Cuidados paliativos. Estado não assegura mínimos dos mínimos

Equipas incompletas, falta de cobertura, assimetrias regionais, doentes que morrem sem cuidados apesar de terem sido referenciados, apenas 10% das crianças têm acesso a paliativos. Não faltam relatórios, só as soluções.

Os vários relatórios elaborados por entidades de referência, como o Observatório Português de Cuidados Paliativos (divulgado em julho), e a Entidade Reguladora da Saúde ERS (publicado ontem), apontam graves deficiências no acesso e falta de recursos na área dos cuidados paliativos com significativas assimetrias em relação às taxas de cobertura, a nível regional ou a nível da tipologia dos recursos. Falta de investimento e de coordenação entre as diversas áreas, são também alguns dos problemas apontados. Segundo Catarina Pazes, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), a estimativa é a existência de cerca de 100 mil doentes a precisarem de cuidados paliativos, sendo que apenas 30% têm acesso. A nível pediátrico, a situação torna-se ainda mais grave em termos de proporção: das 800 crianças que necessitam deste tipo de cuidados só 10% os têm.

São dois os Planos Estratégicos para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, para os biénios 2021-2022 e 2023-2024, elaborado pela Comissão Nacional de Cuidados Paliativos (CNCP). O último é quase uma cópia do primeiro, uma vez que pouco se evoluiu nesta área. Os relatórios sobre a implementação destes planos salientam «a insuficiência na oferta de cuidados paliativos da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP) definidos como os cuidados ativos, coordenados e globais, prestados por unidades e equipas específicas, em internamento ou no domicílio, a doentes em situação [de] sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, assim como às suas famílias, com o principal objetivo de promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, com base na identificação precoce e do tratamento rigoroso da dor e outros problemas físicos, mas também psicossociais e espirituais».

Doentes morrem  à espera

O relatório da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) centra-se no acesso dos doentes ao internamento em unidades de cuidados paliativos que estão dentro da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados  (RNCCI), reitera a falta de investimento nesta área e mostra falhas na articulação entre as coordenações de RNCCI e a RNCP. «Os doentes que são referenciados para as unidades da rede de cuidados continuados são doentes com necessidades menos complexas mas que muitas vezes se encontram em período de fim de vida e que estão em hospitais, em casa ou noutras respostas sociais», refere Catarina Pazes. Uma das principais conclusões a que chegou a ERS é que, em 2023,  destes doentes, «37% foram admitidos  numa unidade do SNS (UCP-RNCCI ou unidade da RNCCI) e cerca de 48% dos utentes referenciados não foram admitidos por óbito anterior à admissão». Os utentes admitidos aguardaram, em média, 21 dias.

Já o Relatório de Outono 2023 do Observatório sobre a Cobertura e Caracterização das Equipas e Profissionais das Equipas de Cuidados Paliativos revela que «ao final do terceiro plano estratégico nacional de cuidados paliativos, apesar de uma evolução no número de recursos, a cobertura nacional, tanto estrutural quanto profissional, permanece abaixo do aceitável e recomendado a nível nacional e internacional. As profundas assimetrias distritais continuam a impedir uma abordagem especializada e integrada entre as diferentes valências e equipas, limitando o acesso a estes recursos como um direito humano fundamental e essencial para uma cobertura universal de saúde».

O  número de camas de cuidados paliativos é de 50 para o intervalo entre 80 e 100 por  um milhão de habitantes. «Os pontos de oferta, bem como o número de camas contratualizado permaneceu constante no período compreendido entre 2021 e 2023», diz a ERS. Concluindo que existem assimetrias consideráveis. «As regiões de saúde do Norte, Centro e Lisboa e Vale do Tejo, apresentam uma taxa de camas de cuidados paliativos conjunta significativamente inferior ao limiar mínimo recomendado», sendo que a região de saúde do Centro não apresenta oferta de UCP-RNCCI. Já a região do Alentejo tem uma oferta de cuidados paliativos superior ao limiar mínimo recomendado. O Algarve «tem uma taxa acima do limiar de 50 camas por 1.000.000 habitantes e ligeiramente abaixo do limitar de 80 camas, sendo certo que não apresenta oferta para UCP – RNCCI, associada a casos de baixa ou moderada complexidade».  Ou seja, a maioria da oferta encontrava-se localizada na região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, correspondente a 77% do total das camas, as regiões de saúde do Centro e do Algarve não apresentaram oferta de UCPRNCCI entre 2021 e 2023 e o  total de camas de cuidados paliativos «apresentavam uma oferta de camas significativamente inferior ao limiar recomendado pela Associação Europeia para Cuidados Paliativos».

Catarina Pazes afirmou ao Nascer do SOL que está «expectante»  para ver o que vai a acontecer.  «Temos uma Comissão Nacional dos Cuidados Paliativos nomeada ainda pela anterior DE SNS, mas não sabemos em que ponto da situação está o funcionamento desta comissão nacional porque, de facto, não há sinais de que esteja acontecer alguma coisa». A responsável diz que este foi um dos pontos que abordou na reunião que teve em 21 de Junho com as duas secretárias de Estado da Saúde. «Não sentimos que esta seja uma área considerada prioritária», afirmou. Na reunião, as representantes do Governo «não se comprometeram com nenhuma medida concreta e não deram  informação concreta sobre o que estava a ser planeado do ponto de vista organizativo, administrativo nesta área».

Gastar mais a tratar pior

A consequência de tudo isto é «um desenvolvimento muito lento de uma área clínica que é absolutamente essencial para o SNS que serve milhões de pessoas com idade mais avançada, com múltipla patologia crónica, com necessidades paliativas aos vários níveis».  Catarina Pazes admite que ao longo dos anos tem havido algumas melhorias, mas o desenvolvimento desta área «está longe de ter acompanhado aquilo que são as reais necessidades», com consequências no mau uso dos serviços de urgência e dos serviços hospitalares. «Os doentes com necessidades paliativas precisam de muitos cuidados de saúde e quando não os têm recorrem aos serviços de urgência acabando por não ter um seguimento ou acompanhamento adequado ao longo do processo de doença». E conclui: «Gastamos muito mais a tratar pior os doentes que sofrem problemas graves de saúde».

O relatório do Observatório alerta ainda para o facto de as equipas não terem o número de profissionais adequado nem profissionais com um perfil adequado em termo de competências. Ou seja, «ter equipas não significa acesso porque estas equipas têm poucos recurso e poucas condições para fazer um bom trabalho», diz Catarina Pazes. O maior problema, segundo esta dirigente, é ao nível da comunidade. «Nós temos regiões do país sem nenhuma resposta a nível de cuidados paliativos na comunidade. Isto significa que as pessoas  nas suas casas ou em lares, não têm uma resposta que lhes permita não terem de recorrer ao hospital cada vez que têm uma situação de crise».