BRICS 2024: hegemonia ocidental comprometida?

Em Kazan, na Rússia, os líderes dos BRICS focaram-se no estreitamento de laços e na criação de uma alternativa ao dólar. Novos membros formalizaram a adesão e até Guterres, secretário-geral da ONU esteve presente.

Os líderes dos BRICS, bloco formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, reuniram durante esta semana na cidade russa de Kazan. A cimeira, que marcou a adesão formal de novos membros à aliança que tem como objetivo desafiar a hegemonia ocidental, não contou com o presidente brasileiro, Lula da Silva, que sofreu um acidente doméstico no sábado passado.

Recep Erdogan, presidente da Turquia, também marcou presença, mas a mais polémica foi mesmo a do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, que reuniu ontem com o presidente russo, Vladimir Putin. O ex-primeiro ministro português, debaixo de fogo sobre a posição da ONU sobre o conflito no Médio Oriente, foi duramente criticado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Andrii Sybiha, que lamentou a recusa de Guterres em participar na cimeira pela paz promovida pela Ucrânia na Suíça, em junho, e classificou a presença em Kazan como «uma escolha errada que não promove a causa da paz. Apenas danifica a reputação da ONU».

A ameaça ao ocidente
Desde a criação do grupo, formalizado em 2009, que a hegemonia ocidental está sob ameaça de economias emergentes que apresentam índices económicos notáveis e que não dão sinais de abrandamento, em particular a China e a Índia.

Os BRICS, que agora passam a contar com a Arábia Saudita, com os Emirados Árabes Unidos, com a Etiópia, com o Egito e com o Irão, representando cerca de 46% da população mundial, juntaram-se pelo fortalecimento «do multilateralismo para um desenvolvimento global justo e para a segurança». Na Declaração conjunta de Kazan, pode ler-se que os membros da organização reafirmam o seu «compromisso pelo espírito de respeito, entendimento e compreensão mútuo dos BRICS, igualdade soberana, democracia, abertura, inclusão, colaboração e consenso». Quem está atento à conduta dos regimes que compõem a aliança ficará certamente surpreendido com esta declaração.

Mas a parte mais importante, e que pode vir a representar uma ameaça real ao G7, no geral, e aos Estados Unidos, no particular, é a ideia de criação de uma nova moeda para enfrentar o poderio do dólar americano. A moeda deverá ser digital e há a possibilidade que seja sustentada pelo padrão ouro, tal como foi o dólar entre Bretton Woods, em 1944, e 1971. Tal moeda poderá transmitir confiança pela capacidade de mitigar os perigos inflacionistas resultantes da impressão de dinheiro do nada. Ainda é cedo para prever, ainda que seja improvável, se conseguirá realmente rivalizar com o dólar.
Putin diz que o «dólar está a ser utilizado como arma», estando assim «à procura de alternativas». Por enquanto, os BRICS parecem estar focados no fortalecimento das moedas nacionais e na criação de um sistema de pagamentos que possa funcionar como alternativa ao SWIFT.

A aproximação
As divergências no seio do bloco, evidentes desde o momento da fundação, têm sido o calcanhar de Aquiles dos BRICS, onde se destaca a tensão entre os dois membros mais importantes – a China e a Índia.

Porém, o primeiro ministro indiano, Narendra Modi, anunciou na sua conta oficial da rede social X que reuniu com o «Presidente Xi Jinping à margem da cimeira (…). As relações Índia-China são importantes para os povos dos nossos países e para a paz e estabilidade regionais e mundiais. A confiança mútua, o respeito mútuo e a sensibilidade mútua guiarão as relações bilaterais». É, sem dúvida, um passo importante para a consolidação dos BRICS rumo à homogeneidade que desejam. Ainda assim, e com o alargamento, é um objetivo difícil de cumprir. Outras questões importantes abordadas em Kazan foram a reforma da Organização Mundial do Comércio, que será apresentada na ONU, e a guerra na Ucrânia, ainda que numa muito breve menção.

Com esta cimeira, o cenário de uma ordem mundial multipolar torna-se cada vez mais uma realidade, e o ocidente, de modo a preservar a sua superioridade económica e militar, deverá reajustar a estratégia perante a ameaça cada vez mais real.