EUA. Debate aquém das expectativas

Os últimos meses da política americana aumentaram as expectativas para o  debate entre Trump e Harris. A democrata passou no teste e saiu com vantagem.

No mês e meio após a desistência de Joe Biden da corrida, a campanha às eleições presidenciais americanas assumiu uma imprevisibilidade que parecia afastada na sequência do primeiro debate entre os então candidatos e da tentativa de assassinato a Donald Trump.

Com a confirmação da candidatura da atual vice-presidente Kamala Harris – que seria a única escolha viável para os democratas, já que só ela poderia ter acesso aos fundos de campanha já angariados até à data e por representar a esperança de colocar a primeira mulher no mais alto cargo do executivo americano –, as sondagens voltaram a sorrir ao Partido Democrata. E de uma forma arrebatadora.

A Convenção Nacional Democrata em agosto ajudou a aumentar o ímpeto de Harris, que tem baseado a sua estratégia na máxima ‘politics of joy’. Mas, e como era previsível, os números voltaram a equilibrar-se e Trump chegou de novo à liderança em certas sondagens – algo que pode ter sido potenciado pela desistência e consequente apoio do candidato independente Robert F. Kennedy Jr. Segundo especialistas em sondagens da campanha de Trump, este apoio poderá ter um impacto significativo, com as previsões a apontarem para que pelo menos metade dos apoiantes de Kennedy vote agora no republicano.

A conjuntura aumentou as expectativas para o primeiro embate, marcado para 10 de setembro, entre os candidatos presidenciais, com as previsões a apontarem para uma ligeira desvantagem de Harris, que realizou apenas uma entrevista desde que assumiu a nomeação democrata e por ter apresentado as linhas gerais do seu programa de governo há poucos dias. O facto de ser a número dois da atual administração colocaria, à partida, a democrata numa posição desfavorável frente ao estilo de debate agressivo de Donald Trump.

O constante fact-checking e uma certa parcialidade na abordagem aos dois candidatos por parte dos moderadores da ABC, juntamente com a dificuldade de ajustar a retórica de Trump, contribuíram para que os republicanos não capitalizassem as fragilidades da opositora como seria de esperar. Contudo, num debate onde sobressaíram os ataques, a economia, o aborto e a imigração, o nível da discussão de ideias de ambas as partes deixou a desejar.        

A economia

Como referiu David Muir, um dos moderadores, a economia e o custo de vida são as principais preocupações do eleitorado americano, o que fez com que fosse o primeiro assunto a ser abordado.

Kamala Harris ficou encarregue da primeira intervenção, de alguma complexidade, por sinal, já que os últimos três anos e meio de governação não a ajudariam nesta matéria. A vice-presidente incumbente tentou, naturalmente, fugir à questão, começando por fazer referência às suas origens de classe média, marcando, desde o início, o contraste com a vida abastada de Donald Trump. Harris utilizou boa parte dos seus dois minutos de intervenção para demonstrar posições. Porém, careceram de objetividade.

«Acredito na ambição, nas aspirações e nos sonhos dos americanos», acrescentando que cortará impostos para as famílias de classe média no valor de 6 mil dólares, algo que ainda não fez enquanto número dois de Biden. A candidata democrata mencionou ainda os altos custos da habitação, o que promete resolver. Ainda assim, e com os preços na habitação a aumentarem no atual mandato, Kamala já propôs o controlo de rendas para mitigar o problema. Uma proposta que, na eventualidade de ser implementada, só agravará o problema.

Harris, contudo, ganhou pontos quando anunciou que aprovará alívios fiscais avaliados em 50 mil dólares para start-ups e para pequenas empresas.

Donald Trump começou com uma das suas bandeiras económicas: as tarifas às importações, principalmente a produtos chineses. Mas, quando passou ao tema da inflação – afirmando: «Tivemos uma inflação que foi, provavelmente, a pior da história da nossa nação» e que teria atingido os 21% – cometeu o primeiro erro. A inflação durante a administração Biden atingiu o seu ponto máximo em junho de 2022, registando um valor de 9,1%. Valores superiores foram atingidos no período pós-II Guerra Mundial e no final da década de 1970 e início de 1980.

Como seria expectável, Trump rapidamente mencionou a imigração – um dos seus temas fortes e no qual aposta grande parte das suas fichas. O republicano fez referência à ocupação de postos de trabalho por parte das comunidades hispânica e afro-americana. «Eles [administração Biden] estão a destruir o nosso país. Têm o maior índice de criminalidade».

Donald Trump, ao seu estilo, congratulou-se por ter criado «uma das melhores economias da história do (…) país. Fá-lo-ei outra vez e ainda melhor». Ao que Kamala ripostou, acusando o adversário de ter deixado «a taxa de desemprego mais alta desde a Grande Depressão».

O aborto

O aborto é uma das questões que mais divide os americanos, principalmente desde 1973, data do veredicto do importante caso Roe v. Wade.

A vice-presidente é uma convicta defensora do direito ao aborto, enquanto Donald Trump tem apresentado algumas incongruências – aspeto mencionado pela moderadora, Linsey Davis –, mas desta vez deixou clara a sua posição após a atacar os democratas por não quererem limitações ao aborto, chegando a mencionar que alguns defendem o aborto até aos nove meses. «Os democratas são radicais (…) Acredito nas exceções [para o aborto no caso] de violação, incesto ou [perigo de] vida da mãe». Davis volta a interferir e afirma que isso não é legal em qualquer Estado americano. Também Harris condenou Trump e garantiu que as proibições ao aborto propostas pelo adversário «não preveem violação ou incesto», insistindo em colar o republicano ao Projeto 2025, mesmo depois do mesmo se afastar de forma constante.

A obsessão que Kamala demonstrou pelo Projeto 2025 poderá ter sido uma estratégia para não responder de forma direta à pergunta – tanto da moderadora como de Trump- sobre se apoiava alguma restrição ao aborto.

Imigração e segurança na fronteira

A imigração e a situação descontrolada na fronteira com o México têm sido dos temas mais importantes da campanha. Kamala Harris é uma das responsáveis pelo sucedido, o que lhe valeu a alcunha de ‘border czar’ (a czarina da fronteira). O número de passagens ilegais aumentou de forma exponencial durante a administração Biden e é um dos temas mais explorados pelos republicanos, a par da economia.

A questão mais importante, também levantada pela moderadora, é se Harris tomará uma atitude diferente em caso de eleição. A vice-presidente refugiou-se no seu passado como procuradora-geral, indicando que combateu o tráfico de drogas, de armas e de seres humanos enquanto líder máxima da Justiça do Estado da Califórnia, acabando por não responder diretamente à questão. O ex-Presidente destacou problemas nas cidades com maior número de imigrantes e chegou a referir que «em Sprinfield estão a comer os cães, os gatos e os animais de estimação de quem lá vive». Foi, talvez, o ponto mais caricato do debate e é um reflexo da qualidade e profundidade da discussão na mais alta esfera da política americana.

goncalo.nabeiro@nascerdosol.pt