Estarão os leitores recordados do texto que aqui publiquei há duas semanas, sobre a visão utópica transmitida pelos meios de comunicação social, estruturas partidárias, autarquias e personalidades de esquerda, sobre a Reforma Agrária.
Fazendo uma vez mais fé em testemunhos de quem atravessou esse período e cujas consequências sofreu na pele, passo a citar mais algumas situações concretas que mereceriam ter tido interpretação diferente da que lhes era dada pela corrente de pensamento à época.
Começo pelo que sucedeu com o Mestre João Núncio, cavaleiro de eleição, cujas empresas agrícolas e semental de gado bravo lhe foram extorquidas. Viu a sua casa assaltada por trabalhadores que destruíram, a pau e à navalha, peças de mobiliário, o seu pequeno museu de recordações tauromáquicas, um retrato do próprio – da autoria do pintor Eduardo Malta – bem como a cabeça embalsamada do seu primeiro touro, enquanto debutante nas lides. Pergunto, a que título e com que direito?
Haveria mesmo falta de trabalho na agricultura, tendo sido essa uma das motivações para a Reforma? Na verdade, ao contrário da década anterior, no Alentejo de 1974, tal não sucedia. Dando como exemplo o concelho de Avis, estava em funcionamento uma fábrica de processamento de tomate, outra de laticínios, ambas bem conhecidas, e oficinas trabalhavam na reparação dos equipamentos fabris e de máquinas agrícolas (com bastante trabalho, segundo testemunhos recolhidos). Em Avis operava também uma empresa relevante de construção civil.
O que dizer do apoio da banca nacionalizada? Concedendo às cooperativas financiamentos sem garantia, ter-se-á ideia dos prejuízos causados às instituições financeiras? Com a realidade regulatória dos dias de hoje, imagina-se o valor das imparidades a reconhecer nos respetivos balanços?
Que destino tiveram, em regra, as maiores cooperativas que foram fundadas no período da Reforma Agrária? Dando o exemplo da Cooperativa 1.º de Maio, que ocupou a herdade de Camões, com 5000 hectares, seguindo-se as que lhe estavam anexas, e constituindo assim o que, à época, foi o maior latifúndio do Alentejo – a ausência da capacidade de gestão conduziu a que a cooperativa se tivesse tornado inviável no plano económico-financeiro, tendo falido pouco depois… A quem beneficiou a ocupação?
Foi também invadido, em Campo Maior, o Palácio Visconde de Olivã, e parcialmente destruída uma grande e valiosa biblioteca que nele existia. Como corolário, os usurpadores passearam-se depois, triunfalmente, pela cidade, num cortejo em tratores agrícolas roubados, exibindo-se nos trajes dos donos do palácio. Não será esta uma forma de vexame público que deveria ter sido convenientemente condenada?
Curiosamente, os donos das herdades não ficaram conhecidos por tomar medidas defensivas perante o assalto às suas propriedades, também não havendo registo de violência contra os ocupantes após a devolução das herdades, já na década de 80.
Por fim, e citando a Profª. Doutora Maria Antónia Pires de Almeida (in A revolução no Alentejo – Memória e Trauma da Reforma Agrária em Avis, edição do ICS, 2006) por mais inverosímil que possa parecer, o resultado final da recolha da memória oral de que se encarregou para evidenciar perspetivas distintas, «demonstrou um traço de união entre todos os grupos em conflito: um enorme sentimento de frustração generalizada, uma tristeza profunda com todo o processo e principalmente com o estado do Alentejo à data. Ninguém ficou satisfeito, ninguém ganhou com o movimento (apesar das insinuações de grandes riquezas para alguns, também sempre presentes, assim como a palavra Roubo), e sobretudo nenhum grupo social melhorou as suas condições de vida de forma permanente como consequência direta das ocupações de terras».