Francisco George: “Temos de ter uma visão de prevenção para a saúde e não só de tratamento”

Francisco George recorda que temos um orçamento de 15 mil milhões para a Saúde, mas para a prevenção vai menos de 1%. Defende um programa nacional de vacinação para quem tem mais de 65 anos e não hesita: ‘Sabemos que as vacinas tem um custo benefício altamente favorável”.

Apresentou agora no Parlamento através do projeto +Longevidade um conjunto de 21 recomendações de políticas públicas que têm como objetivo reforçar a proteção vacinal na idade adulta em Portugal. Qual a sua importância?

Temos de ter em consideração que em Portugal há uma faixa muito significativa da população que tem mais de 65 anos de idade. São 2,5 milhões de residentes com estas idades e representam um em cada quatro residentes no país. Hoje sabemos que  a proporção dos adultos acima de 65 anos de idade vai aumentando ano após ano. Há, portanto, uma faixa muito significativa da população que não pode ser ignorada em termos de proteção e que na Sociedade Portuguesa de Saúde Pública chamamos de processo de envelhecimento protegido que tem em conta, sobretudo, questões ligadas aos comportamentos ou estilos de vida, as doenças infecciosas, não só em termos de mortalidade específica em relação a esta ou aquela doença, mas sobretudo às complicações graves que muitas são evitáveis e aumentam a probabilidade de internamento hospitalar, as admissões em cuidados intensivos e as despesas daí decorrentes, como os medicamentos necessários, além da incapacidade temporária que originam.

As vacinas podem contribuir para que estas situações sejam evitadas?

Sim e é no contexto deste exercício que se propõe um calendário vacinal que pode fazer parte do Programa Nacional de Vacinação, à semelhança do calendário que já existe para as crianças e jovens que começa logo à nascença com a vacina contra a hepatite B, depois contra a difteria, tétano, tosse convulsa, paralisia infantil, rubéola, papeira e sarampo. Todas essas doenças que são alvo de vacinação no calendário estabelecido evitam e reduziram de uma forma muito visível a importância que representavam essas doenças. As senhoras não sabem o que é ter um filho com sarampo e isso deve-se à vacinação e ao sucesso do programa de vacinação. Agora os desenvolvimentos científicos e tecnológicos mostram que há novas vacinas que podem proteger com segurança e com grande efetividade as pessoas acima dos 65 anos de idade. Não só em relação às doenças infecciosas respiratórias, quer de natureza bacteriana, quer de natureza viral, mas também em relação a outras doenças, como, por exemplo, os herpes zóster que os portugueses da província chamavam de cobrão e que agora também dispõe de uma excelente vacina e evita zona nas pessoas que tiveram varicela durante a infância. Isto para dizer que há hoje vacinas muito seguras para a gripe, mas não a clássica. Há para os adultos uma vacina ainda mais eficaz que é a chamada alta dose que em Portugal está a ser dada aos residentes com 85 e mais anos, mas pode ser aplicada a idades mais inferiores. Mas também há novas vacinas para as doenças pneumocócicas que evitam sobretudo as pneumonias e que são uma causa muito importante de morte no país, além de vacinas para outras infeções respiratórias como aquelas que são provocadas pelo vírus sincicial respiratório. Há uma série de vacinas, juntamente com a da covid-19, que podem evitar doenças e por haver menos doenças também haverá menos complicações graves.

Pode-se concluir que quem está nas enfermarias ou nos cuidados intensivos são maioritariamente pessoas que não foram vacinadas?

Grande parte. E o que propomos é o desenho de um calendário vacinal que proteja aqueles que têm uma idade superior a 65 anos de idade, o tal envelhecimento protegido. No entanto, há um princípio que não pode nunca ser ignorado que é o da democracia e o que propomos é que todos aqueles que representam esta faixa de grupos etários mais idosos da população tenham acesso por igual, sem restrições, sem limitações. É necessário fazer cumprir a democracia no nosso país.

Já arrancou a vacinação contra a gripe e a covid e é para todos…

Exatamente. Esse é um belo exemplo de acesso gratuito igual, universal e sem limitação destinado a ricos e pobres. Por exemplo, um cidadão com 80 anos que se queira proteger em relação à gripe e às suas complicações se tiver rendimentos familiares poderá adquirir a vacina da alta dose na farmácia que custa cerca de 45 euros, mas quem não tiver esses 45 euros fica apenas protegido com a vacina comum, sazonal. Isto é um exemplo de um gap em termos de acesso que em saúde pública não é aceitável.

