Arturo Pérez-Reverte: “O ser humano é bom e mau ao mesmo tempo. Pode-se ser herói de manhã e violador à tarde”

Foi repórter de guerra durante vinte anos. Conheceu guerrilheiros, torturadores e violadores. Sabe o que é estar debaixo de fogo, a ouvir as balas a passar. E colocou toda essa experiência no seu mais recente romance, Revolução (ed. ASA).

Autor de sucessos como A Tábua de Flandres, O Clube Dumas e O Pintor de Batalhas, Arturo Pérez-Reverte dispensa grandes apresentações. Nasceu há 72 anos em Cartagena (região de Múrcia) e foi durante cerca de duas décadas repórter de guerra. Esteve na Nicarágua, em Angola, no Líbano, na Eritreia e em muitos outros cenários de conflito. Considera essa experiência decisiva para escrever os seus romances, com os quais tem conquistado o reconhecimento não apenas dos leitores, mas também da crítica e dos seus pares. Desde 2003 é membro da Real Academia Espanhola.

O seu livro mais recente, Revolução (ed. ASA), ambienta-se no México de 1911, em plena revolução de Emiliano Zapata e Pancho Villa, e tem por protagonista Martín Garret Ortiz, um jovem engenheiro de minas espanhol que se vê desocupado e acaba por aderir ao grupo dos revoltosos. «De certa forma é a minha própria biografia. Sou um jovem que vai para a guerra com vinte anos, e descubro que a guerra é uma escola de aprendizagem muito interessante», revela-nos o autor. Encontrámo-nos com ele num hotel de Lisboa – e foi precisamente por aí, pela cidade e as suas transformações recentes, que a conversa começou.

Lembro-me de há uns anos me cruzar consigo nos Restauradores. Vem a Lisboa com frequência?

Venho muito, mas cada vez que cá venho fico furioso.

Porquê?

Porque os turistas destruíram a cidade. Venho a Lisboa há 50 anos. E a Lisboa de que me lembro é uma Lisboa elegante, tranquila, bonita. Isso desapareceu. Está a acontecer o mesmo em Sevilha, em Barcelona, em Paris. O turismo está a destruir completamente a Europa. São turistas que se estão a borrifar, nem sabem onde estão, se é Lisboa ou Porto, não se dão ao trabalho de conhecer a história, não falam uma palavra de português. Vêm e vão. É um turismo absolutamente analfabeto.

Em Paris assisti a uma cena insólita. Uma rapariga no Louvre tirou uma selfie com a Mona Lisa e foi-se embora. Nem sequer olhou para o quadro, esteve sempre de costas!

Isso é a Europa neste momento. E Lisboa, que estava um pouco à parte, também caiu na armadilha. A Europa foi sempre uma referência intelectual, cultural e moral. E o turismo de massas está a destruir isso. Nenhuma cidade aguenta cinco mil turistas que saem de um cruzeiro e nem querem saber onde estão, basta-lhes fazer uma foto e já está. O problema é que as cidades se transformam para adaptar-se a esse tipo de turista – um turista que não é exigente culturalmente, socialmente, que tanto lhe faz. Onde antes havia um restaurante onde se comia um bacalhau, agora há uma pizaria ou uma loja de burritos mexicanos ou de hambúrgueres. Essa Lisboa bonita, elegante, morreu. Sempre que cá venho dá-me uma grande melancolia. Cada vez mais a vejo entregue a esse turismo que é bom para a economia, mas destrói a essência de qualquer lugar e uniformiza tudo. Hoje, estar em Milão, em Barcelona ou em Lisboa é a mesma coisa – as mesmas lojas, as mesmas marcas, as mesmas pessoas, tudo igual.

São as novas invasões bárbaras.

Exato. Estes são os novos bárbaros. O que vai destruir a alma da Europa não é o Islão, é o turismo indiscriminado, maciço, brutal, analfabeto, que não percebe nem quer perceber.

Muito bem, vamos então começar…

Mas já começámos!

Tem razão. [risos] Em relação ao seu livro, porquê escrever um romance sobre a revolução mexicana, mais de cem anos depois? Donde surgiu essa ideia?

