É uma daquelas regras que quase não admitem excepção. Quem conhece África tal como ela é, e não através dos postais ou do cinema de Hollywood, recusa todas as ideias feitas de exotismo e de romantismo que muitos de nós lhe associamos. Querem ver animais selvagens e paisagens prístinas? Vão fazer um safari – aconselham-nos. Querem ver povos atrasados que vivem em palhotas? Liguem a televisão na National Geographic. Querem histórias de amor? Leiam Karen Blixen ou Daphne Sheldrick. Mas fiquem sabendo que África, a verdadeira África, não é nada disso.
John Reader (n. 1937), o autor de África – Uma biografia do continente, o grosso volume que me acompanhou estas férias, é certamente um profundo conhecedor da realidade africana. Filho de um taxista de Londres, apanhou um cargueiro para a África do Sul no dia em que fez 18 anos. Nunca antes tinha saído do país. Viveu na Cidade do Cabo durante oito anos e em Nairobi (Quénia) outros dez. Ao longo dessas quase duas décadas, enquanto fotojornalista, viajou extensivamente por todo o continente.
Passemos-lhe a palavra: «Estive debaixo de fogo com as tropas nigerianas que avançaram para sufocar a secessão do Biafra; vi Tom Mboya e Kwame Nkrumah serem enterrados; apertei a mão a Idi Amin no dia a seguir a Milton Obote ser deposto. Conheci Julius Nyerere, Jomo Kenyatta, Helen Suzman, Alan Paton, Steve Biko, Gatsha Butelezei e Ian Smith». Quem conhece um pouco da história recente sabe a importância que tiveram algumas destas figuras, umas delas heroicas, outras nem por isso. Continua Reader: «Fui à missa com o General Mobutu e a sua família; estive nas celebrações dos 80 anos de Haile Sellasié; vi refugiados a morrer à fome; desci o Nilo, subi o Congo, viajei pelo delta do Okavango e atravessei o [deserto do] Kalahari». É um currículo impressionante.
Talvez por se tratar de um fotojornalista, pensei que esta biografia de África teria algo de reportagem. Preconceito meu? Rapidamente me desenganei – a minúcia dos factos, o cunho por vezes científico e o estilo depurado, impessoal, não eram muito diferentes do que se encontraria num livro académico. A consulta das notas de rodapé (diria que a rondar as duas mil) e da bibliografia (39 páginas repletas de títulos saídos das imprensas universitárias anglo-saxónicas) corroborou essa suspeita.
De facto, ao contrário do que eu esperava – e apesar do uso da palavra ‘biografia’ no título, em vez de ‘história –, o livro de Reader é bastante convencional. Gostaria que tivesse arriscado mais, pondo alguma da sua vasta experiência nestas páginas. Ao mesmo tempo, há dúvidas que continuo por esclarecer. Porque é que os masai arrancam um dos dentes incisivos? Porque é que os mursi, do Sul da Etiópia, colocam um disco no lábio inferior? Como foi construída a famosa mesquita de lama de Tombuctu e por que não se desfaz com a chuva? Porque é que os meios de transporte em África saem sempre atrasados? Qual o significado da máscara na cultura africana e na feitiçaria? A que sabe a carne de hipopótamo ou de elefante?
Mas claro que não se pode julgar um livro pelo que nós gostávamos que ele fosse. A bitola do autor não é, felizmente, a nossa. E mais: pretender que um conhecedor de África aborde algumas destas questões talvez seja o equivalente a pedir a um historiador para, ao fazer um retrato de Portugal, não se esquecer de falar das rendas de bilros, do galo de Barcelos e do pastel de nata.