E quando começar o inverno é expectável que as gripes voltem a entupir as urgências hospitalares…

Sim, costumamos dizer que não há inverno sem gripe. A gripe tem sempre uma expressão sazonal. E porquê? Porque o vírus da gripe dá a volta ao mundo em 180 dias. Quando está frio no hemisfério norte está calor no hemisfério sul e vice-versa e é bom vermos este processo cíclico com o Brasil. As estirpes que circulam durante as semanas frias do ano no Brasil vão circular agora mas, entretanto, tiveram um processo de mutação. É por isso que dizemos que os vírus da gripe são mais camaleões do que os próprios camaleões. Recebemos no nosso hemisfério norte informação de estirpes que circularam no Sul até ao mês de fevereiro e as empresas farmacêuticas – nós em Portugal não temos nenhuma, importamos vacinas –  produzem novas vacinas para a estação que se aproxima a seguir, a partir do outono. Por isso, chamamos vacinas sazonais, são para esta estação. As mutações acontecem durante as infeções. Os vírus são partículas e ainda hoje se discute se têm vida ou não. Há defensores da tese de que são partículas vivas e há defensores que dizem que são inertes. Acontece, porém, que fora do hospedeiro, pode não ser o corpo humano, os vírus têm grande estabilidade, mas assim que penetram nas células da mucosa respiratória provocam infeção e, ao mesmo tempo, desencadeia-se um processo de mutação. E um conjunto de mutações que tenham uma certa estabilidade dá origem a uma variante, como aconteceu e ainda hoje acontece com o vírus da covid-19 que é um vírus totalmente diferente. A sua composição é totalmente diferente da do vírus da gripe que é conhecido há muitos anos. Foi descoberto, em 1933, e a primeira vacina para o vírus da gripe começou logo três anos depois da sua descoberta, ou seja, em 1936. E desde então tem sido cada vez mais afinada.

E como vê os movimentos em torno da resistência à vacinação?

São grupos de pessoas mal informadas porque têm uma crença, têm um fetiche, etc. Têm direito a não acreditar, agora não têm o direito de impor riscos aos outros.

Isso vê-se nas escolas quando assistimos a surtos de sarampo, por exemplo…

A criança por não ter sido vacinada adquire sarampo e depois transmite aos que têm fragilidade do sistema imunitário e é um vírus particularmente grave.

E faz sentido ainda haver esta falta de informação?

É um problema de informação, de literacia, de educação e é um problema sobretudo de ignorância.

Não poderá ser por descrédito das instituições?

Há países com bolsas importantes de resistência, como a França, Itália e os Estados Unidos da América, mas isso tem a ver com movimentos de pessoas que beneficiaram da vacinação e que não sabem o que é ter sarampo. Hoje, uma pessoa com idade inferior a 50 anos não sabe o que é sarampo, mas não sabe porque foi controlado. Há uma expressão muito curiosa que alguns epidemiologistas usaram, porque já previam, que é que a vacina ao fazer desaparecer as doenças acaba por ser a maior inimiga do programa de vacinação porque como as doenças desaparecem, as pessoas não sabem o que é ter uma criança no bairro com paralisia infantil. Antigamente toda a gente sabia, sobretudo nos bairros pobres, que apareciam problemas de poliomielite que é paralisia infantil, em que as crianças ao acordar deixavam de ter força muscular e caíam para o chão. Como médico ainda vi crianças com paralisia infantil, mas esta doença desapareceu devido ao programa de vacinação. As pessoas desses movimentos de resistência não acreditam na vacina porque não viram as doenças. É um processo complexo, mas que é dominado pela ignorância.


Fala na importância de avançar com um programa nacional de vacinação para adultos. Essa sensibilização não deveria ter sido feita mais cedo já que estamos quase no Inverno?

Sou presidente da Sociedade Portuguesa de Saúde Pública e, como tal, não posso emitir e formar juízos ou opiniões que contrariem os assuntos conduzidos pelo Ministério da Saúde. Não é esse o meu papel. O meu papel é ter opiniões, emitir pareceres fundamentados em ciência. Mas respondendo em termos genéricos. Houve uma mudança de Governo e foi introduzida a vacina para 85 e mais anos, enquadrada pelo orçamento anterior, mas temos de ter em conta que o país tem uma grande despesa em termos absolutos com a Saúde, cerca de 15 mil milhões euros, mas a proporção para a prevenção é muito diminuta: é menos de 1%. Isto é, em cada 100 euros daquele grande montante há só um euro que vai para a prevenção, o que é manifestamente uma produção frágil e tem de ser mudada. Daqui em diante o país tem de ter uma visão de prevenção para a Saúde e não só de tratamento.