Queria contar a história de uma aprendizagem de vida. Como um jovem normal, através da violência, da revolução, da morte, da incerteza, do sexo, descobre a vida e se torna maduro e adulto. Podia ter escolhido outra coisa, mas a revolução mexicana dava-me muitas possibilidades narrativas. Primeiro, porque um amigo do meu bisavô esteve no México, na altura da revolução. Era também engenheiro de minas, como o meu avô [e o protagonista do livro, Martín] e mandava-lhe cartas. Essas cartas estão em minha casa, e eu li-as. Essa é uma das razões que me levaram a escolher a revolução mexicana. Mas há outra. Um romance precisa de um cenário em que os personagens e a ação se desenvolvam bem. E o México dava-me essas possibilidades – a revolução, um povo analfabeto, violência, inocência atraiçoada, um tesouro… No México houve, na realidade, duas revoluções: a do sul, com Zapata, e a do norte, com Pancho Villa. A do sul era demasiado triste. Zapata era um índio trágico, sombrio, obscuro, que sabia que ia morrer. Pancho Villa era um bandoleiro simpático, mulherengo, corrupto. Era muito mais interessante o ambiente no norte do que no sul…

Aliás, aqui na capa, esta silhueta dos cavaleiros faz lembrar D. Quixote e Sancho Pança, também duas figuras contrastantes – D. Quixote esguio e idealista, Sancho prático e redondo.

É um pouco isso, sim. Villa era um tipo muito simpático, arrebatador, mas também cruel e duro. E depois havia outra coisa que me interessava muito. Este não é só um romance inventado, de certa forma também é a minha própria biografia. Sou um jovem que vai para a guerra com vinte anos, e descubro que a guerra – não a guerra em si, mas o que acontece lá – é uma escola de aprendizagem muito interessante. Aprendo coisas sobre a vida, sobre o amor, sobre a lealdade, a morte, a violência, a tortura. Para mim, durante vinte anos a guerra é uma aprendizagem. E queria transferir essa minha experiência para uma personagem. Não ia falar de mim, mas…

Ia falar de si através da personagem.

Exatamente. Um romancista escreve com três elementos: o que leu; o que viveu; e o que imagina. Eu tenho uma vantagem: passei vinte anos em lugares muito violentos, nos quais recolhi informação muito densa. Quando falo de matar, de torturar, não estou a inventar, estou a recordar-me. Portanto recorro à minha memória – para este romance li toda a literatura sobre a revolução mexicana, todos os romances, tenho uma biblioteca grande e li tudo o que pude –; ao que imagino; e à minha própria biografia. Sei o que sentimos quando estamos debaixo de fogo, quando estamos a fugir sozinhos ou quando estamos rodeados de militares amigos.

Ou quando se ouve as balas a passar.

Não preciso que ninguém me conte, sei como é. Claro que a guerra hoje não é igual ao que era em 1911 ou nos anos vinte. Mas os elementos essenciais são esses. Estive em Angola no princípio dos anos 80 – 1981 ou 82 – com a guerrilha da UNITA. No meio do mato havia um pequeno hotel, com garagem e tal, e eu estava lá com os guerrilheiros a beber umas cervejas. Ali ao lado havia um mercenário português, chamado Fernando, que estava a torturar um preto inimigo, porque queria arrancar-lhe informações.

E ouvia-se?

Eu ouvia gritar: ‘Aiii’. O tipo depois apareceu todo suado. Tinha combatido em Angola e ficou lá como mercenário. Era um tipo pequeno, calvo, com barriga, mas simpático. Um torturador também pode ser simpático – quando não te tortura [risos]. Paguei-lhe uma cerveja e começámos a conversar. Contou-me coisas muito interessantes. Por exemplo, que é mais fácil torturar um inteligente do que um estúpido. O inteligente, basta-lhe pensar que vai ser torturado e começa a tremer. O estúpido, se não tens cuidado, podes matá-lo. Aprendi, com três cervejas que lhe paguei, muitas coisas sobre o ser humano, a tortura, a violência, a crueldade. E aprendi que o mal pode não ter má cara. Era um tipo simpático, divertido, podia estar aqui a contar-te uma piada. Esse tipo de experiência que tenho na memória é-me muito útil para contar as minhas histórias.

Nesses contextos a bebida e os cigarros ajudam a estabelecer relações, a fazer amigos?

