Mar. Por fundos num antes explorados

A 1.ª etapa da missão oceanográfica dedicada às Áreas Marinhas Protegidas Oceânicas (Campanha AMP Oceânicas) do IPMA chegou ao fim. O Nascer do SOL esteve no Último Porto, em Alcântara, para assistir à chegada do navio Mário Ruivo e sua tripulação especializada.

Chegámos à Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara. São oito da manhã. O sol já apareceu, encadeia-nos, mas ainda não queima. Sente-se a brisa matinal. Ao percorrer o caminho em terra que separa a Marinha do porto dos navios de grande porte (considerada zona internacional), já se veem algumas pessoas a sair dos barcos onde, concerteza, pernoitaram. Ao aproximarmo-nos do Último Porto, ao longe, com a ponte 25 de abril e o Cristo Rei como fundo, aproxima-se o navio de investigação (NI) Mário Ruivo, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), que é o protagonista desta história. A embarcação zarpou do Funchal, no dia 6 de agosto, para a primeira campanha oceanográfica, realizada no âmbito do projeto AMP Oceânicas ‘Planos de gestão e monitorização de Áreas Marinhas Protegidas Oceânicas: Caracterização ecológica de montes submarinos do Complexo-Geológico Madeira-Tore e adjacentes’ e terminou-a hoje (12 de agosto), dia em que atracou em Lisboa.

Atrás do portão, perto do cais, está o professor José Guerreiro, presidente do IPMA, que com entusiasmo tira fotografias ao navio. «Queremos cumprir o objetivo de ter 30% do nosso espaço marítimo nacional protegido através das reservas marinhas até 2030», afirma ao Nascer do SOL. Para isso, continua, constituiu-se uma equipa específica pluridisciplinar. «Participaram investigadores e técnicos do IPMA e de várias instituições nacionais, nomeadamente da Direcção-Regional de Pescas e do Mar (DRPM) da Madeira, o Centro de Ciências do Mar do Algarve (CCMAR) da Universidade do Algarve, do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) da Universidade do Porto, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro, do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) da Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa e, do Laboratório Herança Cultural, Estudos e Salvaguarda (HERCULES) da Universidade de Évora», enumera. Este grupo é constituído por geólogos marinhos, oceanógrafos, biólogos marinhos, geofísicos e bioquímicos. «Uma coisa de que temos muito orgulho é que para alguns dos jovens investigadores, esta foi a sua estreia a bordo», conta orgulhoso.


Galeria Imagens

De acordo com o presidente do IPMA, os resultados do projeto darão o suporte científico necessário ao Estado Português, que permitirá identificar as áreas de elevado interesse para a conservação e constituir a base científica de suporte ao planeamento e à gestão das atuais e futuras áreas classificadas, para a implementação da Rede Nacional de Áreas Marinhas Protegidas (RNAMP), mais especificamente em zonas oceânicas, como por exemplo os montes submarinos do Complexo-Geológico Madeira-Tore e do Great Meteor, a Fractura Hayes, o Kings Trough, a Mid-Atlantic Ridge North of the Azores (MARNA) e o monte submarino Altair. Prevê-se que a segunda etapa decorra no primeiro semestre de 2025, em função das condições meteo-oceanográficas. «A segunda etapa da campanha, no próximo ano – primavera/verão –, começará ainda na Madeira e seguirá para o mar dos Açores», adianta.

