Inquérito a D. José Ornelas marca passo no MP

A PJ recomendou o arquivamento da queixa contra D. José Ornelas por suposto encobrimento de abusos sexuais em Moçambique. O inquérito sugere que o denunciante, João Oliveira, seja acusado de denúncia caluniosa. O Ministério Público ainda não se pronunciou sobre o caso.

A Polícia Judiciária (PJ) já propôs ao Ministério Público, em junho deste ano, o arquivamento da queixa contra o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, José Ornelas, relativa a um eventual crime de encobrimento de abusos sexuais de menores em Moçambique. As diligências feitas pela PJ no inquérito levam os seus agentes a propor, ao invés, que o queixoso seja constituído arguido, por crime de denúncia caluniosa – mas o MP ainda não analisou a questão, nem proferiu qualquer despacho ou ouviu sequer José Ornelas, conforme o próprio confirmou ao Nascer do SOL: «Passaram quase três anos e tudo o que sei desse caso foi o que a comunicação social noticiou».


Na origem deste inquérito, que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, estão as denúncias feitas por João Oliveira, um professor que, como o Nascer do SOL revelou em outubro de 2022, usou um testemunho falso para fazer a queixa contra Ornelas. Foi igualmente o autor de outra denúncia de eventuais abusos praticados em Fafe, que o DIAP de Guimarães já arquivou.


Ambos os casos baseiam-se em acontecimentos com mais de uma década e que já tinham sido alvo de investigações judiciais, tendo estas sido arquivadas.


Segundo o Nascer do SOL apurou, a primeira diligência do MP foi a audição de João Oliveira no DIAP de Lisboa, que juntou aos autos, entre outra documentação, um vídeo onde um cidadão moçambicano, Changuir Fakir, se diz vítima de pedofilia alegadamente praticada por um padre italiano, Luciano Cominotti, no momento em que, aos 9 anos, entrou no orfanato. No entanto, conforme fica demonstrado por documentos a que o Nascer do SOL teve acesso (como a sua cédula de nascimento), o homem, entretanto falecido, nasceu em 1988; ora, o padre Luciano só conseguiu a certidão para a licença de construção do orfanato em 2008 – o que significa que, nesta altura, Fakir tinha 20 anos e não 9. O seu testemunho cai, pois, pela base.
Além disso, anos antes, quando foi ouvido pela justiça do seu país, Fakir afirmara que o português João Oliveira o tentara aliciar com cinco mil euros para que fizesse tais acusações, o que ele na altura teria recusado. Fora um colega seu que intermediara a encomenda: «Explicou-me que tinha um amigo português disposto a oferecer-nos o bem-estar sob condição de eu dizer que o Sr. Padre Luciano se envolvia connosco sexualmente por via anal. E que se eu dissesse o que fosse dito por aquele amigo do Aires, o mesmo oferecia-me 5.000 euros». Declarações, aliás, que foram reforçadas por outras testemunhas.


Mas, sobretudo, Oliveira acusa a Justiça e a Igreja de nada terem feito, o que não corresponde à realidade. Em Lisboa o assunto chegou, na altura, ao Ministério Público, que arquivou o inquérito por não ter competência territorial para o efeito, e as autoridades de Moçambique, após investigarem o caso em dois inquéritos diferentes, ilibaram o sacerdote.
Em relação à Igreja Católica, a denúncia chegou ao Vaticano e o padre italiano esteve suspenso, mas voltou a ser reintegrado após o trânsito em julgado da decisão moçambicana. A Justiça italiana abordou igualmente as queixas e o inquérito teve o mesmo fim.

Todas as acusações com a mesma origem


Todas as decisões têm sido neste sentido e todas têm um denominador comum: João Oliveira, um professor e antigo cooperante do Instituto Português da Cooperação, que esteve colocado em Gurué, na escola de artes e ofícios pertencente à Ordem dos Dehonianos (da qual José Ornelas era à época superior geral, daí a acusação de ter recebido as queixas sem atuar) que era frequentada pelas crianças e jovens acolhidos pelo orfanato dirigido pelo padre Luciano. Após um grave acidente de mota, em que conduzia embriagado, Oliveira voltou para Portugal e vive em Lisboa. Aliás, nas acusações iniciais, o professor acusava também o padre Luciano de ter estado envolvido no acidente e de tentativa de homicídio.


Em janeiro de 2021, Oliveira fez chegar ao Nascer do SOL as denúncias sobre o orfanato, mas a história nunca foi publicada porque a nossa investigação concluiu que não tinha credibilidade. Com o vídeo truncado onde Changuir Fakir, muito debilitado, fala deitado numa cama de hospital e onde se ouve outra voz a bichanar coisas ao seu ouvido, João Oliveira voltou a fazer mais denúncias, desta vez ao Presidente da República, com o desfecho que se conhece.