Muito. As pessoas aqui não percebem como isso é importante na guerra. A guerra é solidão, rotina… Eu falo da guerra, mas não a fiz. Ia e vinha, era um turista da guerra, digamos. Mas aquele que está metido num buraco na Ucrânia – quem diz na Ucrânia diz em Troia ou nas cruzadas – não tem nada. Então, claro, um cigarro ou uma bebida, os camaradas… Montam-se núcleos de sobrevivência com essas pequenas coisas. Eu na altura fumava, mas levava sempre para a guerra muitos cigarros, porque chegava a um sítio e a forma de fazer amigos era distribuir tabaco. Sentávamo-nos a falar e ao fim do dia diziam-me: ‘Vamos atacar amanhã. Vem connosco’. Os cigarros ajudaram-me imenso. Em Angola, em El Salvador, na Nicarágua, no Líbano… não fazes ideia do que consegui graças aos cigarros. Fiz muitos amigos. Chegas, ofereces um maço de tabaco e já está.

Uma das questões que o romance coloca tem que ver com o que move os revolucionários. Tanto pode ser o idealismo como o pragmatismo, tanto pode ser o sentido de justiça como o proveito pessoal. Perto do final do livro, o índio Sarmiento resume isso numa frase: «A revolução só lhes importava enquanto estivessem em baixo; uma vez em cima, iam acomodar-se…». Também vê as coisas assim?

É verdade. Vimos isso em muitos sítios. Na Rússia, em Cuba, em Angola, Moçambique, e até em Portugal. Como repórter, cobri várias revoluções – a da Roménia, a da Nicarágua… Estive na Nicarágua com os sandinistas. Lutaram para que agora Ortega tenha a sua quinta, que se chama Nicarágua. Quase todas as revoluções acabam assim. A ideia pode ser boa e nobre, mas é concretizada por seres humanos. O ser humano tem dentro de si ambição, vaidade, luxúria, cobiça, e isso faz com que, quando chega ao poder, as boas intenções desapareçam. Todas as revoluções acabam sempre nas mãos dos mesmos. Quem fez a revolução é sempre afastado… Vê Salgueiro Maia. Um homem bom, corajoso, honrado. Um herói que se arriscou de verdade, enquanto os outros ficavam atrás a ver o que dava. O que é que lhe aconteceu? ‘Agora vai para o quartel que fico eu aqui a mandar’. Isso é a história da humanidade. E também está aqui no romance.

A sua aprendizagem como repórter de guerra foi também uma aprendizagem de cinismo?

De cinismo não, eu não sou um cínico. A guerra pode fazer-te várias coisas. Quando percebes que o ser humano é um filho da puta e que, no final, é sempre o filho da puta que fica a mandar em tudo, podes tornar-te cínico. Mas também te podes tornar equânime. Continuo a acreditar no ser humano. O que se passa é que não confio no ser humano. Vou tentar explicar…

Não tem ilusões, é isso?

Claro que não. Em 1977 estive na Eritreia, com a guerrilha eritreia que atacou os etíopes em Teseney. Fiquei um mês com eles. Estava doente e cuidaram de mim. Eram como meus irmãos, vivíamos juntos, partilhávamos as refeições, cigarros, conversas. Atacámos a cidade de manhã. Eu também levava armas. Foi um combate duríssimo e muitos morreram. Miúdos novos, verdadeiros heróis. À tarde, depois de vencerem, dedicaram-se a matar prisioneiros e a violar mulheres. Os mesmos. Por isso eu digo: pode-se ser herói de manhã e violador à tarde. Eu na altura tinha 24 anos e percebi que a linha que separa o bem do mal pode ser muito difusa. Isso de bons e maus é relativo. Porque o ser humano pode ser bom e mau ao mesmo tempo – a mesma pessoa e no mesmo dia. Isso ou te torna cínico ou compreensivo. Eu compreendi e hoje admiro o ser humano no que tem de bonito e detesto-o no que tem de sujo e nebuloso. E tento ser equânime. Talvez por causa dos livros. Durante as guerras em que estive li sempre muito, levava uma mochila cheia de livros. Os livros ajudaram-me sempre a entender, a serenar, a compreender, a interpretar.

Que tipo de livros?