O estudo diz que houve um aumento de despesas de 245 milhões de custos diretos e indiretos para travar doenças. Se houvesse esse reforço na prevenção não estaríamos a falar destes montantes?

Não. Sabemos que a vacinação, em regra, tem um custo benefício altamente favorável. Portanto, os montantes necessários à aquisição das vacinas, em termos de escala, a acordar com as farmacêuticas e no contexto da União Europeia, são um investimento inicial imediatamente compensado. E, de forma comprovada, com menos morte, menos doença, menos complicação, menos hospitalização, menos cuidados intensivos, menos tratamentos e menos baixas.

E num país, em que a resposta em termos de urgências é bastante deficitária de uma forma generalizada…

Com certeza. Precisamos de um outro modelo. Todos reconhecem, incluindo o antigo ministro de Durão Barroso, Luís Filipe Pereira que tem manifestado muitas vezes esta opinião, que Portugal gasta pouco em prevenção, é preciso alargar os montantes destinados à prevenção em benefício de todos. O nosso problema não é só a longevidade, não é vivermos mais tempo, é vivermos de forma protegida, não termos incapacidades.

Essas contas estão feitas entre o que se investe e o que se poupa com esse investimento?

O investimento depende dos termos a acordar com as empresas farmacêuticas e da escala das aquisições. Hoje sabemos que é possível, num contexto de cooperação bilateral, por exemplo, com a Espanha e também neste regime, diria federativo da União Europeia, que seria possível adquirir estas novas vacinas a preços mais baixos. As poupanças seriam sobretudo devidas à menor hospitalização. E como é que se calcula esta poupança? Porque os custos diários de uma cama ocupada no hospital são conhecidos. Os economistas na Saúde e os administradores sabem bem quanto custa uma cama num hospital central ou uma cama de cuidados intensivos. E esses custos deixariam de ter lugar.

Estamos agora na véspera da discussão de mais um Orçamento do Estado. Esta é uma questão que irá ser discutida?

Comentar isso constituiria da minha parte uma certa forma de pressão e eu não adoto essa posição de pressionar para conseguir alguma coisa. A minha posição, como presidente da SPSP, é demonstrar que há caminhos cientificamente fundamentados que podem ser bons para o país, da mesma maneira que determinadas opções podem ser más. Agora, um trabalho de pressão através dos media para que esta ou aquela medida seja tomada pode ser regular mas não é a minha opção. O que posso garantir  é que é uma boa opção. Eu comprei a vacina de alta dose contra a gripe, mas eu posso. Mas há todos os outros que não podem. E esta é uma vacina mais eficaz, sobretudo para aqueles que têm mais idade. Há um estudo feito na Galiza que demonstra de uma forma muito clara os efeitos desta vacina em termos de diminuição da incidência da doença, na mortalidade e de menos complicações. Mas, como disse, ela é comprada por quem pode. Há aqui a questão de desigualdade.

Mas tendo estado à frente da DGS tantos anos, estas recomendações vindas de si poderão ter mais impacto?

Estas recomendações não podiam ter sido feitas até 2017, altura em que estive na Direção Geral, porque estas novas vacinas de grande eficácia não estavam disponíveis e resultaram de avanços científicos e tecnológicos muito importantes, como a covid-19. Agora, se o meu rosto, a minha posição pessoal, for útil para promover a proteção ao longo do processo do ciclo de vida do envelhecimento, para estabelecer formas de ser socialmente aceite a proteção para o envelhecimento, fico muito satisfeito. É um trabalho que faço de forma voluntário, sem qualquer tipo de remuneração direta ou indireta e que faço de acordo com a minha consciência, com o meu saber, com os conhecimentos que adquiri e que tenho em prol do interesse público. Caso contrário não ia protagonizar uma iniciativa desta natureza. Não tenho outra ambição a não ser contribuir para a promoção da vacinação de adultos em Portugal, da mesma maneira que tive na promoção da vacinação e do calendário para crianças e jovens.


Estamos preparados para entrar neste inverno para responder às necessidades ou vamos ter novamente filas nas portas das urgências?

