessoas em si, pelo que elas fazem, mas dispenso o elemento publicitário. Não quero ver a vida como ela é composto para figurar no ecrã. Quanto a essa relação entre Portugal e Brasil ter virado o que virou, isso repercute uma série de transformações mais vastas. Se as próprias relações interpessoais se modificaram tão profundamente era evidente que as relações entre culturas, línguas, disciplinas artísticas seriam fortemente afectadas. É natural que as produções de ordem mediática acompanhem esse efeito, e parece-me que diminuem os elementos de desconformidade, as resistências, e assistimos a um rebaixamento de tudo. Trata-se de um gigantesco modelo que empilha o que se assemelha e distancia o que é diferenciado. E também a literatura e os livros vão por aí. Se hoje visita uma livraria, de um modo geral, não tem interesse por aquilo porque sente como esta também já se organiza para reflectir as tendências e esse regime de identificação. Parece que todas as livrarias viraram livrarias de aeroporto. É a circulação e o transporte o que importa, não aquilo que nos faz interromper a marcha. E acho que mesmo a canção perdeu a força. E é incrível que estejamos a falar da telenovela brasileira, que há um tempo envolvia tantos preconceitos, mas hoje, e face àquilo que ocupa os canais de televisão, aquilo que parecia muito mau há uns anos está a tornar-se um produto de qualidade, porque de facto tinha essa ligação com a canção popular, e isso é uma coisa em que eu nunca tinha pensado. E não é só porque tocava essas canções, mas porque a telenovela está para a produção audiovisual como a canção popular está para a música. O texto tinha alguma qualidade, os actores eram excelentes, e talvez a gente nem tenha percebido o quanto aquilo era bom porque, de um ponto de vista intelectual, dos livros, do mundo universitário, aquilo parecia um produto de segunda linha. Mas agora que a segunda linha tomou conta, estamos a dar-nos conta de que aquilo que antes era mau hoje, em alguns aspectos, já seria uma melhoria. Mas é evidente que esse interesse de lá para cá e de cá para lá diminuiu muito. O fenómeno mais recente no Brasil, e já tem alguns anos, foi a Adília Lopes. Houve uma altura em que só se falava da Adília. Foi realmente um respiro, como se viesse dali uma grande novidade, e uma novidade que vinha de um lugar de onde a gente só espera a tradição, só espera o que a gente já imagina. Nunca um ar fresco, uma coisa que demore a assentar, e então a Adília foi realmente um acontecimento para a poesia contemporânea. Mas de lá para cá, não vejo nada. Não vejo nada.