Já te digo. Sem livros talvez tivesse voltado maluco ou cínico. Os livros deram-me compreensão, deram-me serenidade, deram-me calma. Talvez lhes deva não ser hoje um cínico. Perguntaste livros de que tipo. Levava comigo todo o tipo de livros, mas sobretudo os clássicos. Quando era estudante tive nove anos de latim e quatro anos de grego. Para mim, a literatura clássica tem sido muito importante. Plutarco, Xenofonte, Homero – A Ilíada, A Odisseia –, os Ensaios de Montaigne, Demóstenes, o Quixote, a Divina Comédia, Chateaubriand. Os livros que me formaram foram os clássicos, os mesmos que formaram a Europa. Uma vez estava a andar no deserto para chegar ao Sudão porque a aviação cubana nos tinha atacado, e pensei na retirada dos dez mil de Xenofonte. Outra vez vi uma mulher que chorava enquanto se despedia do marido e lembrei-me de Heitor e Andrómaca nas muralhas de Troia. Estava sempre a tentar interpretar e foi essa projeção contínua dos livros que tinha lido naquilo que ia vendo que fez com que a guerra fosse nutritiva a nível intelectual. Porque a guerra é sempre horrível. Horrível. Mas tem uma quantidade de lições para nos ensinar. E os livros permitiram-me entendê-la. Imagina que tens um problema, dá-te uma dor qualquer e tomas uma aspirina. A aspirina ajuda-te a suportar a dor, mas não resolve o problema, a causa continua lá. Os livros também não anulavam o horror, mas ajudavam-me a perceber que era uma coisa com três mil anos – os gregos, os romanos, e tal. Quando compreendes, suportas. Se não compreendes, regressas da guerra louco ou cínico.

Não sei se conhece um filme do Robert Zemeckis, O Náufrago, com Tom Hanks.

Sei qual é mas nunca vi.

É uma versão moderna do Robinson Crusoe. O protagonista é um executivo que viaja num avião que cai e vai parar a uma ilha deserta. Consegue viver ali algum tempo, até que é resgatado por um barco. Quando regressa a casa, fazem-lhe uma festa. E aí ele dá-se conta de como tudo aquilo é supérfluo.

Compreendo, passei por isso.

Andou por esses cenários de guerra, por zonas muito pobres, devastadas. Quando regressava a casa, com que olhos via a nossa sociedade e todas as comodidades de que usufruímos?

Custava-me. Precisava de algum tempo para me adaptar. Uma vez, cheguei, e fui jantar com uma amiga. Fui ter a casa dela, saímos e ela fez uma malha nos collants. Passou a noite toda de mau humor por causa da malha nos collants. No sítio de onde eu vinha, tinha visto pessoas que tinham perdido um braço. Aquilo irritou-me muito. A relação terminou naquela mesma noite porque não suportava aquela estúpida que não percebia que era uma tonteria fazer uma cena por causa de uma malha nas meias. Isso é muito frequente, dás-te conta de coisas que aqui têm importância, e lá não têm nenhuma. O que é que interessa que te tenham feito um risco na porta do carro? Vai-se arranjar. Não é como queimarem-te o carro e a casa contigo lá dentro. Uma das cenas mais tristes, mais dramáticas, da minha vida foi na Croácia, em 1991. Chegámos a uma povoação croata que tinha sido atacada pelos sérvios. Entrámos numa casa toda destruída, roubada. Lá dentro estava uma árvore de natal caída pelo chão e um álbum com as fotos de família. As fotos pisadas pelas botas dos soldados. No pátio está a mesma família, todos mortos. O pai, a mãe, o avô e dois filhos. Uma cena silenciosa, não havia ruído, tiros, nada. Tristíssima. Quando tens isso na cabeça e chegas aqui e te dizem que é uma chatice porque estás atrasado para o teatro… ‘Epá, vai à merda’. Sou como todos, também acabo por me adaptar. Mas demora algum tempo. Uma vez tinha voltado do Líbano e estava no jardim de minha casa, a minha filha tinha um ano ou dois, a minha mulher estava a ler e eu também. Era o dia do desfile das Forças Armadas. Vivo na Serra de Madrid, onde os aviões iam dar a volta. Dois aviões passaram a voar a baixa altitude, eu levantei-me, agarrei a minha filha e depois apercebi-me. A minha mulher riu-se, mas tive esse reflexo de pôr a minha filha a salvo. Essas reações podem manter-se durante muito tempo. Passados trinta anos às vezes ainda acordo de noite por causa de algum barulho. Mas isso é normal.

