A pessoa chave do Governo de Transição angolano era, a meu ver, Vasco Vieira de Almeida. Elaborou um extenso programa económico para Angola, em que, sector a sector, identificou os agentes económicos existentes e descreveu o papel que era esperado de cada um, transcrevendo muito do que constava do último Plano de Fomento do Governo português. O Programa acabou por não sair do papel, pois a situação descontrolou-se sob a responsabilidade dele e dos outros membros desse Governo, ocasionando uma fuga de gente de Angola com proporções bíblicas.
Vivi com Vasco Vieira de Almeida um episódio pós-Acordos do Alvor que me deveria ter ajudado a desvendar melhor o futuro. No Governo de Transição aqui referido, que englobou o MFA, o MPLA, a UNITA e a FNLA, esta ficou com a pasta da Agricultura. O Ministro era Mateus Neto. Creio que se intitulava engenheiro, um homem simpático mas com pouca experiência nas complexas matérias da sua responsabilidade, nomeadamente em sectores onde estavam a surgir problemas fracturantes, como sucedia nas açucareiras Cassequel e Companhia de Açúcar de Angola, que era ao que eu ia. Havia que preparar um diploma legal para desbloquear algumas destas questões, tendo o Ministro pedido a minha presença no Palácio do Governo para falarmos de aspectos importantes para aquelas empresas, grandes clientes do Inter Unido. Num acanhado gabinete, e com a porta aberta, a conversa foi morosa e difícil, mas estava a correr bem. Inesperadamente, surge Vieira de Almeida (Ministro com a pasta da Economia pelo MFA), que, suponho, se apercebia de que o texto legal de que estávamos a falar poderia ter deixado o MFA e o MPLA menos confortáveis. Tirou-lhe o texto de cima da mesa dizendo: «Homem, deixe isso comigo, que eu faço o trabalho», o que Mateus Neto aceitou sem grande hesitação. Os resultados, nessa instância concreta, não foram famosos para as açucareiras.
Pezarat Correia, depois do golpe militar de 25 de abril, foi responsável pela constituição da Comissão Coordenadora do MFA em Angola, com a qual teve um papel chave no êxito do modelo de descolonização escolhido. Nas reuniões que com ele tive, eu ficava imune à política, apenas abordando os assuntos práticos e absurdos que lá me levavam. Era muito curioso senti-lo a mitificar o seu papel e o do MFA pró -MPLA, em Angola, de forma idêntica à do Estado Novo, num peculiar «orgulhosamente sós». Com ele vivi diferentes momentos para desbloquear greves nos Bancos, aliviar piquetes revolucionários à porta do Inter Unido, e tentar obviar aos falhanços no circuito bancário de pagamentos e recebimentos que afectavam o sistema, as empresas, os seus empregados e os cidadãos em geral. Homem sisudo e reservado, algumas vezes colaborou nas soluções, outras vezes não.
Sim, tudo levou de facto ao acabar de Angola como colónia portuguesa. O preço foi liquidar um povo angolano de etnias branca, negra, mulata, e o país próspero que era e prometia ser. Em 2024, cinquenta anos depois, os dividendos negativos que o marxismo trouxe para o povo angolano pela mão destes personagens portugueses continuaram infelizmente visíveis na tragédia da doença e da pobreza de uma parte daquela esplêndida gente.
Em Londres, com Jonas Savimbi
Em Abril acompanhei o António Espírito Santo a Londres. Na capital britânica ainda nevavam leves flocos, que nada incomodaram Jonas Savimbi, com quem nos fomos encontrar, cuja visita à capital britânica tinha sido ajudada a organizar por pessoas próximas do Presidente do Banco Inter Unido.
Durante dois dias, a partir do então magnífico Hotel Cumberland, em Marble Arch, houve reuniões no Foreign Office e, silenciosamente organiza dos por Walter Solomon, dono do pequeno mas influente Banco Rea Brothers, encontros com autoridades monetárias e quatro dos principais Bancos britânicos. A personalidade magnética de Savimbi impressionou os interlocutores londrinos que nos receberam com grande afabilidade, interesse e a tradicional cortesia.
O líder não se cansou de incutir confiança nos interlocutores, com um discurso muito claro e convincente quanto ao futuro dos investidores estrangeiros, do empresariado angolano, da regulação no modelo capitalista dos sectores financeiro, segurador, industrial, agro industrial, mineiro e agrícola.
O António Espírito Santo e eu estivemos discretamente presentes nas várias ocasiões e almoços, excepto na reunião que ele teve na sede da Benguela Railways, que era um assunto pesado para ambas as partes, dados os ataques que a UNITA vinha fazendo aos Caminhos de Ferro de Benguela.
Foi a única oportunidade que tive de conhecer com proximidade um dos maiores líderes da história africana, que o MPLA viria a matar, vinte e sete anos mais tarde. De pele mais escura do que o comum dos angolanos negros, os olhos brilhavam de inteligência, lâmpadas cintilantes, sobretudo à noite, em que as suas feições se confundiam com a escuridão.
No entanto, durante aqueles dias acompanhou-me sempre uma estranha sensação de desconforto face à forma como abordava os interesses dos brancos, no que eu desconfiava poderem ser assomos de racismo negro.
O António Espírito Santo, que se entusiasmara com este potencial aliado e defensor dos seus interesses, impacientava-se com essas minhas desconfianças. Hoje penso que errei no meu juízo. Outros acham que não.
Tal como eu, o António já tinha as contas congeladas em Portugal e não tinha dinheiro no estrangeiro, tendo-se encontrado sem fundos suficientes para, no momento do check out no Hotel Cumberland (naquele tempo luxuoso, hoje um hotel mediano), liquidar a conta, a dele, a de Jonas Savimbi, a de um assessor e a minha.
Em tal aperto, fui com ele percorrer as ourivesarias de Oxford Street que estivessem dispostas a adquirir uma cigarreira de ouro maciço que lhe tinha sido oferecida pelo padrinho (e «tio») António de Almeida, personagem que sempre acreditei ser irmão «oficioso» de Manuel Espírito Santo, que arrecadara importante fortuna ao longo da vida e era casado com uma prima direita de minha Mãe, Olga Andresen, também abastada.