No entanto, o que envolvia um padre de Fafe, já foi novamente arquivado e foi desencadeada por ameaças e tentativa de chantagem pelo célebre padre Roberto ao antigo bispo do Porto, D. António Francisco Santos. Na altura, este participou de imediato o que se estava a passar ao MP. E, além do processo judicial, a Igreja abriu um processo canónico, tendo sido aplicada até uma pena de suspensão de cinco anos ao sacerdote.

Exigência e chantagem


As desavenças entre o padre Roberto e o bispo começaram em junho de 2014, por altura das nomeações, quando D. António o incluiu no rol de quatro dezenas de párocos a transferir de paróquia. O visado só aceitava com uma condição: ser capelão militar ou hospitalar. O bispo conseguiu dar-lhe o que pedia, mas nessa altura já o padre Roberto mudara de ideias e incendiara a terra, espalhando que o queriam escorraçar da paróquia – e a população, claro, revoltou-se como nunca se vira.
Também nas fileiras eclesiásticas as intrigas ganharam proporção: assuntos de saias, de calças, são esgrimidos.


A 12 de setembro, o padre Roberto envia uma carta ao bispo lembrando as suas exigências e fazendo ameaças: «Sr. D. António digo-lhe […] que não irei permitir qualquer atitude difamatória ou abusiva […] que me possa prejudicar, caso contrário tornarei pública a situação de encobrimento de abusos sexuais realizada pelo Padre Abel Maia, hoje pároco de Fafe, na diocese de Braga, desde 2010».


D. António não cede à chantagem e, de imediato, envia a missiva para o MP de Penafiel.


A história remontava a 2003. À época, o padre Roberto pertencia à congregação dos Dehonianos e estava colocado numa comunidade desta congregação em Paredes. Um dia, um jovem de 17 anos, vizinho da residência, faz-lhe uma confissão. Desde os 14 anos que, num palheiro, teria sido abusado por outro padre dehoniano, Abel Maia. O padre Roberto, chocado, fala com os seus superiores. Mas quando, 11 anos depois, escreve aquela missiva ao bispo, parecia já ter perdido parte da inocência: «Eu faço parte deste processo, porque ajudei a vítima quando me pediu ajuda. O jovem abusado tentou o suicídio e quase morreu […] Existem documentos e relatórios sobre este caso, aliás, na altura, contei ao médico psiquiatra e responsável pelo jovem abusado que tinha sido um padre católico da minha comunidade. Tudo isto ficou em segredo, o jovem recuperou, não quis apresentar queixa e evitou-se um escândalo público».


Quando, na sequência da sua própria carta, o padre Roberto é ouvido, a procuradora da República Gabriela da Costa não o poupou: «Por que não apresentou, na altura, queixa às autoridades?». O sacerdote arranjou uma explicação: «Não denunciei os factos às autoridades policiais, já que naquela altura o Paulo referia não ser esse o seu desejo».


O MP ia escavando, sem encontrar indícios da prática de crime. A própria vítima negava os factos: «Nunca pernoitei no quadro do padre Abel, com ou sem ele», afirmou nos autos. O caso também fora investigado na comunidade missionária, que se confrontou com os mesmos problemas.


O atual secretário da Conferência Episcopal, Manuel Barbosa – que juntamente com José Ornelas apenas recentemente foi alvo de acusações do padre Roberto, numa entrevista à TVI, em que garantiu que naquela época ambos os responsáveis tinham silenciado o assunto -, também foi chamado a depor, pois coubera-lhe a ele, como provincial dos Dehonianos no país, conduzir a investigação interna. «Uma vez que não foram encontrados fundamentos para a instauração de qualquer processo, ficou tudo de imediato resolvido nas conversas que mantive com todos os intervenientes […] Mas acabei por decidir retirar o Padre Abel Maia, tendo o mesmo, por uma questão de prudência, ido para Roma», afirmou.

Padre Abel reintegrado


Chegado de Roma em 2006, o padre Abel cortara com os Dehonianos e passara a integrar o clero secular. Na altura, pertencia à diocese de Braga, a qual, após ter recebido a carta do padre Barbosa, abrira também um processo canónico. Para presidir à averiguação interna, pedem a intervenção do provincial dos Dehonianos, padre Zeferino Policarpo, que também fora testemunha no processo.


E é este missionário quem começa a abrir o véu: o padre Abel recorrera a ele, numa aflição, contando-lhe que há anos era alvo de chantagem por parte da vítima, que o denunciara em 2003. Já lhe fizera até algumas entregas em dinheiro, mas ele voltara à carga. O missionário aproveita o momento de fraqueza e pede-lhe que conte o que verdadeiramente se passara. E o outro, com mais ou menos verdade, confessou «que nunca tivera qualquer tipo de relação de cariz mais íntimo com a vítima, apenas por uma ocasião tinha acariciado a zona genital do mesmo por cima das calças». O resultado da investigação canónica acabou por chegar ao Vaticano, que lhe aplicou uma pena de cinco anos de suspensão. Depois da travessia do deserto, o sacerdote seria reintegrado na Igreja pelo ex-bispo do Porto, D. José Ortiga.
José Ornelas não chegou a ser ouvido neste inquérito, tal como não foi no que ainda decorre.