Mas nunca sofreu de stresse pós-traumático.

Não, não. Os livros ajudaram-me a digerir. Forneciam-me esse analgésico, e permitiram que fosse uma experiência nutritiva, não destrutiva.

O livro tem uma atmosfera de western: ruas poeirentas, pistolas, chapéus…

Naquela altura o México era assim.

As personagens andam a cavalo e fumam charuto. Se se passasse hoje, as personagens teriam de fumar vape e de conduzir carros elétricos?

Não, não, na guerra de verdade continuam a fumar tabaco. Vais à Síria, vais ao Líbano e fumam tabaco. E isso dos carros elétricos é outra estupidez ocidental. Quando há uma guerra ou um terramoto, o que acontece? Falta a eletricidade. Como é que se carrega os carros? Como funcionam os tanques e as ambulâncias? Vivemos uma farsa estúpida no Ocidente. Achamos que podemos mudar o mundo segundo os nossos desejos. Mas o mundo não é assim. Os carros não podem ser elétricos porque se falha a eletricidade, se há um terramoto, uma guerra, um atentado terrorista, não podes carregar os telefones, nem os carros, nem nada. Precisas de gasolina. É ridículo. O Ocidente vive numa estupidez suicida. Legislamos para um mundo ideal que é impossível de sustentar e que nunca chegará. E quando vem a tragédia, apanha-nos a todos. ‘Que horror! O que aconteceu?’. O que aconteceu é que o mundo se impõe de novo.

Hoje quando falha a eletricidade, ou o internet, ficamos completamente desorientados.

Olha para o meu telefone [tira do bolso um telemóvel primitivo, ainda com botões e um ecrã minúsculo]. É este. Uso eletricidade, como toda a gente, mas não me passa pela cabeça comprar um automóvel elétrico. Essa espécie de deriva ocidental para o suicídio social, técnico, etc., parece-me assombrosa. As pessoas levam o cartão de embarque do avião no telemóvel. Vi gente que não embarcou porque tinha ficado sem bateria. Porra, imprimam um papel, não custa nada. As pessoas não se dão conta de que todo o avanço moderno teve um acidente específico. Todo o Titanic tem o seu icebergue. Pode aparecer ou não, mas está sempre ali à espreita. Quando era repórter, se íamos para um combate, fazíamos sempre um plano B. Se as coisas correrem mal, para onde vamos, onde nos escondemos, como fugimos? Preparávamos sempre uma via de escape. O mundo ocidental hoje vive sem vias de escape. E isso é suicida.

Para um romancista, o passado é mais estimulante do que o presente?

Hoje o mundo é vulgar.

Feio?

Já há muita gente a escrever sobre o mundo atual. Eu prefiro escrever sobre o passado. Mas os meus romances são falsamente sobre o passado, porque todos têm leituras adequadas ao presente. Todos servem para perceber melhor o presente. Utilizo o passado como mecanismo. Tenho um romance que se chama O Tango da Velha Guarda, é sobre um vigarista, um homem bonito, que veste bem, que gosta de mulheres, que rouba, etc. Um canalha. Mas faz isso de gravata, em hotéis elegantes, seduz mulheres bonitas, rouba-lhes os colares de pérolas, extorque milionários. Agora seria um hacker que entrava no computador de alguém… É vulgar, não tem encanto nenhum. Não me apetece passar um ano e meio a falar de um hacker ou de um tipo qualquer com um telemóvel na mão. Prefiro continuar a mover-me neste território onde me sinto muito mais feliz.

Uma tendência que se verifica muito no romance contemporâneo é o experimentalismo. Parece-me que há uma literatura mais parecida com pintura figurativa e outra mais parecida com pintura abstrata – não quer contar histórias, mas manipular e jogar com as palavras. Há cada vez mais jovens romancistas a querer ser como James Joyce e fazer uma revolução na linguagem.