A 25 mil euros por dia no mar

Com 75,6 metros de comprimento e 14,8 metros de boca, a embarcação pode acomodar até 45 pessoas, incluindo 30 elementos de equipa científica. Tem uma autonomia de 30 dias, e está baseado em Lisboa. «Este é um navio muito antigo. Funcionou pela primeira vez em 1986 e já sofreu muitas alterações. Nem sempre foi um navio de investigação. Atualmente, custa 25 mil euros ao dia no mar – não muito menos parado – e é constituído por equipamento sofisticado que tem sido adquirido ao longo dos anos fundamental não só para identificar as espécies e os habitats, como também a natureza geológica do fundo: os montes submarinos, as fontes hipotermais, etc. Foi equipado no governo passado com um investimento de três milhões e meio de euros», adianta José Guerreiro. «Este navio está equipado com um sistema de posicionamento com um grau de fiabilidade de um metro e, portanto, conseguimos através das imagens submarinas, fazer uma cartografia muito fina daquilo que são os principais habitats e sobre os quais vão incidir depois os estudos», acrescenta. É capaz de fazer a cartografia do solo e do subsolo e tem equipamentos que permitem fazer amostras do subsolo até seis metros de profundidade. O projeto é financiado pelo Fundo Azul em cerca de 2,5 milhões de euros, contando com a participação da DGRM. «É a primeira vez que, de facto, se tem essa disponibilidade financeira. Acho que é uma prova de soberania sabermos quais os nossos recursos de biodiversidade nas zonas mais profundas e no espaço marítimo», acredita, revelando que já há financiamento para os próximos passos. «O financiamento já está aprovado. Portanto, já temos para os próximos 12 meses estes 2, 5 milhões e depois será com certeza reforçado». Em 2020 o navio foi renomeado de Mário Ruivo, em homenagem ao biólogo português pioneiro na defesa dos oceanos e da investigação científica no mar. Antes disso, o navio tinha o nome de Mar Portugal.

Uma equipa pluridisciplinar

«Há coisas realmente engraçadas. O meu avô era embarcado no Funchal – nos anos 60 fazia a rota das ilhas – e eu passei aqui algum tempo da minha infância. Agora aqui estou de novo, uma era geológica mais tarde», lembra José Guerreiro. Enquanto conversamos, o navio está a atracar. É um processo longo, mas já se veem os investigadores na parte de fora da embarcação à espera da escada que os colocará em terra. «Lá estão eles! Devem estar doidos para sair do barco», exclama. «Uns deles embarcaram dia 30 de julho, outros no dia 6 de agosto», conta. São cerca de 20 pessoas e de diferentes gerações. «Estou muito contente de termos aqui tantos jovens», admite. «Estamos a aproveitar estes projetos para renovar as gerações. Temos essa responsabilidade», frisa o presidente do IPMA.

Ester Serrão, investigadora da Universidade do Algarve, especialista em biodiversidade marinha no nível genético, aproxima-se com um sorriso e alguma pressa, de mochila às costas e mala na mão. «Foi fantástico! Principalmente o trabalho em equipa. A interação que houve nesta campanha com pessoas de áreas diferentes a trabalhar em conjunto foi muito enriquecedora». «Os resultados ficaram muito acima das expectativas. Eu não estava habituada a estar habituada a estar em campanhas com oceanógrafos físicos e geólogos… Fiquei muito surpreendida pela qualidade e quantidade de trabalho que fazem 24h a recolher dados, com muitos equipamentos diferentes, sempre a serem colocados na água, sempre a descobrir novos dados sobre a oceanografia das zonas visitadas. Normalmente estamos mais na parte biológica. Foi interessante para depois comparar os dados e explicar a distribuição das espécies, etc. Explicamos aos outros o que estamos a fazer, aprendemos», explica.

Vemos um grupo de quatro jovens investigadores animados perto da carrinha onde a equipa está a arrumar os materiais e amostras. «Sou investigadora do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) da Universidade do Porto, estudante de doutoramento, e participei nesta campanha com o objetivo de fazer monitorização de cetáceos: baleias e golfinhos. As áreas que nós monitorizámos são conhecidas pela grande biodiversidade de espécies e de habitats», afirma Cláudia Rodrigues, de 25 anos. «Nunca estive embarcado em alto mar. Foi uma experiência única e uma oportunidade enorme. A minha função foi ajudar um bocadinho em tudo, porque não vim com um objetivo definido. Queria principalmente aprender e perceber como posso ajudar nesta estratégia de implementação de áreas das áreas marinhas protegidas», conta João Pequeno, de 33 anos, do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) da Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa. «O que os olhos não veem o coração não sente, não é? É um bocadinho aquilo que acontece com as pessoas. É muito importante preservar os oceanos, isso não é novidade para ninguém. No entanto, é importante conhecer e preservar. É por isso que estas campanhas são essenciais. São elas que vão permitir saber a fundo quais as áreas que fazem sentido serem protegidas e qual o grau de proteção a implementar. Isto tendo em conta também os usos que damos a essas áreas e os serviços de ecossistemas que elas nos proporcionam», continua. «São precisos dados científicos robustos para sabermos como fazer essa prevenção no futuro», sublinha o investigador. Já Bruna Bié, de 25 anos, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro, veio observar as imagens que se conseguem captar do fundo do mar, principalmente do monte submarino Ampere. «Foi a primeira vez que embarquei e foi fantástico. Fiquei uma semana», revela. «Acho que o maior desafio enfrentado foi quando lançámos um dispositivo que nos permite observar o fundo marinho e, em algumas partes, as correntes dificultaram-nos o trabalho», lembra. «Vim com o objetivo de estudar a biodiversidade nos montes submarinos e surpreendeu-me a grande presença de algas laminárias e o sedimento que lá encontrámos», acrescenta Laura Trovão, de 26 anos, também do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro.