Temos que estar. Esse é um assunto de natureza política e os cidadãos assim esperam e assim o exigem.

Ainda todos nos lembramos das imagens de filas intermináveis de ambulâncias à porta de vários hospitais…

Não é aceitável. Essas imagens não são aceitáveis.

A nova estrutura do SNS é benéfica para resolver este problema?

Tem de beneficiar. Mas essa é uma questão política que neste momento é motivo de preocupação para aqueles que se ocupam da administração hospitalar, da administração da saúde dos especialistas. Não tem uma resposta simples e não pode ser ignorada. Temos que ser audazes. É preciso tomar medidas sem receio, medidas que sejam focadas para aquelas urgências, para diminuir a pressão e atender os doentes agudos de uma forma diferente dos doentes crónicos. Estou a trabalhar num ensaio sobre o pensamento de Ribeiro Sanches em 1757, há quase 300 anos, e ele põe esta questão dos hospitais destinados a atender agudos que não podem ser os mesmos destinados ao tratamento de doentes crónicos. Diria que é um problema que os políticos sabem que acontece e que há com certeza medidas que têm que ser tomadas.

Mas a reestruturação do SNS é o caminho?

Ninguém pode dizer que não é.

E a criação da especialidade em urgência hospitalar, como avalia?

Há aspetos favoráveis e muitos internistas consideram que, com isso, há uma amputação da especialidade de medicina interna a favor da criação de outra. Mas essas questões são para ser discutidas no âmbito da Ordem dos Médicos.

Com esta estrutura foram retiradas algumas competências à DGS. Como avalia esta decisão?

Houve, de certa forma, algum risco, mas que não se concretizou. A Direção-Geral de Saúde é insubstituível. Dia 4 de outubro comemora-se os 125 anos da sua criação. No tempo do Rei Carlos de Bragança, o Governo, decidiu criar a DGS para evitar a propagação da peste para fora do Porto, para preparar o país para o confronto com a peste que há muitos anos não existia em Portugal. Desde então a DGS mostrou ser uma instituição indispensável e estou convencido – não sei se me fica bem dizer isto – que todos gostam da DGS porque sabem que as opiniões, as recomendações e os alertas têm fundamentação científica e não cariz político.

O facto de não se ter esvaziado as competências é positivo?

Muito positivo, com certeza. Espero bem que, pelo contrário, haja um reforço em meios que seja tido em conta, porque a DGS tem um enorme saber para enfrentar estas questões herdado daqueles que foram diretores gerais no passado. Há ali um sentimento de responsabilidade que é impar.

Outra das questões centrais na Saúde é a falta de médicos de família…

O tema dos médicos de família tem sido um insucesso, sobretudo as promessas de mais médicos de família. É preciso saber trabalhar, saber dignificar a profissão, dignificar a especialidade, ter em conta os salários e as carreiras. Não podemos ter médicos de família sem remuneração adequada de forma a poderem ter condições para trabalhar. Sendo uma questão prioritária, temos de garantir que os médicos jovens devem ter condições de trabalho, antes de mais nada, de carreiras e de remuneração. Estão na idade de criar famílias e é preciso ter em conta o acesso à habitação. Não faz qualquer sentido que o salário de um médico na especialidade seja totalmente gasto na habitação.

Como a formação…

Mais do que isso: carreira. A carreira médica está centrada no serviço público. Os hospitais privados não asseguram o processo contínuo para a progressão da carreira. Também não faz sentido as diferenças regulamentares que existem entre o setor público e o setor privado. Alguém nos diz qual é a razão de uma maternidade ou de um hospital público, no setor público, ter que ter determinado número de obstetras, de anestesistas, de pediatras e no setor privado não? Onde está a regulação? No privado a parturiente entra e faz o parto e ninguém questiona quantos estavam na equipa. Mas faz algum sentido? Tem que ser um sistema equitativo e criar os mesmos critérios de exigência para os dois setores, público e privado.

Mas questiona os critérios ou apenas o fato de não serem aplicados de forma igual?

 Os critérios devem ser eventualmente revistos pelos colégios da especialidade sempre numa perspetiva de manter a segurança, mas sobretudo devem ser aplicados da mesma forma, exigir do privado o mesmo cumprimento destes critérios. A segurança para uma maternidade, um bloco de partos no setor público ou um bloco de partos no setor privado, não deve ser igual?