Sabes qual é o problema? Picasso revolucionou a pintura, desconstruiu a pintura. Mas antes disso aprendeu a pintar muito bem. Primeiro dominou. E depois de dominar decidiu destruir. O problema agora é que com o pretexto de destruírem e de fazerem coisas novas, não leram os clássicos. Encontras escritores jovens, brilhantes, mas a quem falta esse conhecimento dos mecanismos clássicos. Não podes ser um escritor português sem ter lido Homero, Cervantes, Eça de Queiroz, Pessoa, Saramago. Não podes. Precisas de ter uma formação que te permita depois ter a audácia de dar o salto para um mundo novo e desconhecido. Mas querem começar pelo fim sem conhecerem o princípio, e isso nota-se. Faz-me muita pena, porque vejo escritores em Espanha e em Portugal que podiam ser brilhantes, mas falta-lhes essa humildade profissional para conhecer antes de inovar. Uma pessoa pode ser a mais arrogante do mundo, a mais inteligente. No pasa nada [não tem problema], desde que seja humilde profissionalmente, para aprender. Chega e diz: ‘Mestres, sou jovem e quero aprender’. E lê Cervantes, Homero, Dante, Dostoiévski, Galdós, Eça de Queiroz – O Primo Basílio é uma obra-prima universal, um dos meus romances favoritos da literatura europeia. Eles são generosos, recebem-te e explicam-te. E quando já aprendeste podes dizer: ‘Agora vou eu fazer o meu romance’. Eu demorei muito tempo a começar a escrever. Primeiro aprendi. Portanto é isso… Noto uma falta de formação clássica e cultural na literatura que os jovens fazem agora.

O que gosta de ler?

Duas coisas, sobretudo. Releio muita literatura clássica, os clássicos gregos e latinos. E romances policiais. Sabes porquê? Já li muito. Tenho uma biblioteca de 32 mil livros em casa – metade deles são livros de História. Quando leste tanto, digamos que já esgotaste as fórmulas que te podem surpreender. Mas o romance policial tem sempre qualquer coisa. Agatha Christie, Conan Doyle, Simenon… Encontro neles mais interesse e diversão do que na literatura, digamos…

Séria?

A literatura que fala de um divórcio, de um casamento, de um caso de assédio. Isso já vem nos jornais. Leio agora a literatura policial com mais interesse e com mais diversão.

Há jovens escritores que lhe pedem conselhos?

Sim, muitos.

E o que lhes diz?

Nunca dou conselhos. Digo-lhes que leiam. Quando um jovem escritor – jovem ou velho – te leva um livro, nunca quer que lhe digas a verdade.

Quer que lhe diga que é fantástico.

Se lhe dizes a verdade, não gosta. Aprendi isso há muito tempo. Não, já não dou conselhos, nunca. Não quero. Porque se lhes dizes a verdade, vão ficar ofendidos e não vão aprender. E se mentes estás a ser desonesto. E também nunca deves dar um romance a ler àqueles que gostam de ti – a tua mulher, o teu amigo. Porque também nunca te vão dizer a verdade.

Então a quem dá a ler os seus livros?

A ninguém, aos editores. Escrevo romances há 35 anos, não preciso que me digam nada.

Imagino que a vida do escritor envolva muitas outras coisas. Reuniões, negociações com os editores, promoção dos novos livros… Escrever é apenas a parte mais agradável?

Não. Eu odeio escrever. Odeio, não gosto. Escrever é um processo mecânico, aborrecido, esgotante. É um trabalho de rotina. O que eu gosto é de imaginar. Os meus romances têm duas fases: primeiro, a fase da preparação e depois a fase da escrita. A fase de preparação é magnífica, é como estares apaixonado. Durante um ano, um ano e meio lês, viajas, observas, tomas notas – esta rapariga que passou, aquela música, a paisagem, as cores do lugar. O meu último romance, que vou apresentar para a semana, decorre na Grécia. Estive na Grécia a trabalhar numa ilha, a ver. Essa é a parte maravilhosa, como apaixonares-te. Mas depois é preciso escrever – e essa é a parte de que já não gosto, a parte mecânica, do dia-a-dia. Mas também é necessária para justificar a fase anterior. Se um dia inventarem um aparelho que enfias no ouvido e sai o texto escrito no computador, ficarei muito contente, porque não gosto nada dessa parte.