As primeiras conclusões

«Durante a campanha, foram efetuados trabalhos de geologia marinha, de oceanografia física e de biogeoquímica, nos montes submarinos Ampere e Gettysburg», reforça Miguel Santos, chefe do projeto. «Foi feito um levantamento (batimetria multifeixe, retrodispersão acústica e magnetometria) sobre o monte Ampere. Isto permite ter batimetria e relevo submarino de grande resolução, fundamental para os trabalhos posteriores de biodiversidade. Esta última, foi avaliada com recurso a um sistema de vídeo-câmaras, denominado SeaSpyder e, também, com uma veículo submarino remoto (ROV), que permitem fazer filmagens e fotografias do fundo do mar. Durante estes mergulhos foram observadas várias espécies de algas (laminárias, algas castanhas e vermelhas), equinodermes (ouriços do mar) e várias espécies de peixes (lírios e tremelgas) e tubarões», adianta o especialista. «Foram colhidas amostras de água com um coletor, denominado Rosette, a profundidades determinadas até aos 1200 metros, que servirão para a determinação de nutrientes, identificação de fitoplâncton, ADN ambiental e também para a calibração dos sensores instalados num CTD, equipamento que permite fazer perfis verticais de temperatura, salinidade, pH, oxigénio dissolvido, clorofila e de matéria orgânica dissolvida», continua. Além disso, a equipa também recolheu sedimento do fundo usando uma draga, denominada‘Box corer’. «Os mamíferos marinhos foram amostrados por observadores, com binóculos, na ponte do navio, mas também com técnicas acústicas com hidrofones», acrescenta Miguel Santos.

«Para o ano voltamos lá. Vamos focar nesses dois montes submarinos, mas complementarmente no Josefine, Lyon e Coral Patch. Ao fechar esse ciclo, começaremos a pensar na área que iremos proteger. Os montes submarinos são pontos de grande biodiversidade, são áreas muito críticas, que alimentam o resto do oceano. Tem espécies muito vulneráveis como corais e esponjas, que devem ser protegidas. Claro que alguns destes montes também já têm alguma pressão de pesca, tem também de se ver em que medida se tem de reduzir isso», aponta o chefe do projeto. Interrogado sobre os maiores desafios, Miguel Santos explica que os equipamentos que a equipa tem neste momento, só permitiram ir aos 100 metros de profundidade. Por isso, é necessário adquirir aparelhos que atinjam maiores profundidades na próxima etapa. O investigador destaca ainda o trabalho do seu colega Pedro Terrinha. «Uma das coisas que eles fazem é a batimetria dos montes. Para fazer esses mergulhos precisamos de uma batimetria de alta resolução. Eles fazem isso, que depois nos permite fazer os mergulhos com mais segurança», explica.

 Somos convidados a entrar no navio para conhecermos as suas acomodações. A equipa já o está a «desmontar» e arrumar. Numa visita guiada passamos pela sala de computação, onde se operam todas as sondas de casco do navio; por um laboratório molhado, onde se processam amostras de peixe, sedimentos e águas; por um laboratório seco, onde se processam amostras que necessitam de um ambiente sem contaminação; e um sistema de frio com um túnel de congelação (-40 grausC) e congelador (-20 grausC) e os camarotes para 30 cientistas que nos lembram um Airbnb.

O barco fica cada vez mais vazio.

Os investigadores já partiram.

A primeira etapa da campanha acabou. Agora segue-se a investigação e análise de dados recolhidos.