A polémica vem-se acentuando nos últimos anos, até pela baixa de natalidade dos humanos: estarão os animais de estimação a ocupar o lugar dos filhos? O Papa Francisco não tem dúvidas e desde 2022 que vem chamando a atenção para o facto: “Hoje vemos uma forma de egoísmo. Vemos que alguns não querem ter filhos. Às vezes têm um, mas têm cães e gatos que ocupam esse lugar”, dizia em 2022. No ano seguinte voltou à carga, depois de uma mulher lhe aparecer à frente para abençoar o seu bebé. Qual não foi o espanto do chefe máximo da Igreja Católica quando viu que o bebé era um cachorro: “Perdi a paciência e disse-lhe: há muitas crianças com fome e tu trazes-me um cão?” Já no corrente ano, Francisco reafirmou a sua preocupação: “Os lares estão cheios de objetos e vazios de crianças, tornando-se lugares muito tristes. Não faltam cachorrinhos, gatos… O que está faltando são crianças. O problema do nosso mundo não é o nascimento de crianças: é o egoísmo, o consumismo e o individualismo, que tornam as pessoas fartas, solitárias e infelizes”.
“Os meus cães [ou gatos] são como meus filhos”, é uma expressão muito comum nos dias que correm. Milhões de pessoas não pensam da mesma forma, bastando ver as revistas cor-de-rosa onde homens e mulheres, que se notabilizaram por aparecer na televisão, anunciam ao mundo que foram pais… de um cão ou de um gato.
Se é verdade que muitos não chegam tão longe como o filósofo Peter Singer, que defende a igualdade de direitos entre animais e humanos, nos tempos que correm não é difícil encontrar donos de cães com o seu lulu num carrinho de bebé, tratando-o como um filho.
Divórcios ruidosos por causa dos animais Se há uns anos os animais não entravam na equação dos divórcios, muito mudou nos últimos tempos, com a luta pelo cão ou o gato a ser motivo de discussão em tribunal. Tem havido decisões para todos os gostos, mas muitos ex-casados chegam a afirmar que quase nem conseguem viver sem o seu cachorro ou gato, exigindo a partilha dos mesmos. Mas se antigamente eram só os humanos que ficavam com depressões, agora também os animais de quatro patas de ‘queixam’ do mesmo. Sendo pelo facto de ficarem muito tempo sozinhos, por terem sofrido maus-tratos ou até por perderem um dos donos.
Passemos a palavra a Carlos Cordeiro, treinador de cães, que nas páginas 16-18 alonga as explicações: “É preciso ter consciência de que um cão é e será sempre um animal. Apesar da sua inegável inteligência e capacidade de aprendizagem, os cães não têm a capacidade de racionalizar como nós e agem por instinto. Conhecer o nosso cão, ter tempo e disponibilidade para lhe dar atenção e desenvolver laços, perceber como se comporta naturalmente, o que gosta de fazer, onde gosta de passear, é essencial. Por vezes, na azáfama do dia-a-dia não é fácil ter esta disponibilidade, mas é importante”.
Mas é ou não verdade que muitos donos tratam os cães como se eles fossem humanos? “Sim, a humanização dos cães acontece frequentemente e é um erro. Tem muito a ver com o facto de os cães viverem sobretudo em meio urbano, cada vez mais próximos de nós. Partilham o mesmo espaço, por vezes dormem connosco no quarto ou na nossa cama e são cada vez mais vistos como membros integrantes da família. E não há nada de errado nisso, pelo contrário. Mas é preciso não esquecer que os cães não são seres humanos, têm a sua própria natureza e comportamentos distintos. É preciso ter bem a noção de que tratar bem um animal começa por saber respeitar e honrar a natureza deste”.
Luxos e megalomanias Para muitos, tratar bem um animal passa por comprar-lhe objetos de luxo, como malas de marca, perfumes (!) ou comida gourmet, mas nada atinge o ridículo e até ofensa para a miséria que se vive no planeta, de comprar viagens aéreas em companhias dedicadas a lulus e gatinhos. Nos aviões, os bichos terão direito a mordomias como massagens, spa e afins. Calculo que não lhes seja dado champanhe ou outras substâncias prazerosas…. Mas voltemos aos perfumes: A Dolce & Gabbana lançou um perfume canino que está a enfurecer as organizações de defesa animal que acreditam que o aroma pode interferir com o olfato do bicho. Os disparates são tantos que seria impossível numerá-los todos. Tratar os animais com respeito é um dever ( e com carinho], mas confundi-lo com uma pessoa ou achar que faz parte da família vai todo um mundo. Quem também já viu há muito tempo o potencial dos animais foram os hipermercados que têm várias filas só dedicadas a eles. Um verdadeiro maná.
Mundo rural contra os urbanos E é aqui que entra a ‘guerra entre quem é do campo ou tem experiência de vida no mundo rural e aqueles que nunca viram uma galinha sem ser na prateleira de um hipermercado. Nos últimos tempos, Miguel Sousa Tavares tem mostrado toda a sua discordância com a provedora do Animal, bem como com o PAN. Se o comentador da TVI é acusado de, por vezes, ser radical, convém não esquecer que do outro lado os argumentos também não são meigos. Vejamos o que dizia ao i, em dezembro de 2022: “Se olharmos para a literatura, sabemos que muitos dos grandes criminosos começaram por matar animais”. Na referida entrevista, Laurentina Pedroso chamava a atenção para a necessidade de se multar os donos dos animais que os mantêm acorrentados, o que mereceu as críticas do mundo rural, dizendo que não sabia do que falava, pois se a sua estratégia fosse seguida, muitos donos teriam de abandonar os animais, pois eles servem para estar de guarda às suas casas.
Mas vamos à última polémica de Miguel Sousa Tavares com Laurentina Pedroso. A provedora do Animal defendeu que se devia acabar com o negócio das charretes puxadas por cavalos em circuitos turísticos, mas que enquanto não se chega a esse ponto que se deve obrigar os donos a darem descanso semanal aos cavalos, além de passar a ser obrigatório que os mesmos tenham um mês de férias. Laurentina Pedroso “fala em quatro semanas de férias para os cavalos e um dia de folga por semana e não falou com o sindicato dos cavalos. Acho que a seguir vai propor a mesma medida para os carros de bois. Isto vai generalizar-se”, disse no último programa na TVI.
O caçador confesso terminou a sua intervenção com mais uma bicada: “Pergunto: para que precisamos de um provedor do Animal? Porque não temos um provedor para os trabalhadores imigrantes, para os contribuintes, para os doentes? Estamos a entrar numa tal paranoia do politicamente correto que os animais têm mais direitos do que as pessoas”. O Papa não vai tão longe, mas acha inadmissível que os filhos sejam substituídos por amigos de quatro patas.
Um apontamento final. Quando há tantos sem-abrigo, quando tantos idosos são deixados nos hospitais porque os familiares não querem ter trabalho com os progenitores, não deve ser difícil encontrar os cãezinhos e gatinhos nessas casas, onde a humanidade fica à porta. Por outro lado, também é óbvio que os animais de companhia, bem como os outros, não merecem ser tratados cruelmente, apesar de ser assim que se tratam na selva. Ou alguém já viu um leão fazer festinhas a uma gazela, por exemplo?