Então não acredita na inspiração…

Acredito. Mas acredito sobretudo no trabalho. A inspiração é um momento, o trabalho é contínuo. Os meus romances não se escrevem com inspiração, escrevem-se com trabalho. A inspiração pode ser uma história, uma personagem, uma cena que te ocorre. Mas depois é preciso um trabalho organizado, sistemático. Todos os dias trabalho entre seis e oito horas. Mesmo que tenha problemas, que esteja doente, que me doa alguma coisa ou que tenha morrido o meu pai, todos os dias trabalho. Porque é o trabalho que permite que a inspiração produza resultados interessantes.

Porque se estamos à espera que a inspiração chegue…

Há dias em que não estou com ganas de trabalhar. Se calhar também há dias em que não te apetece trabalhar. Mas sento-me à secretária e no final há sempre qualquer coisa que se aproveita. Se dizes: ‘Hoje não estou a conseguir’ e tal, começas a deixar de trabalhar e vais-te perder.

Faz muitos apontamentos para usar mais tarde? Por exemplo, está ali um gordo sentado que pode ser interessante para uma cena qualquer num hotel.

Sim, pego num guardanapo, tiro a caneta e tomo nota. Os meus bolsos estão sempre cheios de apontamentos, tenho cadernos por todo o lado, tomo notas até nos sacos para vomitar dos aviões. Foi sempre assim – quando era repórter e agora que sou romancista. Sou um romancista feliz. Não sofro quando estou a trabalhar num romance. Há romancistas meus amigos que se queixam da escrita, da dor criativa, da angústia da página em branco… ‘Se não gostas muda de profissão, não escrevas, dedica-te a outra coisa que te faça feliz’. Escrever faz-me muito feliz. Deito-me à noite a pensar que vou escrever a cena tal. Adormeço a pensar nisso, como quando era miúdo a pensar nos Reis Magos [que, segundo a tradição, levam os presentes de Natal]. Levanto-me sem dizer nada, sento-me ao computador, taca, taca, taca, taca, taca. Uma página e meia. Duas páginas. Muito bem. Imprimo em papel. Risco, corrijo, rescrevo. É como um caçador que mete tudo no saco. Não sei se vou aproveitar aquele gordo ou se o deito fora. Ou aquela mulher bonita que está a sorrir. O romance de que falei, O Tango da Velha Guarda, começou com um apontamento. Estou em Buenos Aires – isto passou-se há 25 anos – no bar de um hotel muito elegante. E há um rapaz e uma rapariga que estão a dançar o tango. E quando essa dança termina, o bailarino vai buscar uma senhora do público, uma senhora elegante, bonita, madura. E tomei nota: ‘senhora a dançar o tango’. O romance parte daquela cena. Como nunca sei o que vai ser útil, vou tirando apontamentos e guardo tudo.

Viaja muito?

Sim, viajo. Publico em 40 países, mas já não vou a todos. Agora só vou onde estiveram os romanos – França, Itália, Portugal… E vou muito ao México e à Argentina. E depois viajo para trabalhar nos meus romances. Tenho 73 anos, viajar, chegar a um sítio novo, ou mesmo conhecido, andar na rua, estar sozinho a pensar, tudo isso me ajuda a ser criativo e mantém-me em forma. Além disso, tenho um veleiro e passo muito tempo no mar. A minha outra vida é o mar. Quando estou cansado das viagens e dos romances vou navegar durante um mês. Vou à Sicília, à Sardenha ou à Grécia. Navego, leio e depois volto e continuo a trabalhar.

E não é arriscado?

O quê?

Andar no veleiro. Ainda há pouco tempo naufragou um na Sicília.

Claro que é arriscado. E a vida? Atravessar a estrada também é arriscado. Estar aqui com estes filhos da puta à nossa volta também é arriscado, porque te faz perder a fé na humanidade. Tudo é arriscado. A vida está cheia de riscos. O mar, claro, mas também podes escorregar e cair na banheira. Na guerra dispararam e não me acertaram. Alguma vez terá de ser. Vocês portugueses são atlânticos, marinheiros tristes. Eu sou mediterrânico. O mar é luminoso, azul, cheio de história, de memória, e navegar no Mediterrâneo é para mim uma necessidade e uma bênção.